Da janela digital do meu computador observo atentamente a busca inconsciente quase desesperada das pessoas por sentido e significado em suas vidas. Talvez, numa época em que a transparência exagerada não fosse algo tão presente no cotidiano do ser humano, fosse mais difícil perceber tal comportamento. Mas assim, com tudo exposto, publicado, compartilhado e reproduzido de maneira massificada na internet o tempo todo, a dificuldade é não ver. No entanto, paradoxalmente, o mais difícil é o que acaba acontecendo na prática: a maioria das pessoas passa de uma imagem para outra sem prestar a menor atenção no que elas representam em suas camadas mais profundas. A vitória é dos algoritmos, representantes fiéis da sociedade do consumo e da cultura de massas.
C. G. Jung encontrou no texto alquímico chinês chamado O segredo da flor de ouro a correspondência simbólica para os processos de transformações psíquicas que ele mesmo vivia em seu mundo interior; a partir daí, continuou ampliando e amplificando as imagens alquímicas encontradas nos mais variados tratados. O ouro, que já aparece inclusive no título desse texto chinês, é um dos símbolos mais marcantes que representam o si-mesmo, a totalidade e o resultado da transformação psicológica que leva à criação de consciência e ao processo de individuação.
Podemos entender o ouro como o germe do “ser-um-só”, é o aurum philophosorum, a semente que dará origem à totalidade e da qual nascerá a ave de Hermes que pode ser comparada a uma fênix, símbolo do constante ciclo de morte e renascimento que precisamos experienciar de maneira repetida durante nossa existência terrena. Essa ave é formada a partir dos vapores que surgem do elixir do lápis philosophorum que pode transformar tudo em ouro. O ouro é a meta de toda opus alquímica (JUNG, 2011a). Ele carrega a ideia de perfeição; é como se a numinosidade arquetípica se manifestasse em sua luz celeste e divina. Em chinês o ouro é chamado de Kin, que etimologicamente indica algo que seria produto de uma gestação lenta, de uma transformação e do aperfeiçoamento de algo. Encontramos o mesmo princípio na alquimia ocidental: “A transmutação é uma redenção, é a transformação do homem, por meio de Deus, em Deus” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 669).
A partir da ideia do ouro como representante simbólico do si-mesmo, vamos dar atenção à uma pequena história chinesa de autoria atribuída ao filósofo Lao Tsé:
O homem que não enxergou ninguém[1]
Havia um homem no estado de Qi que desejava possuir ouro. Numa manhã ele se vestiu com sua melhor roupa e foi até o mercado local. Chegando na banca do comerciante de ouro, ele agarrou uma peça e correu como louco.
O policial que o prendeu perguntou: “Porque você roubou o ouro na frente de tantas pessoas?”
Ele respondeu: “Quando eu peguei o ouro eu não enxerguei ninguém. Tudo o que eu vi foi o ouro”. (YANG, 1957, p. 21)
Impressiona como um texto que data do século V a.C. ainda conte muito sobre o comportamento do ser humano contemporâneo, parece que aprendemos muito pouco durante esse tempo. Num breve exercício de ampliação, podemos brincar com a imagem dessa narrativa e encontrar correspondência com a vida da maioria das pessoas nos dias de hoje. A força arquetípica do ouro que, supostamente deveria ser encontrada de maneira simbólica no mundo interior, acaba projetada de maneira literal no mundo concreto. A peça de ouro que o personagem da história deseja possuir pode ser compreendida como a projeção do si-mesmo no mundo externo. Me parece que é exatamente esse o tipo de atitude que podemos observar em grande parte da população da sociedade contemporânea. Para além disso, nos dias de hoje, o ouro é transformado e confundido com as mais diversas conquistas que podem ser materiais ou até mesmo digitais. Podemos pensar em muitos exemplos, mas de uma maneira geral, mesmo os objetivos que podemos classificar como superficiais, têm por trás o desejo de poder, seja ele financeiro, econômico, social ou político.
Retomando a imagem da história, o homem, cego pelo desejo, não enxergou ninguém quando agarrou a peça de ouro. Aqui cabe a provocação: qual é ouro em nossas próprias vidas? O que temos como objetivo que nos cega fazendo com que não enxerguemos as pessoas à nossa volta? Será o dinheiro? O reconhecimento? Será o número de seguidores ou de visualizações nas redes sociais? Em qual – ou quais – objeto está projetado aquilo que só o verdadeiro autoconhecimento pode fazer surgir de maneira luminosa em nosso caminho? O ser humano se esconde atrás de valores ditados pela sociedade do consumo; encontra facilmente justificativas para as atitudes que o mantém longe do conflito ético e moral que precisa enfrentar para encontrar o verdadeiro caminho para o si-mesmo. “Esse é o meu ouro, tenho certeza!” diz a pessoa para esconder, na verdade, sua preguiça e seu medo de enfrentar o desconhecido e o sombrio que existem na sua própria psique. Quando desfazemos as projeções, somos obrigados a lidar com a realidade do mundo interior; só podemos fazer isso com disposição, prontidão e atitude para empreitar a opus de que tanto falaram os alquimistas.
Para a sociedade, nada é mais alienante e devastador do que esse comodismo e essa irresponsabilidade moral e, por outro lado, nada é mais provocante para a compreensão e a aproximação do que o abandono das projeções. Essa correção necessária requer autocrítica, uma vez que não se pode obrigar a alguém a entender suas projeções (JUNG, 2011b, p. § 577).
Diferentes comportamentos ilustram essa busca literal por algo que deveria ser uma transformação simbólica e mostram o absurdo, o exagero, o descomedimento e o desespero do qual eu falava no início desse texto me referindo à transparência exagerada, patológica e muitas vezes falsa da vida digital e digitalizada. Algumas pessoas chegam ao ponto de pagar valores exorbitantes para literalmente comer o metal. Através de uma busca simples na internet, podemos encontrar as mais diferentes receitas que levam ouro em seu preparo; encontramos desde cobertura de sorvete decorada com fios de ouro até churrasco folheado com o metal. As informações são as mais diversas e confusas sobre se isso faz bem ou não ao organismo, a maioria das pesquisas mostra que, aparentemente, ingerir o metal não tem efeito fisiológico algum, nem para o bem, nem para o mal. Porém, o mais importante para a nossa análise psicológica do fenômeno é que isto serve como mais um exemplo da literalização inconsciente em busca do si-mesmo e da imortalidade que esse metal representa: o ouro, por ser um metal que não oxida, é símbolo da vida eterna; condição almejada, simbolicamente, pelos alquimistas taoistas. Para aqueles de menor poder aquisitivo, que não podem se alimentar de ouro, resta tentar a sorte em outras projeções: no trabalho incessante e compulsivo; na esperança de ganhar, de uma hora para outra, uma grande quantidade de dinheiro; na atitude de roubar o ouro literal de outros etc. Obviamente, esses comportamentos não são exclusivos daqueles que não possuem poder financeiro para ingerir ouro, na sociedade de hoje, parece que a maioria age da mesma maneira, procurando compulsivamente fora algo que poderia ser encontrado dentro. Na minha visão, um comportamento que pode ser visto como um dos maiores expoentes dessa projeção se revela no vício nas redes sociais, onde, paradoxalmente, as pessoas perseguem a imortalidade em imagens mortas dos outros e de si mesmas.
O homem que busca o ouro fora de si torna-se um ladrão que rouba de si mesmo a possibilidade de transformação; a obtenção concreta do metal precioso não é o objetivo buscado pelos verdadeiros alquimistas porque, se a argila pode ser transmuta em ouro, então as duas coisas são uma só. Somos argila e ouro e através do processo alquímico que leva à transformação e à transmutação podemos transitar entre as duas condições. A matéria é ambivalente, portanto o próprio ouro é ambivalente, assim como Hermes:
Hermes, o iniciado, o condutor de almas, o mensageiro divino e o deus do comércio, é também o deus dos ladrões, significando assim a ambivalência do ouro” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 671).
Hermes é o deus do comércio e dos ladrões! Na história de que tratamos parece que ele tomou o partido do comerciante, mas talvez estivesse agindo à serviço da totalidade mostrando, através do revés, que algo precisava se tornar consciente na vida do larápio. Podemos dizer que a negação da possibilidade da experiência simbólica explicita na cegueira desejosa e literal do homem enfureceu o deus que o leva ao aparente infortúnio. Ele apanha o ouro, cego pela possibilidade de supostamente encontrar o si-mesmo, mas como não leva em conta a coletividade – não enxerga ninguém – acaba preso. Ora, sabemos que a jornada do herói só é completa quando o elixir mágico, ou seja, o tesouro conquistado, é oferecido para a coletividade. Do contrário o aventureiro não é herói, é apenas mais um ser identificado com o monoteísmo da consciência. Para o processo de individuação acontecer é preciso que seja oferecido uma contrapartida para a coletividade e tudo isso caracteriza um movimento contínuo que precisa ser repetido sempre e de novo. Afinal, falamos aqui de um processo dinâmico que não alcança a estase enquanto estivermos aprisionados em nossa dimensão corpórea, até a morte será preciso lidar com a sombra.
Para encerrar esse pequeno ensaio, retomo a provocação proposta anteriormente: será que aquilo que buscamos em nosso cotidiano é uma expressão verdadeira do mito do nosso significado individual, ou será que somos apenas tolos correndo atrás de algum ouro enquanto não enxergamos as pessoas à nossa volta?
José Balestrini – Membro Analista do IJEP; Analista Didata em Formação do IJEP
Analista Didata Responsável – Waldemar Magaldi
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[1] Essa é uma tradução livre do autor; o texto original em inglês pode ser encontrado no livro citado nas referências.