Nesta reflexão proponho que, assim como há partos físicos, também vivemos partos psíquicos: rupturas internas que impulsionam o autoconhecimento. Inspirado por mitos, análise da natureza e Jung, o ensaio mostra como tensões entre consciente e inconsciente geram renascimentos simbólicos ao longo da vida.
Em uma experiência pessoal durante um evento entrei em contato com uma das versões míticas do nascimento de Eros, no banquete de Platão (PESSANHA, 1991, p.73) que tinha, de forma bem resumida, a seguinte narrativa: Na festa que os Deuses deram em homenagem ao nascimento de Afrodite, Pênia, a Pobreza, veio no final recolher algumas migalhas da festa. Pênia ao ver Poros, o deus dos recursos, que estava adormecido no jardim de Zeus após se embriagar com o néctar, se encanta com ele, se deita ao seu lado fazendo com que ele despertasse e se relacionassem. Desta união nasce Eros, o deus do amor, do vínculo afetivo.
Os mitos trazem uma dinâmica arquetípica: Seria necessário a escassez, a pobreza, para que os recursos em nós sejam despertados e nesse despertar nasça algo muito maior como o amor, Eros?
Aprofundando nesse pensar, ao observar as relações da natureza, observa-se um processo similar nos nascimentos dos animais e para construir esse raciocínio usarei os pássaros como exemplo: seus filhotes nascem quando rompem a casca do ovo, esta um dia foi sua proteção, mas no decorrer do desenvolvimento do passarinho torna o espaço pequeno e limitador para que sua vida pudesse continuar ali dentro, fazendo com que o filhote finalmente nasça.
Ampliando essa análise percebe-se a repetição desse mesmo padrão: Existe sempre algo interno que vai crescendo ao longo do tempo até atingir o involucro que o protege externamente. O que cresce internamente começa a pressionar o “involucro” até que este se rompa e uma nova vida nasça. Os partos biológicos, envolvem uma grande força que se opõe às limitações oferecidas, precisam de pressão e desconforto para acontecer, seja no caso de uma plantinha que rasga a casca da semente, seja no caso dos pássaros que quebram a casca do ovo ou no caso de um ser humano que já não cabe mais na barriga de sua mãe.
E dessa análise surgiu uma nova reflexão sobre os diversos nascimentos da vida de fora e da vida de dentro, afinal de acordo com a segunda lei hermética da correspondência (INICIADOS, [s.d.], p.13): “O que está em cima é como o que está embaixo, e o que está embaixo é como o que está em cima.”
Onde esta lei estabelece uma correspondência entre o mundo macrocósmico e o mundo microcósmico, indicando que o universo é uma reflexão de si mesmo. Ou seja, há uma harmonia entre os diferentes planos de existência: o físico, o mental e o espiritual. O que acontece em um plano reflete no outro.
Sendo assim se temos partos físicos, míticos, não poderíamos ter partos psíquicos? Seriam esses provocados por uma tensão entre uma potência de vida e as barreiras que a envolvem?
Jung no seu livro A Natureza psíquica vai dedicar um capítulo inteiro para nos apresentar o conceito de função transcendente onde ele nos explica que esta surge quando na aproximação dos opostos, na dinâmica compensatória entre consciente e inconsciente, a psique trabalha nessa tensão entre os opostos, tensionando os conteúdos conscientes e inconscientes opostos, tornando possível a passagem de uma atitude para outra, sem perda do conteúdo inconsciente.
Essa tensão é dinamizada quando um afeto anteriormente não relacionado converte-se em uma ideia mais ou menos clara e articulada com o apoio da consciência.
“A resposta, evidentemente, consiste em suprimir a separação vigente entre a consciência e o inconsciente. Não se pode fazer isto, condenando unilateralmente os conteúdos do inconsciente, mas, pelo contrário, reconhecendo a sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência e levando em conta esta importância. A tendência do inconsciente e a da consciência são os dois fatores que formam a função transcendente. É chamada transcendente, porque torna possível organicamente a passagem de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente” (JUNG, 2019, p.145)
Seria então o inconsciente nossa fonte de recursos, nosso Poros em nós? Jung diz:
“o inconsciente contém não só todo o material esquecido do passado individual, mas todos os traços funcionais herdados que constituem a estrutura do espírito humano” (JUNG, 2019, p.132)
Seria a consciência a casca do ovo que envolve tartarugas e pássaros, promovendo futuramente a pobreza de nós?
“a consciência, devido a suas funções dirigidas, exerce uma inibição (…) sobre todo o material incompatível, em consequência do que, este material incompatível mergulha no inconsciente; 3) a consciência é um processo momentâneo de adaptação”. (JUNG, 2019, p.132)
Durante nossa jornada, seja do lado de fora, seja do lado de dentro precisamos estar atentos as dores dos vários partos que vão acontecendo ao longo da vida, afinal “a vida do inconsciente prossegue o seu caminho e produz continuamente situações problemáticas” (JUNG, 2019, p.142) que trarão o incomodo necessário à consciência com a finalidade de produzir um parto psíquico (integrar conteúdos inconscientes) na consciência.
Pensando em minha própria trajetória pessoal, analiso quantas vezes vivi esses Partos, desde os que me fogem à lembrança consciente como quando houve a ruptura do meu aleitamento materno para que pudesse me alimentar dos alimentos extra-corpo-materno até aos acontecimentos que carrego vivamente na memória como o abandono do meu corpo de criança me tornando uma jovem mulher ou, um dos mais recentes, quando rompi com as expectativas externas e egóicas sobre a vida profissional e sucesso financeiro, trazendo uma nova perspectiva de felicidade e sentido.
Por fim, inspirada pelo poema Tabacaria de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa: Quantas “Renatas” eu já não nasci? Nasci de mim mesma sofrendo exatamente do excesso de mim que escondia em mim a mim mesma.
Assim não temos apenas os partos literais para experenciar, somos convidados ativamente a nascer psiquicamente diversas vezes durante a nossa jornada, afinal “A vida tem de ser conquistada sempre e de novo” (JUNG, 2019, p.142).
Renata Fraccini Pastorello – Analista em formação IJEP
Ajax Salvador – Analista Didata IJEP
REFERÊNCIAS:
INICIADOS, Três (pseudônimo coletivo). O Caibalion: estudo da filosofia hermética do antigo Egito e da Grécia. Tradução de Rosabis Camaysar. São Paulo: Pensamento, [s.d.],
PESSANHA, José. Platão – Coleção Os pensadores, 5.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991
JUNG, Carl. G. A Natureza da Psique, 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2019

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