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O Mítico Círculo de Eranos (parte 2) (Eranoskreis) –

Em diferentes escritos, Jung expressou avaliações duvidosas, se não bastante distantes, em relação aos grupos e sua atuação sobre os indivíduos.  Dentro da realidade coletiva, em contraste com o trabalho individual, levantava hipóteses de que poderia ocorrer um enfraquecimento da integridade do ego através da perda do sentido de responsabilidade. Outros riscos estariam ligados à formação de dependências nos pensamentos e ações do indivíduo, que passariam pela sugestionabilidade e pelos comportamentos imitativos. Em suma, o surgimento de uma espécie de “Zelig” (personagem do filme escrito e dirigido por Woody Allen) que poderia dificultar o processo de individuação.

            Essa atitude inicial em relação aos grupos, no entanto, foi se modificando ao longo do tempo até ganhar uma reavaliação. Adaptação à comunidade e processo de individuação, especialmente durante o período que Jung definiu como a primeira metade da vida, tornaram-se o principal objeto de interesse e observação, sendo que, num primeiro momento, foram identificados por ele como um par de opostos, para depois, finalmente, assumirem um caráter complementar.

            Jung analisou cuidadosamente os elementos positivos e os limites das duas formas de análise. O trabalho em grupo, segundo sua argumentação, ao mesmo tempo em que poderia trazer um enriquecimento, poderia também representar um limite, mesmo que temporário, com o qual o processo de individuação é confrontado e do qual é essencial estarmos muito conscientes. Por sua vez, o trabalho individual, se não bem equilibrado em relação ao contexto que circunda o indivíduo, pode acabar por desconsiderar a adaptação social.

            O Círculo de Eranos, com o formato de seus encontros e sua realidade, pode ser considerado o emblema de um espírito coletivo positivo de compartilhamento de ideias, formulações teóricas e experiências sempre flexíveis e em contínua transformação. Em Eranos, a presença de Jung foi fundamental, pois mesmo não tendo sido um dos fundadores, teve grande importância no papel de Spiritus Rector.

            O clima dos encontros em Ascona, de acordo com as descrições de seus frequentadores mais assíduos, se baseava na escuta mútua atenta, no respeito ao pensamento alheio e na abertura a possíveis “contaminações criativas”. Essa abertura poderia ser analisada como um “sonho coletivo” inspirado pelo “Genius Loci Ignoto” ou pelo mistério que habitava esse cantão do Ticino, terra de utopias imaginativas. No intrigante Museu do Monte Verità, localizado na antiga “Casa Anatta”, uma inteira sala é dedicada a mapas que traçam o magnetismo dessa região, particularmente intenso, e que teria ligação com alguns tipos de rocha encontrados no local.

            Mircea Eliade, presença regular nas conferências do Círculo de Eranos, chamava as reuniões de “nova forma de criação cultural”, comparando-as com os círculos interdisciplinares da Renascença italiana e do Romantismo alemão. Neste contexto, a reunião, o diálogo, o respeito, a escuta e a troca são facilitados, e talvez tenham criado as condições ideais para a elaboração e o amadurecimento de tantos conceitos, como aqueles que veremos “se entrelaçando” nesse artigo: “Numinoso”, “Arquétipo”, “Imaginal” e “Mitologema”, respectivamente desenvolvidos por R. Otto, C.G. Jung, H. Corbin e K. Kerényi, sendo esses três últimos assíduos frequentadores do Círculo de Eranos.

            Começando pelo conceito de “Numinoso” (OTTO, 1917), é necessário esclarecer que Rudolf Otto nunca esteve nos encontros de Eranos, mas foi “padrinho” e um dos idealizadores. Além de já estar aposentado em 1929 (Eranos teve início em 1933), Otto sofria de profunda depressão. Em 1936, cai de uma torre de mais de 20 metros e vem a falecer de pneumonia em 1937. No entanto, o conceito de “Numinoso”, desenvolvido por ele em sua obra O Sagrado, de 1917, será constantemente invocado pelos participantes das conferências de Eranos, seja em suas apresentações ou em suas obras. Um exemplo disso é a citação abaixo extraída do livro Psicologia e Religião, de Jung:

Antes de falar da religião, devo explicar o que entendo por este termo. Religião é – como diz o vocábulo latino religere – uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de “numinoso”, isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o “numinoso” constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. O “numinoso” pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência.” (JUNG, 1978, pag. 9)

            Para R. Otto, os elementos racionais e irracionais de uma experiência “numinosa”, ou Sagrada, incluem as categorias do Mysterium Tremendum, sendo elas tremendum (arrepiante),majestas (avassalador) e mysterium (o “totalmente outro”). Expressão do mistério terrível e fascinante, o fenômeno é descrito como não racionalmente dedutível, sendo que sua apreensão se dá através de adeptos, santos, profetas e personificadores do “numinoso”. (OTTO, 2007, pag. 9)

            Enfatizando em sua obra os elementos irracionais da experiência, R. Otto com O Sagradoposiciona-se na contramão do Iluminismo, corrente predominante na época até mesmo dentro dos estudos teológicos, que interpretavam o fenômeno como sendo expressão de metafísica, de moral ou de evolução. Já para o autor, a religião teria seu início em si mesma e o Sagrado, ou “numinoso”, seria uma sua “categoria a priori”. (OTTO, 2007, pag. 150)

            Mesmo a partir de uma análise superficial dos Anuários de Eranos, vemos que o “fio condutor” que atravessa os quase 600 trabalhos produzidos ao longo dos anos de 1933 e 1988 era representado pelo interesse nas estruturas arquetípicas dos fenômenos religiosos Ocidentais e Orientais. De fato, cada encontro teve como título um tema arquetípico, que representava o centro das reflexões, a partir do qual as formulações teóricas eram desenvolvidas.

            Com base no trabalho de R. Otto, Olga Fröebe-Kap­teyn, fundadora e idealizadora de Eranos, focou a atenção no tema da religiosidade e do misticismo centrados no homem, transferindo para este o centro da experiência do Sagrado, numa forma de espiritualidade que representaria um fenômeno universal, isto é, uma estrutura arquetípica inerente da alma humana.

            Dentro desse contexto, o conceito proposto por Henri Corbin de Mundus Imaginalis, formulado a partir de estudos de textos medievais árabes e persas, acaba sendo uma precisa indicação do “terreno fértil” por onde passeiam os conceitos anteriormente estudados, e onde, mais uma vez, entrelaçam-se e demonstram seus pontos de convergência.

            O conceito de “Imaginal” de Corbin (CORBIN, 1964), filósofo, tradutor e medievalista francês, revela uma forma de imaginação meta-psicológica através da qual a consciência experimenta um mundo de imagens autônomas, designado como Mundus Imaginalis, constituindo algumas representações de um mundo inteligível e irracional. São “caminhos que se fazem ao caminhar”, onde qualquer “mapa do terreno” é provisório e de uso limitado, porque a paisagem está sempre mudando, “sendo única, individual e pessoal” (CHEETHAM, 2009).

            No entanto, não são mundos incomunicáveis. Alguns “caminhantes” deixaram relatos dessas viagens interiores, numa busca por uma mediação entre o abstrato e o empírico, entre o individual e o coletivo. Esses relatos, estudados por Corbin, são chamados por ele de “visionários” e assumem um caráter arquetípico ao dimensionar a narrativa pessoal no âmbito do coletivo na forma de romances e iniciações espirituais.

            Os pontos convergentes entre os conceitos mencionados até o momento, “Numinoso”, “Arquétipo” e “Imaginal”, já começam a se delinear, mas não poderia faltar, para completar a quaternidade, o conceito de “Mitologema”, desenvolvido por Károly Kerényi (KERÉNYI, 1941), filólogo clássico e um dos estudiosos mais influentes da mitologia grega, romana e da religião antiga em geral.

            “Mitologema” representa o elemento mínimo reconhecível de um complexo material mítico que é continuamente revisto, reformulado e reorganizado, mas que, na essência, permanece a mesma história primordial. Essa história primordial é o “Mitologema”, a partícula que atravessa os mitos, o material eternamente revisitado em cada uma das narrativas.

            Ele funcionaria, então, como um modelo arquetípico que, enriquecido por uma cultura específica, daria origem ao mito. O abandono de uma criança que sobrevive e se torna grandioso trazendo profundas mudanças ao mundo é o “Mitologema” de tantas narrativas míticas, gerando as histórias de Moisés, Paris e Rômulo. A “Imagem Primordial” do Sol e a sua adoração pelos povos antigos deram origem aos mitos de Apolo, Cristo, Osíris e Mitra.

            O conceito de “Imagens Primordiais” de C. G. Jung (JUNG, 1954), com quem Kerényi colaborou ativamente, está relacionado com o conceito de “Mitologema”, porque as “Imagens Primordiais ou Arquétipos” também representam o primeiro modelo ou imagem de alguma coisa, assim como antigas impressões e experiências que se repetiram constantemente através de gerações, formando-se e alojando-se no “terreno fértil do Inconsciente Coletivo” (JUNG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, 1954).

            Em Eranos, Olga Fröebe-Kap­teyn imaginou, criou e concretizou um “sonho coletivo” de encontro entre espiritualidade, culturas e mundos. Com sua intuição, prestou atenção ao que hoje chamamos de “dimensão grupal” e às metamorfoses que acontecem nas configurações “consteladas” pelo inconsciente de um grupo, e é ela mesma quem diz:

                      Os participantes ‘começam a perceber que durante os encontros do Círculo de Eranos algo lhes acontece, e é algo que não acontece em outro lugar: eles se sentem tocados, movidos, querem voltar e sentir que pertencem a esse grupo por algum mistério ou razão. Acho que posso dizer agora (depois de muitos anos) que a razão para tudo isso é a seguinte: nós aqui representamos um grupo no qual um arquétipo está operando para seu próprio propósito. Algo está usando Eranos como uma quebra de resistência e está tentando se expressar e operar através do grupo. A mesma ideia arquetípica está movendo tanto os ensinamentos de Jung sobre o princípio da individuação quanto o trabalho de grupo de Eranos”. (Fröebe-Kap­teyn, in BERNARDINI, QUAGLINO, ROMANO, 2007).

Isa Fernanda Vianna Carvalho (isafvc@gmail.com)

Membro Analista em Formação pelo IJEP.

Fevereiro de 2019

Referências Bibliográficas:

BARONE, E. Eranos tagungen. Dal mito alla filosofia? – Filosofia e Teolo­gica, v. 8, n. 1, p. 149-165, 1995.

BERNARDINI, R., ROMANO A., QUAGLINO G. P. – Carl Gustav Jung ad Eranos 1933-1952, Antigone, Torino, 2007.

CHEETHAM, Tom (2009). Literalizing the imaginal. Disponível em:

http://henrycorbinproject.blogspot.com/2009/06/literalizing-imaginal.html. Acesso: dez. 2018.

CORBIN, Henri (1964). Mundus imaginalis or the imaginary and the imaginal. (Trad. Ruth Horine). Zürich/New York: Spring, 1972/Mundus Imaginalis, o lImmaginario e lImmaginale Disponíveis em: ;

. Acesso: fev.2019.

_______.Eranos. Eranos­-Jahrbuch, XXXI, 1963, p. 9-12. [Cor­respondente à sessão realizada em 1962].

DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1988.

_______. As estruturas antropológicas do imaginário. Ed. Presença, Lisboa, 1997/2007.

_______. O imaginário.

_______. LÉthique du pluralisme et le problème de la cohérence. Era­nos-Jahrbuch, n. 44, p. 267-343, 1975.

ERANOS FOUNDATION. Disponível em http://www.eranos.org/content/html/start_english.html. Acesso em 16.06.18

JUNG, C. G. Obras Completas – Ed. Vozes, Petrópolis.

OTTO, R. O Sagrado. Ed. Vozes, 2007.

Isa Fernanda Vianna Carvalho – 19/06/2019

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