“As crianças são ‘seres fusionais’, ou seja, que, para serem, precisam entrar em fusão emocional com os outros. Esse ser com o outro é um caminho relativamente longo de construção psíquica em direção ao ‘eu sou’”. (GUTMAN, 2021, p. 24. Grifos da autora). Portanto, querendo ou não, reconhecendo ou não, pais e mães mantém uma relação intrínseca, corporal e emocional, com os seus filhos. Segundo Jung expõe, se a criança está de tal modo ligada à atitude psíquica dos pais, o que importa não são palavras boas e sábias, mas sim como eles agem e a vida real desses pais. (Cf. JUNG, 2021ª, p. 48-49).
Podemos pensar então que, o desconhecimento sobre a relação fusional da figura paterna e materna com a criança e sobre a ligação psíquica familiar, afeta a dinâmica das famílias contemporâneas. Seja na clínica ou nas relações pessoais, encontramos cada vez mais mães e pais que não conseguem compreender as necessidades, angústias e carências físicas, emocionais e espirituais de seus filhos e, mesmo aqueles que dizem viver num ambiente sem brigas e com afeto, relatam as mesmas questões e desafios.
Segundo a autora Gutman, todas as crianças se relacionam fusionalmente e esse processo acontece de forma lenta e gradual. Na fase recém-nascida até cerca de 2 anos, o bebê está fundido com a emoção da mãe ou figura materna, vivendo a relação que chamamos de bebê-mãe. E, à medida que cresce, esse laço vai sendo ampliado para o pai ou figura paterna até chegar nas outras pessoas que fazem parte dessa relação de cuidado, proteção e confiança. “A passagem da fusão à separação requer do ser humano longos 13 ou 14 anos, conforme cada indivíduo” (GUTMAN, 2021, p. 25).
“A criança tem uma psicologia singular. Assim como seu corpo, durante a vida embrionária, é uma parte do corpo materno, também sua mente, por muitos anos, constitui parte da atmosfera psíquica dos pais. Este fato esclarece de pronto porque muitas das neuroses infantis são muito mais sintomas das condições psíquicas reinantes entre os pais do que propriamente doença genuína da criança. Apenas em parte a criança tem psicologia própria; em relação à maior parte ainda depende da vida psíquica dos pais” (JUNG, 2021, p. 84).
Tais esclarecimentos se fazem necessários para que possamos compreender como aspectos ocultos e/ou inconscientes dos pais afetam os filhos. E quando transferimos essa dinâmica psicológica para a nossa sociedade contemporânea onde, de acordo com dados da Organização Nacional de Saúde (OMS), somente no Brasil, cerca de 18,6 milhões de pessoas sofrem de transtorno de ansiedade e, segundo a revista Nursing, mais de 50% dos brasileiros afirmam que a sua saúde mental piorou nos últimos anos, abrir essa caixa de pandora do inconsciente materno e paterno se torna mais do que urgente.
Uma sociedade doente é capaz de criar crianças felizes?
Essa é uma pergunta bastante dura para quem, assim como eu, tem filhos. Mas justamente pelo incômodo e até certo pavor que ela causa que é preciso colocá-la na pauta das famílias, das escolas, das empresas e de toda a sociedade. Queremos ter crianças educadas, inteligentes, corajosas, gentis, saudáveis…, mas será que estamos aptos para favorecer esse desenvolvimento de forma equilibrada e positiva emocionalmente?!
A chegada de toda criança traz para seus pais a abertura de um grande portal. Um portal que os leva para um lugar desconhecido, ambíguo e cheio de antinomias. Porém, aqueles que arriscam atravessá-lo, têm a possibilidade de entrar num novo mundo. O mundo do autoconhecimento e, assim, possibilitar as crianças que se liberem das neuroses que rondam o inconsciente de seus cuidadores.
Entender que as crianças são seres fusionais é o caminho para entender a importância do “para que” a criança chora e adoece. Qual o propósito desses sintomas para essa família que sofre junta.
Neste sentido, podemos compreender que, enquanto a criança é uma oportunidade no caminho do autoconhecimento mais profundo, é também um processo desafiador, que gera muitas angústias, medos e confrontos com as mais profundas convicções. Na verdade, estamos falando sobre o contato direto com a sombra desses pais e mães, ou seja, daqueles aspectos ocultos presentes no inconsciente pessoal e que por uma necessidade adaptativa fomos adormecendo/esquecendo ou não valorizando ao longo da vida.
“[…] sombra, aquela personalidade oculta, recalcada, frequentemente inferior e carregadas de culpas, cujas ramificações se estendem até o reino de nossos ancestrais. A sombra não é constituída apenas de tendências moralmente repreensíveis, mas apresenta um certo número de boas qualidades: instintos normais, reações adequadas, impulsos criadores, e outros”. (JUNG, 2020, p. 312-13).
Entrar em contato com a sombra é ampliar a consciência sobre si mesmo e, querendo ou não, somos compostos de aspectos positivos e negativos, bons e maus, bonitos e feios e todas as dualidades que cabem em qualquer ser humano. Não à toa, todo processo de autoconhecimento gera crise. Porém, podemos olhar para uma experiência de crise como algo extremamente ruim ou uma possibilidade evolutiva.
Quando insistimos em negar a nossa sombra, e não seguir no caminho da ampliação da consciência, tais aspectos reaparecem no plano físico. E como diz Gutman (2021, p. 163), “essa materialização inconsciente dos aspectos ocultos de nossa alma se intitula sintoma”. Dentro do ambiente familiar, o adoecimento da criança, seja ele físico ou emocional, está diretamente ligado a essa relação fusional e inconsciente da dinâmica psíquica entre pai, mãe e filhos. Por isso, o processo de “cura” do mal-estar dos bebês e das crianças perpassa pela prontidão de seus pais em reconhecer, cuidar e ressignificar a sua parte oculta nessa história.
“Assim como os adultos precisam da doença para materializar e compreender com maior exatidão seus desequilíbrios, os bebês e as crianças pequenas também funcionam como espelho da desarmonia dos adultos com os quais estão em fusão” (GUTMAN, 2021, p. 168-69. Grifos da autora).
Portanto, cuidar das nossas crianças inclui se preocupar com bem-estar delas, suprindo suas necessidades básicas. Mas para além disso, perguntar-se verdadeiramente o que está em desequilíbrio na família e o que não está sendo dito, encarado e reconhecido. O sintoma pode ser a possibilidade de nos questionarmos sobre os nossos aspectos inconscientes e buscar colocar luz na nossa escuridão.
Diante disso, como responder à questão: uma sociedade doente é capaz de criar crianças felizes?
Talvez não exista uma resposta clara e simples para essa questão. E, de fato, a proposta deste artigo não é trazer uma resposta, mas sim propor uma reflexão sobre o quanto nós, mães e pais, atravessamos o desenvolvimento psíquico dos nossos filhos quando estamos inconscientes sobre nós mesmos. Minha singela intenção ao escrever estas linhas não é sentenciar, mas sim, quem sabe, despertar dentro de cada pai e mãe a fagulha para o processo de autoconhecimento. Por mais angustiante e perturbador que possa ser reconhecer o desconhecido em si, somente quando nos tornamos conscientes sobre quem de fato somos é que temos a possibilidade de transformar. Portanto, ao invés de dar uma resposta, gostaria de propor um novo questionamento: vamos criar filhos felizes ou filhos com coragem para viver?!
Clarisse Grand Court – Analista Junguiana em Formação pelo IJEP
Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata.
Referências:
ANDRADE, Jéssica. Mommy Burnout: conheça a síndrome do esgotamento mental materno. Correio Brasiliense. 2022. https://www.correiobraziliense.com.br/ciencia-e-saude/2022/04/4999262-mommy-burnout-conheca-a-sindrome-do-esgotamento-mental-materno.html. Acesso em: 18 agosto de 2022.
Revista Nursing. Brasil é o país mais ansioso do mundo, segundo a OMS. http://www.revistanursing.com.br/brasil-e-o-pais-mais-ansioso-do-mundo-segundo-oms/#:~:text=Dados%20da%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Mundial%20de,no%20topo%20do%20ranking%20mundial. Acesso em: 22 novembro de 2022.
Site PEBMED. Saúde mental de 53% dos brasileiros piorou entre 2020 e 2021, aponta estud.o https://pebmed.com.br/saude-mental-de-53-dos-brasileiros-piorou-entre-2020-e-2021-aponta-estudo/#:~:text=Mais%20de%2050%25%20dos%20brasileiros%20afirmaram%20que%20sua%20sa%C3%BAde%20emocional,74%20anos%2C%20de%20forma%20online. Acesso em: 22 novembro de 2022.
GUTMAN, Laura A maternidade e encontro com a própria sombra. 21.ed. Rio de Janeiro: BestSeller, 2021.
GUTMAN, Laura O poder do discurso materno. 5.ed. São Paulo: Ágora, 2019.
JUNG, Carl Gustav. Aion: ESTUDO SOBRE SIMBOLISMO DO SI-MESMO. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2020.
______. O desenvolvimento da personalidade. 14.ed. Petrópolis: Vozes, 2021a.