Esse artigo visa explorar como o Código Hays, um conjunto de regras de cunho moral que vigorou nos estúdios de Hollywood no século XX, criou um jeito de representar pessoas fora das normas de gênero e sexualidade e como isso se relaciona com a ideia de Orgulho LGBTQIA+. A imagem que ilustra esse artigo é um fotograma do filme Diferente dos Outros (Anders als die Andern no original em alemão), de 1919, considerado o primeiro filme de temática LGBT do mundo.
Nas últimas duas décadas houve uma mudança de paradigma quanto a representação de minorias na mídia.
Se antes havia uma expectativa muito clara sobre que tipo de pessoas e corpos eram aceitáveis numa grande produção de cinema e de TV, hoje esse local está em disputa. Debates sobre representatividade tem ganhado espaço onde antes havia apenas hegemonia e os mais diversos grupos iniciaram debates sobre a representação de determinadas populações para o grande público. Pessoas negras, pessoas obesas, PCDs, mulheres e a população LGBTQIA+, dentre outros, começaram a discutir como e quando eram representados em filmes e séries de TV. Não bastava mais ser representado em papéis de subalternidade ou alívio cômico, começavam a surgir em maior volume, protagonistas que não se encaixavam nos antigos estereótipos da máquina de entretenimento norte-americana.
Obviamente, essa mudança tem sido o centro de um debate acalorado, desvelando o fato por trás da narrativa: representação na mídia não é só uma questão de ver alguém como você nas telas de cinema, faz parte de um projeto político e cultural. Há uma disputa de poder nas histórias e imagens às quais somos expostos, é o que hoje chamamos soft power.
Mas manipular o que e quem pode aparecer na mídia não é novidade, na realidade, remonta à época em que Hollywood estava se estruturando como epicentro do poderio midiático dos EUA. Exemplo claro desse tipo de conduta foi o código Hays, nome coloquial dado ao Código de Produção de Filmes da Motion Picture Association (MPA), uma entidade formada pelas empresas de produção de cinema de Hollywood. A MPA foi fundada em 1922 para viabilizar e regulamentar a crescente indústria do cinema e 1934 essa, sob direção do político Wll H. Hays, lança a primeira versão do seu código de conduta para cinema.
O Código Hays surge com um propósito claro: moralizar Hollywood.
Na década de 1920 crescia nos EUA a impressão de que a indústria do cinema era uma força corruptora da moral. Uma série de escândalos e batalhas legais sobre censura levaram à formação da MPA, com o intuito de ser uma instituição de autorregulação, ou seja, os próprios estúdios se imporiam um código de conduta moral para evitar que o estado o fizesse.
Segundo o código: “Nenhum filme que baixe os padrões morais de quem o assiste deverá ser produzido. Portanto, a simpatia do público nunca deve estar do lado do crime, do mal, da injustiça ou do pecado.” Ou seja, para os reguladores, havia temas que não poderiam ser representados, ou se o fossem, deveriam ser feitos de tal maneira que não “baixassem os padrões morais”.
Vários eram as atitudes que o código regulamentava, como por exemplo, a forma que casamento e extraconjugalidade eram representados (deveria sempre se demonstrar que o casamento era sagrado e benéfico). Também era vetada a representação de “miscigenação” e casamentos interraciais, escravidão de pessoas brancas, uso e tráfico de drogas e qualquer tipo de nudez que fosse considerada “sugestiva”. Outros temas como prostituição e atos criminosos poderiam ser representados com cautela, considerando sempre que “ao longo da obra, o mal e o bem nunca devem ser confundidos, e o mal deve sempre ser claramente reconhecido como mal”. Ou seja, o código também propunha uma visão maniqueísta, dicotômica: não há espaço para se representar complexidade, nuance ou ambiguidade moral, mocinhos são sempre mocinhos, vilões são sempre vilões.
A publicação do Código Hays teve impacto imediato em como se produzia cinema.
O livro The Celluloid Closet (O Armário de Celulóide – sem tradução para o português), do historiador Vitor Russo, narra como a imagem da homossexualidade no cinema foi transformada pelo guia da MPA. A regras tornavam a criação de qualquer personagem que desviasse das normas de gênero e sexualidade praticamente impossível, salvo uma exceção, poderiam aparecer caso fossem retratados do lado do mal. Ou seja, seriam sempre vilões, seus comparsas ou figuras moralmente reprováveis. Ademais, era sugerido o filme deveria encerrar deixando claro o destino trágico desses personagens, seja morrendo, sendo preso ou retratado em clara decadência. O objetivo dessas normas é certo, deixar evidente ao espectador que certas formas de ser só podem levar a tragédia.
A partir daí surgem dois fenômenos em Hollywood, o primeiro é o queer coding, a criação de personagens que, mesmo quando não são descritos explicitamente como LGBTs, podem ser assim entendidos por conta de seus trejeitos, roupas e modo de falar, fica inferida sua natureza “desviante”. O segundo foi a criação da tradição de se criar vilões através do queer coding. Essa tradição vai, inclusive, sobreviver ao Código Hays.
Após uma série de pressões da própria indústria e por influência de produções estrangeiras, especialmente europeias, que não estavam restritas por essas amarras, a MPA vai, primeiramente, afrouxar suas regras para depois abandonar completamente seu guia em favor do sistema de classificação indicativa (similar ao que é utilizado hoje no Brasil). É interessante notar que o Código Hays vai ser abandonado oficialmente em 1968, um ano antes do levante de Stonewall de 1969, que, apesar de não ser a primeira revolta do tipo, fica marcado como data de fundação do movimento LGBT.
Como dito anteriormente, a tradição de usar personagens queer coded para representar vilões ganhou força própria e continuou a ser usada mesmo após o fim das proibições.
Os exemplos recentes mais notáveis são os que vem de desenhos animados, talvez porque nesse recorte, os elementos do Código Hays tenham perdurado como uma espécie de garantia de que o material seria moralmente aceitável. Só entre os vilões da Disney é possível encontrar uma grande quantidade de vilões queer coded: Scar (o Rei Leão), Governador Ratcliffe (Pocahontas), Jafar (Alladin), Capitão Gancho (Peter Pan), Hades, (Hercules). Dr. Facilier (A Princesa e o Sapo), Malévola (A Bela Adormecida) e Ursula (Pequena Sereia). Todos esses são citados como vilões que, apesar de nunca dito de forma explícita, carregam características associadas a comunidade LGBT: formas de falar, trejeitos, roupas. Ursula inclusive, é notório, foi diretamente inspirada na Drag Queen Divine.
Mas não só no cinema infantil encontramos exemplos: Bruno Anthony (Pacto Sinistro – 1951), Norman Bates (Psicose – 1960), Dr. Robert Elliot (Vestida para Matar – 1980), Catherine Tramell (Instinto Selvagem – 1992), Príncipe Edward (Coração Valente – 1955), Xerxes (300 – 2007). É possível perceber que há exemplos da época do código, mas que mesmo depois de sua queda ainda temos muitos vilões sendo criados dessa maneira.
A princípio, não há nenhum problema em que pessoas LGBT sejam representadas como vilões, afinal, ser parte de um grupo minoritário não pode ser entendido como sinônimo de virtude. O problema está no recorte da realidade feito pela MPA, onde o único lugar que personagens LGBT poderiam figurar, era nesses papéis.
Quando separamos a realidade em duas esferas distintas, separadas, bom versus mal, sem espaço para nuances, complexidades e contradições temos uma consequência óbvia, projeção sombria. Se alguém é o representante do bem, há de haver um representante do mal, torna-se fácil negar a própria sombra e projetá-la no outro, desviando o olhar que deveria se voltar para si, para fora, para aquele que representa o que não presta. Eis aqui o problema que o Código Hays e os vilões queer coded criaram em Hollywood, um imaginário coletivo que associava direta e repetidamente comportamento que desviava das normas de gênero a falta de caráter e vilania. Reforça-se, então, a desumanização do outro, já não se é humano, se é algo menos que isso, visto que, quando aparece nos filmes, está sempre a praticar maldades ou se comportar de maneira imoral.
Esse tipo de representação impacta diretamente na forma que o grupo representado é tratado na sociedade, amplificando dinâmicas de exclusão e violência já estabelecidas.
É fácil observar que tornar um grupo uma caricatura de humanidade (seja o vilanizando ou o transformando em alívio cômico) deforma a comportamento do grupo majoritário, tornando-o mais preconceituoso. Mas e o que acontece com o grupo representado, nesse caso, pessoas LGBT? Imagine uma pessoa que em seus anos formativos é exposta majoritariamente a personagens bem encaixados na norma cis hetero, as poucas exceções que aparecem ocupam o lugar do antagonista, do mal, daquilo que, ao final, é derrotado. Essa criança cresce e lentamente começa a se perceber diferente (muitas vezes sozinha, mas também porque é apontada como diferente pelos outros). Vai gradualmente identificando que, sua estranheza ressoa com a estranheza desses personagens, vilões, o mal. Como fica a saga do herói quando lhe contam desde cedo que seu destino é ser vilão?
Obviamente, essa relação com a indústria cultural é só um dos elementos de repressão que uma pessoa LGBT encontra no caminho e não é um determinante singular de sua experiência, mas usando o vilão como metáfora e como as pessoas lidam com essa temática pode ser revelador de como se lida com a lógica da exclusão.
Uma das formas dessa expressão é a identificação com a figura do vilão.
A pessoa que foi sempre colocada à margem, devolve a violência diretamente, geralmente tornando-se o comentador ácido da vida do outro, apontado a falta na narrativa dos outros, demonstrando que o mal e o patético que lhe imputam está presente em todos, devolvendo o desconforto a quem lhe oprime. Aqui vale falar do estereótipo da bicha má, degredada pelos outros, mas extremamente rápida em dar uma resposta desconcertante que gera reação imediata, riso ou raiva. É uma maneira de lidar com a agressividade do meio, mas cobra um preço caro: re-identifica o indivíduo com seu papel de proscrito e cria um muro de proteção de difícil transposição, podendo isolar a pessoa de relações mais sinceras e afetivas.
Outra opção é a da negação total do lugar do vilão. Aqui surge o que muitas vezes é chamado no meio LGBT de “chaveirinho de hetero”.
A pessoa que tenta, a qualquer custo, se desintensificar de qualquer valor, estética ou símbolo que a associe a seus pares “queer” e tenta de toda maneira se inserir no universo simbólico normativo. Podem ser vistos fazendo discursos moralistas, atacando qualquer tipo de expressão que rompa com a normatividade de gênero e fazendo falas de terror moral. O medo de ser o vilão, de ser o proscrito, é tão aterrador para esse indivíduo que ele prefere renunciar a sua subjetividade e da relação com seus pares para se sentir, minimamente, integrado ao mundo “normal”. Parece desnecessário falar que essa dinâmica de sujeição não resulta em uma vida muito saudável.
Outra expressão é a de brincar com a figura do vilão. Absorver o absurdo de ser um proscrito em si e devolver ao mundo de outra maneira, escancarando a violência como arte. É o lugar da drag queen, do humorista, de quem transforma tragédia em riso. Aqui a estranheza pode ser celebrada, cantada, transformada em algo desejável. Nessa expressão, a potência criativa do inconsciente pode ser acessada pela pessoa e mudar relações no mundo tanto externo quanto interno. O artista abre portas de transformação para si e para os outros, quebra a fôrma dura do que é permitido e do que é proibido.
Há ainda a posição de quem reescreva a história do vilão, quem decide mostrar o outro lado da história, quem não aceita a dinâmica preto-no-branco e busca reintegrar as partes. Aqui quem luta por direitos, conta as histórias da comunidade, denuncia, escancara o preconceito faz suas batalhas. Essa também é uma postura da arte, das potências criativas do inconsciente, mas aqui não se faz da tragédia riso, aqui conta-se a tragédia como ela é. Essa é a busca de recontar a história para sanar a neurose coletiva. Resgatar a humanidade e a dignidade que lhes foram negadas.
Faz-se necessário agora voltar à segunda parte do título do artigo: vergonha e Orgulho LBGT. Fica claro que, mesmo quando a figura do vilão é imposta sobre o indivíduo há diferentes posturas possíveis para se lidar com esse papel e aqui o tal do Orgulho faz toda a diferença.
É importante frisar que Orgulho LGBT (que é aqui grafado com O maiúsculo por um motivo) é diferente do orgulho, pecado capital cristão. Geralmente quando pensamos em orgulho pensamos no pecado do excesso de si, da hubris, da falta de humildade ou modéstia. Mas não é nessa acepção que o termo Orgulho LGBT se encaixa. Orgulho aqui surge como a antítese da vergonha: como a postura de quem se recusa a ser diminuído ou destratado por sua natureza. Orgulho nessa acepção se opõe a necessidade de se esconder para sobreviver, ao medo, a angústia do não-pertencimento. Orgulho como recusa a ser transformado em ser abjeto, menos que humano, caricatura de gente.
E esse Orgulho é um dos elementos que tornam diferente a expressão do “local do vilão” nas pessoas LGBT. O que difere “bichas más” e “chaveirinhos” de artistas e militantes é poder se Orgulhar de quem se é. Para quem pode se assenhorar de si com Orgulho, na busca de exorcizar a vergonha, é possível entrar em contato com as camadas mais profundas de si, encontrar o potencial criativo em si e devolver ao mundo algo mais interessante do que recebeu, no seu Orgulho de se ser quem é, executar uma verdadeira operação alquímica. Se há uma polarização entre aceitar plenamente o papel do proscrito imposta socialmente e negá-lo completamente, negando que essas violências existem; o Orgulho LGBT surge como terceira via, função transcendente, fruto da criatividade psíquica.
É interessante notar como posturas morais e formas de representar pessoas atravessam o tempo. O Código Hays foi criado há mais de 90 anos, abolido há quase 60 anos, e ainda assim, a moralidade de seu tempo ainda ecoa em nossas vidas. Na análise (de qualquer pessoal, mas especialmente de grupos marginalizados), precisamos abrir espaço para superar essas representações enviesadas e limitantes, dar espaço ao Orgulho do analisando, para que, afastado da vergonha e das limitações do discurso hegemônico, possa criar para si uma forma de ser mais interessante, mais alinhada com o Self e respeitosa com natureza de cada um.
Gabriel Andrade – Membro Analista em formação IJEP