Em 1988, a Organização Mundial de Saúde (OMS), incluiu a dimensão espiritual no conceito multidimensional de saúde, remetendo a questões como significado e sentido da vida, e não se limitando a qualquer tipo específico de crença ou prática religiosa (Oliveira & Junges, 2012). Esse Deus, mistério tremendo, tem a característica inalienável de ser o totalmente Outro.
Quando eu O sinto, ou experiencio, não fica dúvida de seu caráter sagrado e distinto de mim mesmo. Essa experiência é sempre transformadora e não há linguagem ou ciência capaz de defini-la, no entanto, é capaz de verdadeiros milagres (Jung apud W. Magaldi, 2022).
Segundo S. Magaldi (2010, pág. 85-86), os alimentos anímicos são, mesmo na modernidade, essenciais à saúde física-psíquica e social de todos nós. Pois, ao negarmos o “outro lado da vida”, corremos sérios riscos de sermos tomados por entidades que habitam em nossa sombra.
Espírito e Ciência
A divisão entre o espírito e a ciência ocorreu ao longo de vários séculos, desde Nicolau Copérnico em 1543, com sua teoria heliocêntrica, contrariando a cosmologia pregada pela Igreja Católica, a Descartes no século XVII, que nega a influência da mente sobre o corpo, base para o modelo biomédico atual.
Claro que não estou restringindo a ideia de espírito à mente. Contudo, a mente é a ponte entre o espírito e o mundo. Mente e corpo são dois lados de uma mesma moeda, mas quem coordena ambos é a psique. Portanto, a saúde psíquica é base importante para a saúde em todos os outros âmbitos vividos, inclusive as vivências espirituais.
Segundo Jung, o corpo seria tão metafísico quanto o espírito, pois a experiência psíquica seria a única experiência imediata para o ser humano (1935).
Incorporando essa multidimensionalidade e complexidade do processo saúde-doença à ideia de que a psique está à frente de tudo isso, ou seja, ela comanda de forma consciente e inconsciente a forma como nos relacionamos com o mundo interno e externo. Isso reforça a importância da espiritualidade, como uma das dimensões básicas de nossa vivência.
A espiritualidade é uma das dimensões vivenciadas, não pode ser negligenciada.
Jung nos fala que “onde Deus não é reconhecido aparece a mania egocêntrica, e desta provém a doença” (2013, pág. 51).
Como já mencionamos, o espiritual é vivenciado de forma mais abstrata, é a psique que torna essa experiência valiosa e real ao ser humano. A repressão dessa espiritualidade a remete ao inconsciente, tornando-se um aspecto sombrio e tudo que vai por esse caminho, quando se expressa, não vem de forma gentil e elaborada. Muitos dentre os primeiros deuses passaram de pessoas a ideias personificadas e, finalmente, a ideias abstratas.
Alguns dos velhos deuses tornaram-se meras qualidades, como marcial, jovial, saturnino, erótico, lógico, lunático, etc. A dessacralização de nossa época tão profana é devido ao desconhecimento da psique inconsciente e ao culto exclusivo da consciência.
Nossa verdadeira religião é o monoteísmo da consciência, que nega os sistemas parciais autônomos. Contudo, os sistemas autônomos atuam independente de nossa vontade, pois o inconsciente não é afetado pelas oscilações de uma consciência efêmera (Jung, 2013, págs. 48-50). Ainda somos possuídos pelos conteúdos psíquicos autônomos como se estes fossem deuses.
Somos tomados pelas fobias, obsessões, angústias, depressões, ansiedade, pânico, entre outros. Os deuses tornaram-se doenças (Jung, 2013, pág. 50). Logo, os deuses se tornaram sintomas ou doenças em geral, reflexos da constelação de complexos autônomos, que atuam independente da vontade do indivíduo, relacionados àquilo que nos afeta e nos possuí.
Inconsciente e consciente
Quanto mais poderosa e independente se torna a consciência, tanto mais o inconsciente é empurrado para o fundo… Alcançando a liberdade, poderá romper as cadeias da pura instintividade e chegar a uma situação de atrofia do instinto, ou mesmo oposição a ele. Esta consciência desenraizada, que não pode mais apelar para a autoridade das imagens primordiais, acede a uma liberdade prometeica ou hybris sem Deus (Jung, 2013, pág. 29). Podemos chamar essa situação de uma unilateralidade ou monoteísmo da consciência.
Essa unilateralidade leva o ser humano ao conflito, angústia, extravio, atrofia dos instintos, nervosismo, desorientação e um emaranhado de problemas e situações.
Nesse sentido, no livro Segredo da Flor de Ouro, Jung menciona que não há problemas insolúveis, mas a capacidade de superação vai variar conforme o indivíduo, especialmente, quando as experiências se associam a elevação do nível de consciência (2013, pág. 31). De modo que a forma como compreendemos os eventos e aprendemos com eles podem impactar na capacidade de lidar com as situações e angústias que atravessam nosso caminho.
No meio do caminho tinha uma pedra
O poema de Carlos Drumond de Andrade mostra de forma simbólica, que as pedras ou desafios de nossa vida, podem atrapalhar nossa jornada, torná-la cansativa e exigem esforço para superar os obstáculos. “No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no meio do caminho tinha uma pedra”. Quantas pedras conseguimos contornar e quantas carregamos conosco, trazendo adoecimento físico, emocional e espiritual?
Diversos estudos científicos já buscam estudar essa relação entre a saúde e a espiritualidade/religiosidade, mostrando uma mudança no paradigma saúde-doença. Segundo Stroppa & Moreira-Almeida (2008) apud Melo (2015), maiores níveis de envolvimento religioso estão associados positivamente com indicadores que contribuem para o bem-estar psicológico, como felicidade, satisfação com a vida, afeto positivo e moral elevado.
Medicina e espiritualidade
Os profissionais da equipe de assistência em cuidados paliativos referem ser positiva a influência que a espiritualidade e a religiosidade exercem na saúde dos pacientes. E consideram pertinente a abordagem desta temática na prática clínica – apesar de não se sentirem aptos a isto. Segundo a Faculdade de Medicina da UFMG, estima-se em torno de 14% das escolas médicas dispõe da discussão entre medicina e espiritualidade de forma prática, legalizada, através de disciplinas na graduação, optativas ou obrigatórias.
Das diversas formas de acesso à essência espiritual do homem, a religiosidade surge como um importante constructo no atual contexto sociocultural brasileiro. Este estudo trouxe à baila a evidência dos elevados índices de religiosidade dos profissionais avaliados, o que pode favorecer a uma maior elaboração da própria espiritualidade destes sujeitos, facilitando a identificação das necessidades espirituais e/ou religiosas dos seus pacientes (Ferreira et.al., 2015). O que ressalta a importância da vivência espiritual dos profissionais de saúde para melhor entender as demandas de seus clientes. Não entregamos ao outro aquilo que não temos.
Saúde e espiritualidade
De acordo com uma pesquisa, realizada por especialistas da Escola de Saúde Pública de Harvard e Brigham and Women’s Hospital, a espiritualidade deve ser incorporada ao cuidado tanto da doença grave quanto da saúde geral.
A espiritualidade é definida como “a maneira como os indivíduos buscam o significado final, propósito, conexão, valor ou transcendência”, de acordo com a Conferência Internacional de Consenso sobre Cuidados Espirituais na Saúde (Balboni et. al., 2022).
Eles observaram que, para pessoas saudáveis, a participação na comunidade espiritual está associada a vidas mais saudáveis, incluindo maior longevidade, menos depressão e suicídio e menos uso de substâncias. Para muitos pacientes, a espiritualidade é importante e influencia os principais resultados da doença, como qualidade de vida e decisões de cuidados médicos.
As implicações do consenso incluíram a incorporação de considerações de espiritualidade como parte dos cuidados de saúde centrados no paciente e o aumento da conscientização entre médicos e profissionais de saúde sobre os benefícios protetores da participação da comunidade espiritual.
Espiritualidade e religiosidade
Estudo realizado pela Escola de Saúde Pública de Boston com pessoas de 50 anos ou mais, relacionaram os impactos na saúde e o senso de propósito. Os resultados mostraram que pessoas com senso de propósito possuem menores riscos de morte (% risco de mortalidade de 15,2%) em comparação com o grupo com menor senso de propósito (% risco de mortalidade de 36,5%).
Segundo Ferreira et.al. (2020), a espiritualidade e religiosidade podem servir de auxílio para lidar com o câncer. A busca pela espiritualidade pode ocorrer após o diagnóstico da doença, em busca de sentido para a vida; ou já estar presente desde antes do diagnóstico, e ser fonte de força e esperança frente ao diagnóstico e durante o tratamento.
Uma outra forma de olhar para os acontecimentos da vida, incluindo a questões de saúde, são as crenças em um carma, muito comum no oriente e em religiões reencarnacionistas. Acredita-se que as dificuldades estão relacionadas a vidas passadas, para ajustar a roda do carma e saldar os créditos ou descréditos dessa balança.
Julgamento por Osíris
Isso me remete ao julgamento realizado pelo Deus Osíris, no antigo Egito. Quando uma pessoa falecia tinha seu coração pesado em sua balança, caso fosse mais leve que uma pluma, ela recebia a aprovação. Caso contrário, o indivíduo não poderia entrar no Duat (submundo dos mortos), e sua cabeça era devorada por um deus com cabeça de crocodilo.
Amatuzzi (2000) propôs em sua pesquisa, etapas para o desenvolvimento religioso ao longo da vida, desde o nascimento até a morte. Sua proposta mostra analogia ao desenvolvimento da personalidade de Jung.
A espiritualidade da criança é vivenciada de forma mais inconsciente sob a égide dos pais.
Com a adolescência começa o processo de diferenciação e início de reflexões sobre o tema. Até chegarmos ao meio do caminho, quando a espiritualidade ganha mais importância visto a busca de sentido e ressignificação de vida, marcante nesse período. Já na velhice e proximidade da morte, a espiritualidade se integra a vida, auxiliando na aceitação do limite da vida.
E o que está por trás do adoecimento, seja ele físico, psíquico ou espiritual?
Campos (2007) apud Silva (2021) coloca que a demanda por cuidado revela, em princípio, uma vulnerabilidade ou carência que pode não ser consciente. O que o sujeito quer não é necessariamente ser cuidado de sua doença através de remédios, exames ou cirurgias, mas antes, ser olhado, tocado, escutado.
Diante disso: o que é cura?
Quando um ser humano busca por ajuda, o que chega ali não é apenas um diagnóstico médico, mas dores da alma. São pessoas que carregam sofrimentos frutos das experiências de vida: violências, abandonos, fragilidades no casamento, filhos envolvidos com drogas, vergonha, angústia, solidão, medo de julgamentos e assim por diante. Será que a busca é por uma cura física ou busca-se a cura da alma, da angústia e sofrimento?
W. Magaldi (2009) menciona que o que reduziu drasticamente a mortalidade de jovens e adultos produtivos não foram as descobertas da indústria médica, mas o investimento em segurança profissional, que por sua vez, depende de investimentos na educação. A Saúde Pública fala em prevenção de doenças através de hábitos saudáveis, contudo, a população precisa de um ambiente favorável, seja no trabalho ou em casa, ter boa mobilidade diária, uma habitação decente, acesso a serviços e a educação.
A saúde é um conceito amplo, com diferentes níveis de complexidade, tanto internos quanto externos às pessoas.
Será que a doença física é apenas física, ou ela é reflexo de todas as experiências vividas no nível consciente e inconsciente por aquele ser humano?
Se falamos das dores da alma, a espiritualidade é uma necessidade primária para o ser humano, auxiliando na busca por significado. Mestre Eckhart apud S. Magaldi (2022) nos fala: “A qualidade da vida de um homem depende da qualidade de seus deuses, das formas que o Divino toma frente a ele. Em resumo, a qualidade da vida de um homem depende das exigências que sua alma se faz quando admira a face de seu Deus”.
Leloup e Jung
Leloup (2013) nos fala que estudamos demais o ser humano a partir de suas doenças, quando poderíamos conhecê-lo melhor a partir de seu estado de realização. O autor propõe um caminho de transformação espiritual que passa por 7 etapas, um caminho de encontro com o numinoso, em que nos colocamos em dúvida e em contato com o vazio, para que algo novo nasça como uma chama ou novo conhecimento, integrando-se a nós.
Não conseguimos voltar ao modo anterior, mas essa caminhada só faz sentido se retornamos à praça e ao mundo, entregando um ser humano melhor à sociedade.
“Entre todos os meus pacientes de mais de trinta e cinco anos não há nenhum cujo problema não fosse o da religação religiosa. A raiz da enfermidade de todos está em terem perdido o que a religião deu a seus crentes, em todos os tempos; e ninguém está realmente curado enquanto não tiver atingido, de novo, o seu enfoque religioso.”
Jung apud S. Magaldi (2020)
A vivência da espiritualidade é uma forma de quebrar o monoteísmo da consciência e nos abrir para o numinoso ou mistério, algo maior que o “eu”.
Essa dimensão faz parte da jornada e do processo de crescimento e individuação.
Michella Cechinel – Analista em Formação IJEP
E. Simone D. Magaldi – Analista Didata IJEP
*Texto baseado na palestra de mesmo título ministrada no VIII Congresso Junguiano do IJEP – É tica, espiritualidade e política no campo junguiano, com participação das referidas autoras e a Dra. Luciana Antoniolli.
Referências:
i)
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MAGALDI, E.S.D. Ordem e caos: uma visão transdisciplinar. São Paulo: Eleva Cultural, 2010.
MAGALDI, E.S.D. Psicologia e religião oriental. Aula ministrada no programa de pós graduação em psicologia analítica, 2020.
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