Ter capacidade crítica e reflexiva é o que me mantém vivo, confiante, plural e feliz! Foi isso que fiz quando anunciei publicamente o sétimo dia do falecimento da minha mãe, aos 101 anos de idade, agradecendo tudo que ela fez por mim e, ao mesmo tempo, criticando o que ela deixou de fazer por ela, na direção consciente do seu processo de individuação. Com isso, acredito que deixei claro a diferença que faço entre amar e gostar. Infelizmente, assim como ela, a maioria dos humanos, por ficarem monotemáticos e egoístas, perdem a oportunidade de servir ao Self que, para C. G. Jung, é a representação da Imago Dei em nós, ou Deus em nós! Ampliando um pouco mais a questão, posso amar uma pessoa, e com isso vibrar e contribuir para sua realização, mesmo que seu caminho vá numa direção contrária ao meu ou dos meus gostos, exercitando minha capacidade de tolerância. Por isso, existem muitos seres humanos, que amo verdadeiramente, e estou sempre pronto para servir e contribuir com seus caminhos de realização, mesmo não gostando se suas posições políticas, religiosas, hábitos, etc. Óbvio que, por amar, jamais deixo de estimula-los criticamente, com o propósito de ampliação da consciência – creio que essa é a minha missão. Porém, quando o convívio passa a ser oneroso, e para respeitar as diferenças passo a me desrespeitar, começo a me desamar e, neste caso, a distância se faz necessária, porque o convívio passa a ser muito desgostoso, consciente de que o limite do amor ao próximo é o amor a nós mesmos preservado!
Para estar vivo, de verdade, é necessário fazer muitas trocas: dando, recebendo e retribuindo, inclusive as críticas reflexivas, que servem para a ampliação da consciência – nossa e do nosso entorno relacional! Isso irá possibilitar a prática da alteridade, que nos permite sair da nossa lente de condicionamentos e conforto, para nos vermos pelas lentes do outro! Essa prática nos faz tolerantes, mais fraternos e igualitários. Porque lidar com o contraditório, sem encará-lo como um ataque pessoal, contribui para a evolução do conhecimento e do pensamento. Nossa estrutura de consciência necessita do Ego, que é seu gestor e precisa lidar com as forças opositivas entre Bios e Zoé, matéria somática e energia psíquica respectivamente. Elas são informações presentes em dinâmicas de movimento opostas, a primeira está hipostasiada no plano físico e instintivo do corpo ou soma, que Jung atribui ao espectro Infravermelho da Luz – como símbolo da consciência -, e a segunda no plano arquetípico, nos remetendo as dimensões anímicas e espirituais da psique, o espectro ultravioleta da Luz.
Além dessa tensão, o Ego (que é primeiro complexo que se diferencia do inconsciente, arquetipicamente presente em todos humanos e inicialmente identificado com a corporalidade), faz polaridade opositiva e complementar com a Sombra (que por ser arquetípica, é universal). O Ego, apesar de não ser a totalidade da consciência, é o representante dela, assim como a Sombra, que também não é a totalidade do inconsciente, é sua representante. Da mesma forma que na Sombra estão muitos aspectos da Anima ou do Animus (nossos contrapontos sexuais, do ponto de vista egóico), no Ego estão a maioria dos aspectos da Persona, porque o Ego necessita da Persona para se relacionar e adaptar-se com o entorno social, e tudo isso pertence ao Self, que é a totalidade do Sí-mesmo. Com isso, de forma indireta, Persona e Sombra fazem espelhamento opositivo, assim como a Persona do Ego masculino faz oposição com a Anima e a Persona do Ego feminino faz oposição ao Animus. Porém, Jung também diz que para chegarmos na relação com a Anima ou com o Animus devemos ultrapassar as barreiras da Sombra e flexibilizar a Persona, as máscaras funcionais, para servirmos a alma, que não tem gênero ou raça, em seu fluxo contínuo que almeja a unidade. Porém, na maioria das vezes, o Ego, com seu livre arbítrio e sem saber estar aprisionado por complexos patológicos, dificulta e até pode interditar essa realização.
Para estar confiante é preciso ter fé na vida – fiar com Deus, no sentido de distribuir seus talentos, entusiasmadamente, para a humanidade, com resiliência e coragem, aceitando o fato de que tudo o que vem, independentemente de produzir prazer ou dor, alegria ou tristeza, está vindo com o propósito do nosso aprimoramento evolutivo, anímico e espiritual, que vai muito além dos apêgos egóicos, fixados no corpo e na territoriedade reptiliana.
Com essas duas premissas conquistadas, podemos ser plurais, e não promíscuos, deixando de existir monotematicamente, dominados pelos complexos patológicos. Isso mesmo, os complexos nos deixam monotemáticos, com atitudes fóbicas e unilaterais, frequentemente manifestadas nos fanatismos religiosos, no apêgo às doenças crônicas, no partidarismo político, nas dietas rígidas, na vigorexia, ortorexia, anorexia, bulimia, hipocondria, oniomania, entre outros transtornos obsessivos e compulsivos como dependências de álcool, drogas, da beleza, do sexo, da riqueza, do trabalho, da fama, etc. Obviamente, nossa modernidade líquida e do vazio, onde tudo e todos são descartáveis, como bens de consumo, usando-nos como bens de produção para continuarmos consumindo e poluindo, no amplo sentido, estimula todas essas unilateralidades.
Por fim, para ser feliz, é necessário estarmos livres para fazermos nossa escolha de dependência e servidão missionária ao amor. Porque, quando aprendemos amar tudo e todos, nos amamos e seremos amados por Deus – no sentido de possibilitarmos que a imanência do Self atinja seus propósitos e sentidos transcendentais. Isso equivale a estarmos engajados, conscientemente, com o processo de individuação, servindo para ser, na certeza de que quando mais darmos, mais teremos para dar, vivenciando o mistério, o encanto, o lúdico do cotidiano, transformando o ordinário em uma aventura extraordinária, com humor e alegria. Essa é a verdadeira arte, que só aqueles que estão à serviço da alma conseguem realizar. Os outros, infelizmente a maioria comum, perdeu o romantismo do viver, aprisionados na miserabilidade egoísta do ego, assumindo a condição de coitados desgraçados, brigando pelas certezas, pela normalidade, contra as doenças, as dores, os desamores, com o que fizeram ou deixaram de fazer com e para eles, hipostasiando raiva, culpa, medo, ansiedade, ressentimento, vingança ou mágoa, obviamente vivendo exclusivamente pela preservação do território, que é a primazia do Bios, que é finito e ilusório, mesmo com suas personas aprisionados em discursos e práticas aparentemente voltados para Zoé!
Para evitar que o passado traumático deixe de se manifestar como complexo autônomo e patológico, muitas vezes expressado em sintomas físicos e ou psíquicos, é necessário o enfrentamento consciente, possibilitando sua simbolização e ressignificação. Negar o passado é tão patológico quanto ficar paralisado nele. Por meio da ressignificação é possível o surgimento da superação e a capacidade empática da alteridade para servirmos, amorosamente, os demais feridos.
Com isso, a consciência evolutiva, que nos coloca responsáveis e protagonistas do processo de individuação, exige autoconhecimento, por meio da capacidade crítica e reflexiva, com o contínuo reconhecimento, respeito e enfretamento da sombra, que está em nós, ao invés de buscar práticas alienantes, por meio de fanatismos que levam a estados alterados da consciência, direta ou indiretamente, que acabam impedindo o autojulgamento critico, a alteridade e a servidão amorosa. Após aprendermos a agradecer tudo que vem e dizer o sim incondicional à vida, sem abrirmos mão do servir, começaremos a perceber que nada é por acaso e que tudo faz parte da gargalhada divina e transcendental!
Paz e Bem
Julho de 2018
*WALDEMAR MAGALDI FILHO: Psicólogo, Analista Junguiano Didata do IJEP, Especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Homeopatia; Mestre e Doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado – Interfaces Econômicas e Religiosas à Luz da Psicologia Junguiana”, Ed. Eleva Cultural, Coordenador dos Cursos de Pós-Graduação que titulam especialistas em: Psicologia Junguiana; Psicossomática; Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (www.ijep.com.br), oferecidos nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Imagem: Abadia de Heiligenkreuz (Baixa Áustria). Claustros – Estátua de Maria Madalena ungindo os pés de Cristo (século XVIII), de Giovanni Giuliani.