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Simbologia do Espelho e Sombra

Sobre a Simbologia do espelho e sombra

Sobre a Simbologia do espelho e sombra

Eu me lembrei esses dias de uma frase famosa do escritor britânico Alan Watts que, quando questionado sobre o motivo de porque não comia carne, teria respondido : “porque as vacas gritam mais alto que as cenouras quando as matam”.

Qual é o interesse da colocação um tanto simplória acima? A qual, de fato, carece de aprofundamento, especialmente por pertencer a um autor tão consagrado e espiritual como Watts, um grande conhecedor da doutrina budista e amador dos pensamentos de Jung?

Porque ela provoca em mim um encadeamento de memórias que me levaram a refletir sobre um tema que acredito ser um dos pilares mais importante da psicologia analítica quando queremos extrapolar os limites do consultório e confrontar Jung com a vida real: a projeção da sombra.

A primeira delas, quanto a essa colocação sobre o sofrimento animal, é que: por mais que faça o mais absoluto sentido, é necessário lembrar em todos os aspectos da vida que este planeta é habitado por outros seres sensíveis além de nós. Somente arranha a superfície da filosofia budista sobre o tema.

O mestre Zen norte americano Philip Kapleau – referido como roshi, venerável sábio ou professor, traz uma visão bem diferente: a essa mesma pergunta: “porque não comer animais?”, deu uma resposta infinitamente mais interessante que este batido argumento de que todas as vidas são equivalentes e que, além de absolutamente esclarecedora, permite uma conexão evidente com Jung.

A segunda memória é uma viagem no tempo até momentos quase esquecidos da minha adolescência.

Na época eu sofri muito com esse dilema, pois, na França, onde eu cresci, era comum consumir carne de cavalo. E cavalos eram minha grande paixão.

Lá, paradoxalmente, se em alguns lugares a tradição o mantém como alimento, este animal também é parte da vida quotidiana e seu uso continua no trabalho em fazendas, no esporte, no divertimento e ainda encontramos, no sul do país, rebanhos de cavalos selvagens.

Dizem que se o cachorro é o melhor amigo do homem, o cavalo é sua mais nobre conquista. É um animal tão nobre que nem sobre patas anda…ele tem pernas.

O cavalo é indissociável da história e da humanidade.

O Cavalo de batalha de Napoleão Bonaparte encontra-se exposto empalhado no museu da guerra em Paris. A conquista dos territórios do leste da Europa, e sua povoação a partir da Rússia, foi realizada pelos cossacos – eméritos cavaleiros. Tanto que Gengis Khan conseguiu estender seu fantástico império graças a relação estreita que os guerreiros mongóis tinham com seus cavalos.

Toda a história de Alexandre o Grande e suas conquistas estão ligadas ao seu amado Bucephalus. O que seria de Ulisses e da Odisseia e de toda a popularidade das histórias e da mitologia grega se não houvesse o episódio do Cavalo de Tróia?

Há uma relação de cumplicidade entre os homens e os cavalos que se encontra em todas as culturas

Ela é presente em vários relatos, de índios norte-americanos até os demais conquistadores. E é na Espanha onde encontramos um dos mais lindos espetáculos. Quando a dançarina de flamenco brinca de seduzir o animal com seu bailado, talvez como uma forma de ganhar o coração do seu cavaleiro, numa dissociação artística que enfatiza a lado simbólico do garanhão, macho, majestoso e poderoso que conecta a cabeça do humano à terra com suas 4 “pernas”.

Essa relação do homem com o cavalo, por ser transcrultural e atemporal, deixa pressupor uma relação arquetípica. Há algo em comum entre as duas espécies. Algo que as conecta além da utilidade, do trabalho, de uma forma ainda mais profunda e que não conseguimos entender.

Eu tive a oportunidade de presenciar, vivenciar, apreciar toda majestade deste nobre animal. Na época eu praticava hipismo e, para poder pagar aulas e competições, ajudava a cuidar dos animais na academia onde treinava. Era comum soltarmos alguns cavalos na arena de adestramento para se divertirem, desfrutando de um espaço maior de que nos estábulos.

Foi assim que, um dia, fui agraciado com uma experiência ímpar.

Fiquei durante um bom tempo assistindo ao ballet majestoso de um jovem imponente garanhão. Ele alternava galopes e batidas de cascos, relinches e bufadas, num inexorável bailado coreografado para mostrar a um outro animal o quanto poderoso era. Que o domínio do pedaço era dele e que, com certeza , o outro deveria se afastar se quisesse evitar uma luta fadada à derrota.

O mais interessante era que o temido adversário não existia. As paredes da arena, onde tudo aconteceu, eram revestidas de espelhos a fim de que que os cavaleiros pudessem olhar suas posturas e corrigi-las (conforme mandam as cartilhas desta disciplina exigente que é o adestramento equestre). O bicho, sem entender que isto não teria fim, estava tentando intimidar a si mesmo. Ele não percebia que o adversário era ele mesmo, refletido no espelho.

Mas, espere um pouco…E a resposta do mestre Zen sobre comer carne de animais?

E sim, eu comi um dia, carne de cavalo. Tive outra experiencia parecida depois. Um filhote de cachorro ficava rosnando para sua própria imagem que via num espelho fixado à uma porta. Corria atrás e voltava como desapontado de não ter encontrado, do outro lado, nenhuma fera ameaçadora.

Isso, se não nos prova, pelo menos recorda o que muito se fala sobre a diferença essencial entre a psique humana e a dos animais. Especialmente dos mamíferos, que apesar de compartilharmos muito do DNA, da estrutura corporal, da mecânica da vida e da homeostase, algo entre nós difere: humanos tem a capacidade de perceber sua própria existência, a certeza de estar vivo que lhe confere o Ego, centro organizador da consciência. Humanos tem consciência e animais não, pelo menos não tanto, ao que parece.

Jung escreveu pouco sobre a formação do Ego em si. Apesar disso, alguns psicólogos e psicanalistas abordam que esse encontro com o espelho é um dos momentos essenciais para a formação do Eu. Dessa maneira, para dar início ao desenvolvimento da personalidade e a esse processo sem fim, que Jung descreve como “individuação”, a aventura de se tornar quem de fato é.

O encontro com o espelho

O primeiro a estudar este momento, denominado “estágio do espelho”, foi o psicólogo francês Henri Wallon, em seu livro Les origines do caractere chez l´enfant – as origens da personalidade na criança (1931). Trata-se do momento no qual a criança, ao reconhecer sua imagem refletida no espelho, começa a perceber que é um ser individual, que possui um corpo que a diferencia de outros seres humanos. René Zazzo, um dos pioneiros da psicologia da criança descreve, em 1977, na revista francesa “Enfance”, o processo do estágio do espelho em 4 fases:

  1. Reconhecimento da imagem do outro (a criança nunca está sozinha frente ao espelho);
  2. A criança confunde sua imagem com a de outra criança e tende a brincar com ela;
  3. Desconforto com seu reflexo e fuga obstinada do espelho;
  4. Momento jubilatório da identificação da sua própria imagem.

Lembrando que foi o também psicanalista francês Jacques Lacan quem trouxe este assunto para a psicanálise, o que fez no congresso da associação internacional de psicanálise em Marienbad, na então Checoslováquia (1936), antes de publicar na revista francesa de psicanálise (1949).

Ele continuou desenvolvendo o assunto durante toda sua carreira enfatizando aos poucos importância do olhar do outro nessa formação do Eu; haja vista que é quando é apresentado ao espelho, por um adulto, e que lhe é dito “olha, é você ali”. Geralmente por um dos pais cuja imagem reconhece ao lado da sua, que a criança começa a entender que este terceiro desconhecido, “sou eu”.

De fato, esse aspecto é fundamental. Justamente porque demonstra que precisamos do outro para nos reconhecer. É com a certeza que o outro sabe quem ele é que podemos começar a caminhar em direção a ele para iniciar a descoberta de nós mesmos.

Precisámos do olhar do outro para entender quem nós somos.

Françoise Dolto (202), pediatra e psicanalista, elaborou outro ponto interessante: acrescentou que precisamos conceber esse espelho como “uma superfície psíquica oni-refletora”, considerando a importância de tudo que é refletido e recebido como volta da interação com o outro, como sons, fala, toques ou expressões corporais.

Em resumo, precisamos entender que, para nos desenvolvermos, para nos tornarmos indivíduos plenos e autônomos, precisamos ao longo da vida nos deparar com espelhos simbólicos oferecidos pela interação com os outros.

Em sumo, é o olhar do outro tanto quanto nosso olhar no outro que nos permite aprender e entender quem nós somos.

E o Zen budismo nisso tudo? Calma aí que chegamos lá…

Para fazer essa conexão, devemos antes elaborar mais um pouco essa questão do espelho simbólico. Espelhos e reflexos aparecem em várias histórias e contos, da branca de neve até o mito de narciso.

O retrato de Dorian Gray”, livro do Oscar Wilde, acaba mostrando a realidade escondida por trás da tardia boa consciência adquirida pelo protagonista da história. E, se todas essas narrativas parecem dar a lição de que, se olharmos bem para a imagem, iremos ver algo sombrio, é bem interessante a continuação da história de Alice.

Em “Alice no país das maravilhas”, Lewis Caroll nos mostra como no universo da criança imaginário e realidade de misturam. Contudo, na sua sequência, que muitos não conhecem, Alice através do espelho, a pequena aventureira atravessa o espelho para se deparar com figuras estranhas e altamente simbólicas.

Por isso, é muito relevante que o título original da novela fosse: Através do espelho, e o que Alice encontrou ali (traduzido para o português).

Isso nos faz pensar que para o nosso desenvolvimento, não basta olhar no espelho, pois isso nos fixaria no momento presente como Narciso preso na eterna admiração do seu reflexo.

Precisamos olhar através e ir ao outro lado, pois, além da imagem refletida há algo precioso para ser encontrado.

Quando falamos em desenvolvimento e aspectos sombrios, imediatamente lembramos o que Jung nós ensinou sobre a formação da personalidade. À medida que tomamos consciência da nossa existência e que se firma o Ego como centro organizador da consciência, responsável por guiar-nos pela vida em sociedade.

Juntamente e irremediavelmente se forma a sombra: parte do inconsciente pessoal com todos os conteúdos, desejos, vontades e atitudes reprimidas por serem julgadas inadequadas ao momento da consciência.

Compreendendo os conteúdos sombrios

É importante ressaltar sempre que sombrio não significa “do mal” ou “pecaminoso”, mas sim em oposição “à luz da consciência”, ou seja, tudo aquilo para que, no presente momento, é melhor não olhar, nem ter conhecimento.

Outro aspecto importante é que esses conteúdos são “sombrios” justamente por terem sido reprimidos. Isso é a base de que chamam a “psicodinâmica” na qual se enquadram tanta a psicanálise quanto à psicologia analítica. São conteúdos que existiam no inconsciente – seja ele pessoal ou impessoal, coletivo. Os quais receberam energia suficiente, na forma de desejos e vontades, até serem elevados à consciência para serem realizados e vivenciados.

Entretanto, por serem incompatíveis com a percepção do Ego, com moral, ética, religião, valores individuais ou do coletivo o qual é envolvido, esses conteúdos são devolvidos e jogados para baixo do tapete do inconsciente.

Mas o ponto chave para Jung é que a psique é um sistema fechado no qual a energia não se volatiliza, não desaparece. Portanto, por mais que o Ego não queira enxergar essas vontades e desejos, esses permanecem ativos. Assim, permanecem na sombra, na escuridão afetiva. Até que, intensos demais para serem ignorados, reaparecem sob a forma de projeção.

“… todas as tendências de adaptação ao mundo externo são reprimidas e somem no inconsciente. E, assim, quando percebidas, aparecem como não pertencendo à própria personalidade, mas como projetadas”.

Jung, 2015, 267

Tendemos a “jogar” nos outros e nos objetos todas essas questões que nos inquietam, mas que não percebemos.

“O objetivo essencial do opus psychologicum é o desenvolvimento da consciência, isto é, em primeiro lugar, a tomada de consciência dos conteúdos até então projetados. Esse esforço leva pouco a pouco ao conhecimento do outro, bem como ao conhecimento de si e, assim, a distinguir o que a pessoa é na realidade daquilo que nela é projetado ou o que ela fantasia a seu respeito.”

Jung, 2011, 471

Começamos a dar aos outros qualidades e defeitos que não tem e, assim, criamos vínculos afetivos com artistas, líderes religiosos ou políticos, acreditando ser o que não são.

Começamos a amar e odiar personagens de ficção, nos ligar em novelas ou heróis de desenhos, jogadores e times de futebol e, muitas vezes, damos à eles mais importância de que a membros da família ou a amigos próximos.

Choramos o falecimento de cantores e cantoras que nunca encontramos, como se um pedaço de nós tivesse morrido também.

Mas se pensarmos bem, certamente um pedaço de nós se foi junto do famoso que partiu e de que tanto gostamos. Se foi o pedaço da nossa alma que o Ego nunca aceitou, esse aspecto nosso escondido que tivemos que pintar na cara do outro para nunca esquecermos que nos incomoda por dentro.

Sobre projeção, Jung disse:

“Esta expressão designa, pois, um estado de identidade que se tornou perceptível e, assim, objeto de crítica, seja da crítica do próprio sujeito, seja da crítica de outros.”

Jung, 2015, 881

“Para configurar esta relação, o sujeito destaca de si um conteúdo, por exemplo, um sentimento, e o transfere para o objeto, dando vida a este e incluindo-o na esfera subjetiva.”

Jung, 2015, 882

Assim, ao longo do decorrer da vida, fazemos dos outros nossos espelhos vivos, para que nosso “eu”, incapaz de olhar para dentro, com o olhar constante fixado para fora, possa enxergar o que lhe falta para tornar-se, na totalidade, quem há de ser.

É preciso, como Alice, atravessar o espelho.

Ir além da sensação, do afeto que a imagem refletida causa. Procurar do outro lado o sentido escondido e questionar, tal como fez o mestre Zen, para que seja possível responder a seguinte pergunta: Não é proibido comer carne. Nada é proibido. Mas se você se deleita ao comer, o que diz sobre você que seu maior prazer advém da morte de outro ser?”

Nesse contexto, indago: o que significa sobre nós, como coletivo, curtir, assistir filmes de terror, “cidade alerta”, campeonatos de MMA, não chorarmos ao ver o espelho da sociedade dormindo na calçada e não fazer nada, xingar o torcedor do outro time porque é divertido?

Então, pergunto: o que diz ao seu respeito tudo aquilo de que gosta?

Analista em formação: Sebastien Baudry

Analista didata: Maria Cristina Guarnieri

REFERÊNCIAS

DOLTO, F, NASIO J.-D. L’enfant du miroir, Paris, França: Payot, 2002.

KAPLEAU, P. Zen Budismo – O Caminho da iluminação, Editora Arx.

JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. 16/2 Obra Completa. 9 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

__________ Tipos psicológicos. 6 Obra Completa. 9 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

WALLON, H. Les origines du caractère chez l’enfant. Les préludes du sentiment de Personnalité. Paris, França: Presses universitaires de France. 1983

LACAN, J. Le Stade du miroir comme formateur de la fonction du Je: telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique. Paris, França:  Presses universitaires de France, 1949.

ZAZZO, R, Image spéculaire et image anti spéculaire. Expériences sur la construction de l’image de soi. Revista Enfance, Paris Fance, 1977, 30-2-4, pp.223-230

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