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Os indígenas na sombra coletiva brasileira

Este texto é um convite (e uma provocação) para refletirmos de forma crítica sobre a sombra coletiva projetada nos povos indígenas. Para isso, é importante contextualizar o Espírito da Época no período de colonização e do contato entre os índios e os brancos ocorridos no Brasil.

No tempo das grandes navegações, boa parte da Europa estava sob forte domínio político, econômico, moral, social etc. da Igreja Católica, e a sociedade estava profundamente marcada pelo pensamento religioso com seu conceito de pecado. A organização social era basicamente dividida entre Clero, Nobreza e Servos. A Igreja Católica não se diferenciava das estruturas de poder, principalmente nos países ibéricos e os jesuítas faziam parte do pacote colonizador/civilizador das novas terras. Havia uma intensa repressão no campo das ciências, pensamento, na sexualidade e liberdade.

Além da fortíssima influência no poder político e social, a Igreja também detinha o poder financeiro/material, ocasionando na exigência do celibato aos padres para evitar a repartição dos bens em caso de herdeiros ou família. A participação da mulher na sociedade era nula, sua função mais básica era casar para gerar filhos ou serem usadas como moeda de troca para alianças políticas.

Dado esse contexto, o Espírito da Época foi marcado por uma profunda sombra, onde o diferente do convencionado era tido como demoníaco, primitivo, inadequado, que deveria ser aniquilado. Numa perspectiva de descobertas de novas terras e seus habitantes, a escolha (quando oferecida) era entre se converter ou morrer.

Ao mesmo tempo, nesta época o Brasil era povoado por diferentes nações indígenas que tinham um modo de vida livre, a nudez do corpo não era um tabu,  trabalhavam em prol da tribo e da coletividade, detinham o saber da terra e mantinham um profundo saber ancestral. Não havia um pudor e um medo do corpo como na perspectiva da cristandade europeia, ao mesmo tempo, o corpo não era erotizado e portanto, não necessitava ser escondido.

Ao chegarem no Brasil, os portugueses não consideraram os indígenas como humanos pois viviam de forma extremante antagônica aos modos impostos pela igreja. Além disso, a nudez dos corpos constelara a sombra do tabu e da sexualidade nestes homens. Por isso, os europeus classificaram os indígenas como seres animalescos e primitivos, desprovidos de alma, que apenas seriam salvos mediante a catequização e ao batismo.

Como a castidade, a “pureza” de espírito, a repulsa ao corpo e a busca da vida de santidade eram os valores constituintes à persona e à consciência coletiva dos europeus, eles projetaram sua sombra nos povos indígenas e acreditavam que, ao forçar os indígenas a negar suas crenças, estariam gerando benefício espiritual e os fazendo evoluir de uma condição semianimal a um humano de verdade (CARIBÉ, 2020).

Nessas terras o corpo não era um tabu, mas colocou os portugueses frente a frente com o que mais temiam: o corpo das mulheres indígenas despertou o desejo sexual masculino. Desejo este que também se lançou para a natureza (a grande mãe) que aqui exuberava em suas riquezas.

Não demorou muito para que os portugueses passassem a ter filhos com as mulheres indígenas, uma vez que para elas o sexo não era um tabu e nem algo cercado de tantos mistérios. Os filhos gerados entre o pai/homem português e a mulher/mãe indígena eram considerados bastardos e não foram reconhecidos pelo pai e não podiam aprender a língua e religião da mãe.

Na psicologia analítica, a sombra é composta pelos conteúdos psíquicos rejeitados pelo ego e por aspectos que ainda não atingiram a consciência. A sombra coletiva, de uma família, de um grupo ou até de um povo, é a soma e a sobreposição das sombras individuais, ou seja, os aspectos negados pelos indivíduos compõem um aspecto considerado sombrio por um grupo.

A sombra, que está em conflito com os valores reconhecidos (isto é, a fachada cultural sobre a animalidade) não é aceita como uma parte negativa da própria psique da pessoa e, portanto, é projetada para o mundo exterior e vivenciada como um objeto exterior. Ela é combatida, castiga da e exterminada com “aquele estranho lá fora “, em vez de ser tratada como um problema interior da própria pessoa (ZWEIG e ABRAMS (2012), no caso dessa persona coletiva.

Conforme a Psicologia Analítica, ao projetarmos a sombra sobre os outros atribuímos a eles aquelas qualidades “sórdidas” que gostaríamos de negar em nós mesmos.

Todo saber indígena sobre seu modo de vida religioso, espiritual, medicinal, social, coletivo, ao pertencimento à natureza e a terra foram fortemente reprimidos pelos portugueses e “jogados” ao inconsciente coletivo desde então e considerados de menor valor, ou ainda, apenas ilustrações de um passado distante e não-civilizado.

            Ao pensarmos em arquétipo materno, é importante emergir do inconsciente coletivo que a imagem arquetípica da grande mãe brasileira é uma mulher indígena.

E que a criança bastarda fruto do desprezo do pai e da negação dos saberes da mãe se fixou na sombra do povo brasileiro como um sentimento de negação de seu próprio valor, uma espécie de desvalorização constelada no inconsciente coletivo brasileiro onde sofremos por não saber onde somos bons e por tentarmos o reconhecimento do outro, a agradar o todo tempo (GAMBINI, 2020).

Para Caribé (2020) a violência colonizadora se reproduz em nossa alma sob a forma de complexos culturais, tais como o da escravidão, do holocausto, da busca de identidade, da inferioridade, da orfandade, entre outros.

Além disso, ainda compõe a sombra coletiva brasileira um sentimento que o indígena é inferior e, atualmente, ainda é visto como habitante indesejado, que deveria se entregar à civilidade branca e capitalista ou viver uma vida nas sombras onde as práticas originárias não são aceitas socialmente. Muitos ainda veem o índio como coisa do passado.

Basta lembrar a fala recente do presidente em exercício que “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”.[1]

Ao trazermos essa reflexão para a contemporaneidade vimos que este tropeço comunicativo ainda reflete sobre a inserção do indígena na sombra e inconsciente coletivo brasileiro. Por que tantos brasileiros após mais de 500 anos de convivência ainda não os consideram humanos ou parte integrativa da nossa sociedade? Quais projeções estão em ação na negação deste outro?

Devemos sempre lembrar que “a sombra coletiva, agregada e institucional sempre contém a sombra não examinada de cada um de nós. Aquilo do qual somos inconscientes, ou não desejamos enfrentar, contribuirá para nossa sombra coletiva e institucional.” (HOLLIS, 2010)

Aos índios é negado o direito a terra, a cultura própria aos seus modos de vida. E pior: muitas vezes se nega a humanidade ao indígena ao projetar sobre ele expectativas de seres bons, puros, nos moldes do “bom selvagem” ou do ser da terra.

A sombra sobre os indígenas está cada vez mais evidente e perversa, quando o atual presidente em exercício culpa os indígenas e ONGs por queimadas, devastações e consequências da COVID-19 em seu discurso na ONU.[2]

Criminalizar os indígenas, estigmatizá-los sobre a pecha de selvagens, vagabundos, preguiçosos revela a grande perversidade constelada na sombra coletiva vigente pois, “a medida que os indivíduos inseridos num grupo ou nação tornam-se idênticos à consciência cultural, também eles pertencerão a sombra coletiva” (STANFORD, 1988).

Ao termos coragem de encarar nossa sombra individual, fazer emergir preconceitos e tabus, trabalhar para integrá-los à consciência, começaremos a despotencializar essa sombra e a formar nossa “alma brasileira”.

Como analistas junguianos, nos aprofundamos nos estudos principalmente dos mitos gregos e não olhamos os mitos dos povos originários com a profundidade que eles merecem. Temos um “excesso de Grécia” e uma miopia para os saberes dos ancestrais da nossa terra. Temos muita Ariel e pouca Yara.

Por isso faz-se urgente que nós como brasileiros passemos a pesquisar sobre nossa história sem distorções românticas, a ler as mitologias dos nossos indígenas, a investigar os saberes ancestrais da nossa terra, a ouvirmos com alma os conselhos de Nhanderu[3]. O caminho para a cura do inconsciente cultural latino-americano passa pelo reconhecimento dos símbolos, mitos e tradições dos nossos povos originários (CARIBÉ, 2020).

Ser brasileiro é também assumir sua alma ancestral indígena.

Daniela Euzebio – analista em formação pelo IJEP – (11) 99623-5529 SP

Mauro Soave – analista em formação pelo IJEP – (61) 9677-4719 BRASÍLIA

Referências

CARIBÉ, Teresa. Somos todos Tupinambá in OLIVEIRA, Humbertho (org). Morte e renascimento da ancestralidade indígena na alma brasileira: psicologia junguiana e inconsciente cultural, (Coleção Reflexões Junguianas). Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.

OLIVEIRA, Humbertho (org). Morte e renascimento da ancestralidade indígena na alma brasileira: psicologia junguiana e inconsciente cultural, (Coleção Reflexões Junguianas). Petrópolis, RJ: Vozes, 2020

GAMBINI, Roberto. Morte e Renascimento da Ancestralidade Indígena na Alma Brasileira. Publicado em 22 de julho de 2020. Acesso em 24/09/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Um1xKVmahOg&ab_channel=RobertoGambini

GAMBINI, Roberto – O Espelho Índio – Os jesuítas e a destruição da alma indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2016e (Obras completas de C.G.Jung, v. 7/1).

JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo: civilização em mudança. Petrópolis: Vozes, 2016b (Obras completas de C.G.Jung, v. 10/2).

ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs) – Ao Encontro da Sombra. São Paulo – Cultrix, 2012

HOLLIS, James – A Sombra Interior – Por que pessoas boas fazem coisas ruins? São Paulo – Novo Século, 2010

SANFORD, John A. MAL – O Lado Sombrio da Realidade. São Paulo: Paulinas, 1988


[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/24/cada-vez-mais-o-indio-e-um-ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro-em-transmissao-nas-redes-sociais.ghtml

[2] https://www.brasildefato.com.br/2020/09/22/bolsonaro-culpa-indios-caboclos-midia-e-ongs-por-queimadas-e-consequencias-da-covid

[3] Em guarani, “Nhanderú etê” significa “Deus Verdadeiro”. É o Deus de forma humana cujos olhos refletem a infinidade das cores. Onde aparece, reflete luz. Vaga pelo cosmos num veículo voador chamado “Bairý” (https://www.xapuri.info/sagrado-indigena/nhanderu-o-deus-luz-guarani-da-infinidade-das-cores/#:~:text=%E2%80%9CNhanderu%20ete%E2%80%9D%20percorreu%20o%20%E2%80%9C,%E2%80%9CBair%C3%BD%E2%80%9D%20at%C3%A9%20a%20Terra.)

Daniela Euzébio e Mauro Soave – 19/10/2020

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