A água que circula pelo mundo é fonte de vida e de expressão. Entre tantos significados, a água pode simbolizar a origem da vida, a fecundidade, a fertilidade, a transformação, a purificação, a força e a limpeza. A água envolve um misticismo que permeia quase todas as crenças. Na sua essência, ela envolve um universo oculto. A água e a vida se confundem como um único ser.
Há muitos anos, em Bollingen, à beira do Lago Zurique, Carl Gustav Jung mergulhava no silêncio, praticava esportes náuticos, preservava o encontro com a natureza e se entregava para a construção do saber. Sua casa era um centro de repouso e de renovação, ao mesmo tempo um templo de reflexão, de imaginação e expressão. Em muitos registros ele aparece olhando para a água, despertando inquietações: O que nosso velho sábio estava pensando? Quais sentimentos estavam aflorados naquela alma e que ampliações estava realizando? Em seus livros, o arquétipo água é elemento presente, especialmente em Tipos Psicológicos e Psicologia e Alquimia. Cada um dos quatro elementos (água, terra, ar e fogo) está relacionado com as funções psicológicas e com as operações alquímicas.
Da mesma forma, o arquétipo água aparece no livro Memórias, Sonhos e Reflexões, e nele Jung descreve o mar como uma grandeza e uma simplicidade cósmica que impõem silêncio: “O mar é como música; traz em si e faz aflorar todos os sonhos da alma. A beleza e a magnificência do mar provêm do fato de impelir-nos a descer nas profundezas fecundas de nossa alma, onde nos defrontamos conosco, recriando-nos, animando o triste deserto do mar” (1975, p.316). Neste contexto, o arquétipo água é um dos quatro elementos, simbolizado pelo sentimento e as ondas do mar correspondem ao movimento desta emoção. A poesia do mar é maternal, a imagem da água refletindo o corpo e a alma oferece ao homem o mais profundo sentimento de plenitude, tão bem enfatizada por Fernando Pessoa, poeta, filósofo e escritor português, no livro Em Quadras ao Gosto Popular: “Água que passa e canta, é água que faz dormir… Sonhar é coisa que encanta, pensar é já não sentir…”
Para maior compreensão, os arquétipos se encontram no inconsciente coletivo e são potencialidades psíquicas herdadas, que se manifestam por meio de imagens, representam as memórias ancestrais vivenciadas e registradas ao longo da evolução humana. Segundo Jung, “arquétipo significa uma marca-impressão, um agrupamento definido de caracteres arcaicos que, em forma e significado, encerra motivos mitológicos, os quais surgem em forma pura nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e no folclore” (1985, p. 33 – 34).
De acordo com estudos científicos, a água é uma substância encontrada no nosso planeta na forma sólida, líquida e gasosa e é formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio (H2O). O corpo humano é composto em torno de 70% de água, que é fundamental para a realização de diferentes funções. A proteção é uma delas, na composição da lágrima, que protege os olhos e simbolicamente limpa a visão, permitindo enxergar o que não se via antes; do líquido amniótico, que protege o feto no útero da mãe, ambos gerando luz e vida. Patricia Marx e Seu Jorge expressam na música “Espelhos D´Água” a importância do olhar, comparando os olhos como refletores de alma: “Os seus olhos são espelhos d’água, brilhando você…” Vale lembrar que o olhar muitas vezes expressa o que a boca não consegue dizer.
Os rios, as geleiras, os lagos e as águas subterrâneas são importantes para os seres vivos, principalmente por fornecerem água doce, porém a maior parte da água do nosso planeta é salgada, tema de debate da sociedade que já sente os efeitos causados pela sua escassez, pelas enchentes que provocam inúmeras tragédias, pelo desperdício e pela contaminação. Como já dizia o poeta Manoel de Barros: “Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens… Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.”
Muitos rituais religiosos são realizados na presença da água, representados por um rio, mar ou lago. Eles têm seu valor associado ao poder sagrado, simbolizando a purificação e a cura, como no cristianismo, por ocasião do batismo. Segundo a Bíblia, toda a criação do mundo começou com as águas: “A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus se movia sobre a superfície das águas” (Gênesis 1,2). Por outro lado, as águas expressam o castigo de Deus, em forma de dilúvio, por causa do pecado dos homens. Nesse sentido, vale ressaltar que a água simboliza também a morte e as devastações. Tom Jobim, em 1972, cantou e encantou com Águas de Março, trazendo metaforicamente o triunfo da vida sobre a morte: “promessa de vida no teu coração… São as águas de março fechando o verão…”. O dilúvio do nosso interior transbordando, porém se abrindo para uma nova estação.
O arquétipo água também é parte da alquimia, estudada por Jung por mais de 15 anos, que a trouxe para um patamar psicológico e um encontro máximo com a singularidade. De uma forma geral, a partir de entendimento de Jung e autores junguianos, é uma ferramenta para estabelecer ligação anímica entre psicoterapeuta e cliente, seguindo os passos da alma e iluminando a sombra, para atingir a divina regeneração humana e chegar na sua essência, que é o amor. Os principais componentes da transformação alquímica envolvem operações – linguagem metafórica da alquimia – e o objetivo é gerar estados de alma. As sete principais operações são calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio e coniunctio.
A alquimia é símbolo transformador de energia que cura, em contínuo processo de dissolver e coagular, ciclo evolutivo da ampliação da consciência, promovendo morte e renascimento. A solutio é a operação que pertence à água, que transforma um sólido em líquido e esse sólido é absorvido e solvido para ocorrerem transformações. Podemos relacioná-lo aos tempos de seca, aos aspectos psíquicos que estão estagnados e aos padrões que precisam ser mudados. Envolve o choro, os alagamentos e a lavagem das emoções. Coagulatio, por sua vez, simboliza a concretização de algo novo, promovendo a transformação. Neste sentido, Raul Seixas, que cantou Medo da Chuva, identificou a chuva como poderosa e temida, ao mesmo tempo a viu como possibilidade de mudança e renovação da vida em contínuo movimento: “Pois a chuva voltando pra terra, traz coisas do ar…”. Processo de dissolver e coagular, algo tão real quanto místico.
Muitos autores enaltecem a água. No Dicionário dos Símbolos, a água é descrita como vida e morte: “O ser humano, como as águas do rio, morre a cada instante” (2013, p. 13). São as mortes simbólicas, processo em que deixamos muitas coisas morrerem para o novo entrar. Mircea Eliade, descreve o mito como um sistema dinâmico de símbolos e arquétipos: “O mito conta uma história sagrada; que relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio (…) Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem”. (1972, p. 11-13). Nos mitos dos heróis a água geralmente está associada ao nascimento ou renascimento. Como exemplo, podemos citar Poseidon, considerado o Deus das Águas, para os gregos e conhecido pelos romanos como Netuno. Era representado como um homem de barba, portando um tridente, o qual era usado para bater o mar e para separar pedaços de rocha. Ele usava a água e os terremotos para exercer vingança, mas também podia apresentar um caráter cooperativo.
Da mesma forma, as divindades relacionadas com a água geralmente apresentam duas características femininas fundamentais: a sensualidade e a maternidade. As rainhas do mar, ao mesmo tempo que são belas, também são ameaçadoras, pois são associadas aos perigos das correntezas dos mares e dos rios. Iemanjá, Iara, Afrodite e as Sereias são exemplos típicos. Iemanjá é considerada a divindade das águas doces e salgadas, muito cultuada e respeitada, é mãe de quase todos os Orixás. Na mitologia amazônica, Iara se afogou no encontro entre os rios Negro e Solimões e é considerada a criadora da pororoca, no encontro do rio com o oceano. Afrodite, a deusa do amor e da sexualidade, teve forte relação com o mar, reconhecida por marinheiros que lhe pediam proteção em novas viagens pelas ondas. As sereias lembram Perséfone, pois eram suas companheiras antes dela ter sido levada para o Reino de Hades, o mundo dos mortos. O canto das sereias é considerado como um canto fúnebre.
Algumas expressões populares também refletem a importância da água. Crescemos ouvindo que “águas passadas não movem moinhos”. Na mesma intensidade, que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura.” Realizamos experimentos “de dar água na boca.” Quantas vezes chegamos “na gota d´água” e confirmamos que “desta água não beberei”. E quem nunca se sentiu um “peixe fora d´água?”
Vindo ao encontro, Guilherme Arantes, marcou época com sua música Planeta Terra (1981). Com sua voz, estabeleceu uma conexão interior e exaltou o poder da água: “Águas que caem das pedras, no véu das cascatas, ronco de trovão, e depois dormem tranquilas, no leito dos lagos…Águas que movem moinhos, são as mesmas águas, que encharcam o chão, e sempre voltam humildes, pro fundo da terra…” Vida e morte, seca e chuva, polos opostos que precisam ser integrados. As saídas criativas para a seca nos remetem aos ipês, que começam a florescer após cessarem as chuvas e iniciar uma seca árdua. As suas cores rosa, amarelo, branco, roxo e azul não se sobrepõem, cada tonalidade de ipê tem seu tempo para florescer e, apesar de suas flores durarem poucos dias, a sua beleza fascina os olhares dos expectadores. Simbolicamente, nós também nos tornamos melhores e florescemos, após vivenciarmos as secas da vida.
Desta forma, a Psicologia Analítica busca a transformação do indivíduo por meio da movimentação da sua psique, tornando conscientes seus conteúdos inconscientes, objetivando em um ser menos fragmentado, que resulta em mudança de padrão e integração de corpo, alma, mente e espírito. A partir desta etapa, poderemos preencher nossa consciência com escolhas, separações e destilações das emoções, para ficarmos mais leves e tomarmos atitudes concretas, coagulando, curando, dando consistência e colorido à tintura da vida, que é a nossa verdadeira essência. A psicoterapia favorece o processo de individuação e a função transcendente, com saídas criativas para o encontro do ego com o Self, num constante processo de dissolve e coagula, principalmente com o auxílio do elemento água. As dores da alma vão se transformando e se tornando mais claras, para finalmente serem ressignificadas, com novo sentido e significado.
A vida é cíclica! Tudo passa e tudo se renova! O tempo de Kairós nos mostra que a natureza é uma dádiva divina e os quatro elementos foram nos dados para criarmos uma vida de plenitude. Água do mar, do rio, do lago, da cachoeira, da cascata… Preservemos o que nos permite o alcance da paz. A nossa alma pode ser uma fonte de água pura: fonte de vida e de expressão!
Claci Maria Strieder, Pedagoga, Psicóloga, Especialista em Psicossomática e Psicologia Junguiana, Analista em formação pelo IJEP.
Brasília/DF – Contato: (61) 99951.0003 – clacims@gmail.com
Leituras de apoio:
CAMPBELL, Joseph: As Máscaras de Deus Mitologia Ocidental. Rio de Janeiro: Editora Palas Athena, 1992.
CHEVALIER, Jeane GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, número). Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2013.
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. Lisboa: Editora Arcádia, 1972.
JUNG, Carl Gustav. Fundamentos de Psicologia Analítica. V. XVIII, 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
_______________. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975.
_______________. Psicologia do Inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes, 14.ed. 2002.
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