O tema dessa reflexão é permeado por uma história: negro, Rafael, quando criança esteve escravo. Fugiu e adulto tenta sobreviver na “França das Luzes”, no início do século XX. Depara-se com severas restrições sociais devido à coloração de sua pele. Ele próprio, com seus comportamentos e decisões, também destrói e dissipa o que constrói pelo próprio esforço. Assume uma atitude de radicalização, de tudo ou nada em relação ao seu trabalho. Antes de seus 50 anos, alquebrado por tanta rejeição e luta, desiste, adoece e morre. Trata-se da história verídica do palhaço Chocolate, famoso e inovador em sua época de palcos e picadeiros, como palhaço.
Haveria outro caminho? Alguma outra possibilidade efetiva para a realização do próprio self que não a interrupção, prematura aos olhos de hoje, da vida pela morte?
O amor da maravilhosa esposa que o acolheu não lhe foi suficiente para fazer frente a tudo com que se deparava em si e fora. Queria aceitação e reconhecimento do mundo externo. Ganhar mundos…
Sua carreira de palhaço começou a partir do convite de Footit, outrora famoso, para parceria. Os fortes limites, barreiras internas e externas encontradas por Rafael poderiam ser superados criativamente nessa parceria com Footit? Talvez, se o próprio Footit, em tempo, tivesse se tornado o amigo que se tornou ao final da vida de Rafael.
A realidade observada no filme, ao contrário, foi de extremo etnocentrismo e preconceito para com o diferente, por parte do homem e branco Footit. Isso se constata até nos papéis que ele próprio representa como palhaço. Caracterizar-se, por exemplo, como oriental e mulher, evidencia o duplo preconceito e a ridicularização dessas diversidades na cena circense. Até seu nome Footit, sugere “foot it”, uma possível alusão ao imperativo: “chute-o/a”, um apelo para chutar a uma coisa ou animal, nem mesmo a alguém – “it”, nem mesmo “he/she”!
Mas, somente ao final da vida de Rafael, Footit o enxerga como um humano digno de seu respeito. Só então o reconhece como essencial e indissociável de sua própria expressão artística – e obviamente, de seu próprio sucesso no passado. O parceiro Footit poderia ter atingido essa compreensão antes? Poderiam ter como palhaços aberto “brechas” de consciência no mundo burguês da França daquela época?
A dupla que se estapeia encena literalmente uma perversão: travestir violência de brincadeira e alegria. Sempre o negro Chocolate é estapeado pelo branco Footit. Poderiam os dois palhaços se aliar e por meio da exposição do ridículo e da presunção da sociedade, da exposição dos limites e das falhas individuais inerentes aos humanos, abrir brechas e pelo riso levar a uma nova consciência? Haveria nessa possibilidade de se reconhecer artista transgressor, como palhaço, um caminho para Rafael, de autoexpressão libertadora do self fadado e expressão do self verdadeiro3?
A possibilidade da transgressão começa a despertar em Rafael através da visão de mundo de seu amigo Victor, originário de uma colônia francesa, o Haiti. Victor, negro e intelectual, não reconhece, entretanto, arte no palhaço. Não vê possibilidade alguma de transgressão e transformação social por meio desse trabalho de Rafael. Victor reconhece como legítima apenas a via de expressão artística erudita. Desse modo propõe ao amigo Rafael que seja o primeiro negro a interpretar Otelo, personagem negro de Shakespeare – até então só interpretado por brancos na França. Em face desse desafio, dessa possibilidade, Rafael rompe a parceria com Footit, abandona seu trabalho no circo, supera com grande esforço suas próprias limitações para o teatro erudito e encena Otelo. Não consegue antever o quanto a França da época não estava pronta para aceitar um negro representando esse papel – o que se evidencia na rejeição à sua atuação e presença no palco ao final da apresentação de estreia da peça. E este caracteriza-se como o ponto de derrocada final, de desistência, que Rafael não consegue superar.
Victor, como intelectual, via a si mesmo e às suas ideias como transgressoras. Mas, essa desqualificação sumária do palhaço como artista e transgressor estaria evidenciando uma profunda colonização da alma de Victor pela cultura europeia? Seria sua visão tão conservadora ao ponto de só reconhecer a arte se expressa pelo modo erudito europeu, como em Shakespeare? Victor também delimita seu próprio horizonte ao afirmar que os negros não podem nem devem descansar até que o último colonizador branco esteja morto. No entanto, Victor retorna ao Haiti sem avisar ao amigo Rafael. “Lá é melhor para ele”, diz a personagem sua vizinha, quando Rafael o procura, após a rejeição do público à sua presença no palco. O que significa esse retorno ao Haiti, esse abandono de Victor a Rafael em um momento de tão aguda crise para este último?
A sociedade moderna mostrada no filme seduz com promessas igualitárias que não se cumprem. Esmaga desse modo sonhos e possibilidades existenciais. Legitima a exploração de uns sobre outros, situações em que “uns são mais iguais que os outros”. Situações em que a alguns dos “diversos” é permitida a ascensão, ou aparente ascensão, exatamente para aos demais manter submissos. No entanto, sobre-enfatizar o alcance desse poder perverso da sociedade, não é desconsiderar o papel, o poder da psique individual, especialmente se amparada no amor?
Poderia Rafael-Chocolate ter encontrado expressão para seu self verdadeiro uma vez acolhido pelo dedicado amor da esposa e pela cumplicidade do parceiro artístico que com ele questionasse à sociedade vigente por meio das cenas hilárias dos palhaços?
Mas, à época da parceria, Footit não demonstrava questionar as normas da sociedade em que vivia e não aceitava a Rafael como igual. E Rafael, por sua vez, dissipava tudo que conseguia, como as reservas financeiras e a saúde – que poderiam lhe ter sustentado até elaborar e realizar outros sonhos, se e quando o de palhaço se esgotasse. Rafael dificultava assim, ou terminava de fechar, os poucos caminhos aos quais a intolerância da sociedade lhe permitia acesso.
Rafael identificou a si mesmo com seu ego? Identificou-se com o que já podia perceber realizado de si mesmo? Não tão cedo distanciado de seus pais poderia ter sido diferente sua história? Ou teria sido ainda mais limitante estar perto deles por mais tempo, nas condições em que estavam como escravos? Partindo desse início, Rafael poderia ter conhecido outros horizontes ainda mais distantes dos já surpreendentes que alcançou? O amor e a aceitação de Footit e da esposa, juntos, poderiam ter constituído o objeto transformacional4 que lhe faltara?
Dado ser uma história verídica, ocorrida no passado, e que se mostrou fadada, nunca haverá uma resposta alternativa para essa vida específica, individual.
Rafael, ao final de sua vida, questiona se apenas não se considerou erradamente como igual a um branco… Buscar “comprar a cor social branca”, na tentativa de ultrapassar os limites dos preconceitos, sempre se apresentará como uma via forte e sedutora de perder-se de si mesmo? Entre as oscilações e ciladas da autoaceitação e da aceitação social, haverá amor suficiente que ampare e agregue as partes do ser, em um existir pleno de desdobramentos de si mesmo no próprio destino? Para Chocolate, e para quantos outros negros e outros diversos, não.
Mas, em quem não habita o diverso? Quem em quantos de seus aspectos não tem caracterizado o diverso? O ódio ao desconhecido, pouco conhecido, diverso projetado manifesta-se ainda. Quanto a humanidade ainda vai se permitir postergar ou se furtar ao trabalho de integração de conteúdos inconscientes, como os que enredaram a Rafael – assim como cada um dos conteúdos que desafiam, constituem e enredam a todos nós?
Fato é que apenas o confronto consigo mesmo, por todos e cada um de nós pode nos levar além do limitado e conhecido. O racismo aqui nessa história e em quantas outras, encontra prisão no próprio ego, que está colado na persona do que não tem direito e por isso aceita a demanda que lhe é imposta, impedindo a vida em plenitude.
Sem entrega à orientação do Self transformador, Chocolate, Footit ou qualquer outro ser humano continua preso aos limites do já vivido, já trilhado, já conhecido. Não se renova, não se transforma. E o ego que antes permitia gerir a própria vida, a própria vontade consciente, agora torna-se a nova prisão da qual a pessoa não consegue se libertar. Dentro da qual definha e sufoca até morrer devido à própria unilateralidade. Prisão da qual somente um profundo gesto de desapego e coragem pode nos libertar, a entrega ao processo de individuação.
A história de Rafael-Chocolate pode nos ajudar a refletir sobre o papel do amor na expressão do Self, no processo de se confrontar constantemente com a unilateralidade que escraviza. Ser capaz de acolher o amor que recebeu e de amar à sua esposa, ao amigo, a si mesmo e nessas vivências ir se descolando do ego outrora reluzente das luzes do palco, percebendo-se como mais do que a personagem idolatrada pelo público, poderia ter pavimentado um caminho de descobertas e novas alternativas ao herói que mesmo vencendo tantas e tão assustadoras batalhas, não soube descolar-se do ego que outrora já brilhara e que então já não mais ampara sua expressão, seu viver.
Silvia Maria Guerra Molina – analista em formação pelo IJEP- silvia.maria@gmail.com; (19)99151-0909 (Piracicaba, SP)
1 Reflexões elaboradas a partir de aula sobre o Verdadeiro Self e Self Fadado, discutindo o Filme Chocolate (2016, Roschdy Zem), no curso Christopher Bollas e o idioma pessoal, ministrado por Amnéris Maroni e João Paulo Ayub, na Associação Pallas Athena de 16/10 a 6/11 de 2017 (total 8h).
2 Termos cunhados por Christopher Bollas, referindo-se o Self Fadado àquele que não adquiriu no convívio parental primevo a capacidade de estruturar um ego capaz transformar, de negociar com situações que se apresentam e se constroem, expressando o Self Verdadeiro e desse modo construindo, desdobrando o próprio destino. O Self Fadado está limitado a repetir situações que o restringem ao horizonte já vivido.
3Parceiros, interlocutores – idealmente os pais, posteriormente outros significativos, objetos culturais e (ou) o(a) analista – que em inter-relação saudável permitem/propiciam o aprendizado da transformação de situações eventualmente “fadadas” em situações adequadas para a expressão do self verdadeiro e realização do destino.