Oriunda do grego, a palavra mito significa “história”, “narrativa”. Poiesis, da qual vem a palavra poesia, quer dizer “criação”, “fazer”. “Mitopoiesis”, então, significa criar, fazer histórias. Acontece que histórias são mundos cheios de significados.
Assim, a mitopoiesis é a maneira pela qual os homens “criam” tais mundos. Em outras palavras, é possível dizer que nossa psique é mitopoética, ou seja, fazedora de histórias capazes de dar sentido ao mundo que habitamos e que somos.
Isso significa que inventamos as histórias que dão sentido ao mundo ou aos mundos que habitamos e somos?
Se considerarmos a palavra inventar no sentido que, comumente a compreendemos, como fruto de uma produção racional e intencional, não. Nesse caso, seria mais apropriado dizer que significa que somos inventados pelas histórias que acreditamos inventar; significa que, a cada nova história que emerge das profundezas de nossa alma, somos, por elas, reinventados.
Para Carl Gustav Jung, a psique — palavra também originada do grego e cujo equivalente em português seria alma — é muito mais do que acreditamos e costumamos chamar de eu.
O psicólogo junguiano James Hillman (2010, p.104) escreveu que, “[…] existem coisas na psique que não são mais ‘minhas’ do que ‘animais na floresta […] ou pássaros voando no ar’”.
As imagens mitológicas que deram sentido à existência humana, ao longo da história, em qualquer parte do mundo são, antes de qualquer compreensão racional, uma manifestação inconsciente e irracional da alma, que encontra reverberação coletiva pelo simples fato de serem universais em essência. É só num segundo momento, embora não menos importante, que serão submetidas à consciência individual. Por isso, a mitopoiesis é uma condição da psique e não uma escolha, as histórias não são nossas, nós é que somos delas.
Nesse sentido, é interessante pensar na etimologia das palavras inventar e criar.
Inventar nasce do latim inventio, “achado”, “descoberta”, por sua vez associado a invenire, “descobrir, achar”. Criar, por seu lado, também vem do latim, no caso, creare, “produzir”, “erguer”, palavra que “descende” de crescere, “crescer”, “aumentar”. Em alguma medida, criar tem relação com ajudar a crescer, desenvolver e cultivar.
Não se cria do nada, não se faz do nada, a não ser que o nada seja tudo e, nesse caso, voltamos à compreensão da palavra invenção como descoberta. Afinal, em meio ao todo, há muito (ou tudo) a descobrir. Para criar, é preciso matéria-prima e insumo. Com as imagens dos mitos, não é diferente: antes de suas representações ganharem a consciência humana, já existem em potência, como possibilidade, como algo que pode ser criado ou descoberto, “inventado”; ou seja, já existe como semente, como arquétipo.
Menos razão, mais mito e poesia
Essa reflexão nos permite despir-nos da pretensão autoral que acompanha nossa civilização tão apegada à racionalidade, por meio da qual se acredita que a razão é capaz de controlar a inconsciência por trás das nossas ideias e crenças irracionais. Vendo-se dessa forma, acredita-se, então, que, por meio da razão, seja possível explicar tudo. Esse pseudo superpoder, obviamente, traz um conforto, associado à ideia de controle, do qual, na maioria das vezes, não queremos abrir mão.
Porém, a “certeza” racional nos afasta de nossa natureza mitopoética e esvazia a vida de sentido ao reduzir tudo e todos a uma média estatística. Queremos, assim, estar na média ou na média do grupo com o qual nos identificamos e, dessa maneira, considerarmo-nos racionalmente “normais”. Muitas vezes, queremos ser oito ou oitenta, sem aceitar as nuances que nos constituem, todas ao mesmo tempo, do oito ao oitenta. A estética da normose passa, assim, a nortear nossas escolhas em vez da busca pelo autoconhecimento e aceitação do genuíno que se expressa a partir da combinação particular dos universais em cada um de nós.
Como escreveu Jung, o mito é sempre mais apropriado para expressar a riqueza de uma vida individual do que qualquer expressão científica. Em suas palavras:
O que se é, mediante uma intuição interior, e o que o homem parece ser sub specie aeternitatis só pode ser expresso através de um mito. Este último é mais individual e exprime a vida mais exatamente do que o faz a ciência, que trabalha com noções médias, genéricas demais para poder dar uma ideia justa da riqueza múltipla e subjetiva de uma vida individual.
(JUNG, 1975, p. 19)
A vivência como analista mostrou a Jung que, por mais racionais que fossem seus pacientes, algo neles sempre buscou um quê de sagrado, de mitológico, em suas próprias vidas. Até por isso, talvez não seja exagero dizer que as histórias pessoais fizeram brotar as sementes arquetípicas que guardavam, na inconsciência do homem, muitos dos grandes mitos históricos. As narrativas sobre Buda e Cristo seriam bons exemplos disso.
A análise e a mitopoiesis
Mas o que tudo isso tem a ver com o processo analítico? Pessoalmente concordo inteiramente com outra frase de Hillman:
Todas as pessoas em terapia, ou afetadas pela reflexão terapêutica […] estão buscando uma biografia adequada: como juntar as peças da minha vida para formar uma imagem coerente? Como encontrar a trama básica da minha história?
(HILLMAN, 1997, p.14-15)
Em outras palavras, o que se busca responder no processo analítico é: que mito minha vida anseia revelar? Mais uma vez, estamos diante da necessidade de descobrir, inventar, criar sentido para o próprio mundo. Não se trata de se achar mais do que os outros, de se achar um mito no sentido popular e vulgar, mas de se descobrir. Não se trata de ignorar as próprias fragilidades, muito pelo contrário. Trata-se de encontrar, naquele que rejeitamos em nós mesmos, o valor da modéstia e de compreender que nossas valências socialmente apreciáveis e valorizadas não bastam para compor nossa narrativa. Aliás, tais qualidades podem ser nossa perdição caso queiramos ser apenas elas. A busca do próprio mito pressupõe o reconhecimento da luz, mas também da sombra. Só o rejeitado em nós será capaz de nos salvar. Por isso, é preciso tê-lo ao lado. Se não o tivermos, será necessário resgatá-lo.
O mito individual também exige o símbolo, a metáfora da poesia, para poder ser revelado. Símbolo, em sua origem grega, grosso modo, significa “colocar junto”, unir as partes divididas e, muitas vezes, opostas, antinômicas. Metáfora se refere àquilo que “transporta a mudança, a transformação”, é fazer, do chumbo, ouro; do feio, belo, e do belo, feio — também uma espécie de união dos opostos. O mito não é definitivo, é infinito em significado e, assim, transcende à morte. Diante de uma vida, só o olhar mitopoético vê, no profano, o sagrado e, no sagrado, o profano. Assim, não é mais preciso negá-los, apenas descobri-los hermeticamente unidos.
O artesão, o artista e os alvos de uma alma
Gosto de um enigma que escutei, pela primeira vez, de uma analisanda. Ela me perguntou: “qual é a diferença entre o artesão e o artista?”. Eu pensei e respondi, cheio de dúvidas, que o artista não produz sua arte com fins comerciais, ao menos não necessariamente, embora ele possa ganhar dinheiro com ela. Ou seja, sua obra é resultado de um desejo de expressar algo que lhe vem da alma e, nesse trabalho criativo, está o princípio, o meio e o fim. Já o artesão, embora possa ter alguma satisfação artística em seu ofício, está menos preocupado em expressar o que está dentro do que em alcançar um resultado que agrade seus clientes, já que sua intenção é menos a autoexpressão e o autorreconhecimento do que a venda.
Ela me respondeu que fazia sentido, mas que o enigma era mais metafórico do que a minha explicação. Disse-me, então, que era preciso imaginar tanto o artesão, quanto o artista, como arqueiros. Nesse caso, o artesão desenharia alvos na parede, tomaria uma distância desafiadora e tentaria acertar suas flechas no centro dos alvos. O artista, por sua vez, flecharia suas setas indiscriminadamente na parede sem alvos. Depois de terminar seus disparos, iria até a parede e faria alvos para cada uma das flechas.
A metáfora me atravessou no centro da alma e eu tive a clara sensação de que viver, no fim das contas — e envelhecer me ajuda a entender isso —, é mais uma arte do que uma ciência.
Nalguma medida, o empenho do artesão, de alcançar os alvos pré-definidos tem um caráter mais científico, de estudo e preparo, e se conecta com a ideia de razão (“sei o que estou fazendo”), afinal, o que faço está em linha com as demandas do mundo concreto. Na juventude, então, é comum — e talvez necessário — norteamo-nos pela ideia de sermos artesãos; acreditamos que há alvos por nós concebidos e que eles traduzem nossas aspirações mais genuínas, embora esses alvos sejam mais as expectativas do mundo sobre nós do que, de fato, nossas expectativas. Assim, colocamos as flechas nos arcos, puxamos e atiramos nos alvos.
Com o passar do tempo, porém, percebemos que talvez não fosse bem aquilo o que queríamos.
Não só pelas inúmeras flechadas malsucedidas, que sequer atingem a faixa mais periférica do alvo, mas porque os alvos agora estão esmaecidos pelo tempo e passamos a duvidar que tenham sido desenhados por nós em algum momento do passado. Eles já não são um reflexo de nossa aspiração — parecem nunca ter sido — e a sensação que se tem é a de que as flechas foram lançadas em vão, a esmo, porque, logo, sequer seremos capazes de enxergar que, na parede, havia alvos.
Chega, assim, a hora da arte, a metanoia, a hora de pintar novamente os alvos na parede e, quem sabe, descobrir que todas as flechas acertaram, projetivamente, os centros de seus respectivos alvos. Ou descobrir que, mesmo as que não tenham acertado o centro deles, atingiram o que deveriam atingir para dar sentido à nossa biografia. Chega a hora de aceitar que as histórias que vivemos não foram inventadas pela nossa consciência e racionalidade, mas aconteceram, com muito mais inconsciência do que gostamos de admitir e, por isso, são elas que nos inventam, são elas que inventam a nossa consciência. Chega a hora de descobrir poesia no mito de nossa vida e essa descoberta é um dos maiores propósitos da análise junguiana.
Wagner H P Borges — Membro Analista em Formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi — Membro Didata pelo IJEP
Bibliografia:
HILLMAN, James. Ficções que curam: psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. Campinas: Verus, 2010.
_________. O Código do Ser — uma busca do caráter da vocação pessoal. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
JUNG, C. G. A natureza da psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
_________. Memórias, Sonhos e Reflexões. 35ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021.
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(*Valor vigente para o ano de 2025)