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Você tem fome de quê?

Nunca se falou tanto no problema da obesidade, a cada dia que passa mais pessoas têm que lidar com essa questão. Principalmente para as mulheres a cobrança de um corpo perfeito e adequado aos padrões acaba acarretando inúmeros descontentamentos e desencadeando problemas alimentares.

A obesidade em mulheres passou de 14% em 2003 para 25,2% em 2013. Cerca de 82 milhões de pessoas apresentam IMC igual ou maior que 25 (sobrepeso ou obesidade) sendo que a prevalência de excesso de peso é no sexo feminino, 58,2% contra 55,6% no sexo masculino. Nos últimos anos uma parcela dos obesos em tratamento, cerca de 30% apresenta um comportamento de descontrole alimentar com uma ingestão compulsiva de grandes quantidades de alimento durante o dia, com a sensação de perda de controle. Esse quadro está relacionado com outras graves doenças psiquiátricas como depressão e ansiedade.

A obesidade é caracterizada pelo acúmulo excessivo de gordura corporal no indivíduo. Para o diagnóstico em adultos, o parâmetro utilizado mais comumente é o do índice de massa corporal (IMC).  Para ser considerado obeso, o IMC deve estar acima de 30. A obesidade pode ser desencadeada por diversos fatores, entre eles a compulsão alimentar que é caracterizada, de acordo com o DSM-V, pela ingestão de grande quantidade de alimentos em um período de tempo delimitado (até duas horas), acompanhado da sensação de perda de controle sobre o quê ou o quanto se come. Para caracterizar o diagnóstico, esses episódios devem ocorrer pelo menos dois dias por semana nos últimos seis meses, associados a algumas características de perda de controle e não acompanhados de comportamentos compensatórios dirigidos para a perda de peso.

Que fome é essa que quanto mais se come mais vazio se sente? É carência materna?

Podemos pensar que a carência materna pode levar a compulsão alimentar uma vez que a boa mãe deve ser nutridora e quando se instala um complexo materno de uma mãe não suficientemente boa, fica-se com uma fome insaciável. Para o pediatra e psicanalista Winnicott a mãe suficientemente boa, é aquela que possibilita ao bebê a ilusão de que o mundo é criado por ele, concedendo-lhe, assim, a experiência da onipotência primária, base do fazer-criativo. E a percepção criativa da realidade é uma experiência do Self, núcleo singular de cada indivíduo. A mãe suficientemente boa (não necessariamente a própria mãe do bebê) é aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a capacidade deste em mensurar o fracasso da adaptação e em tolerar os resultados da frustração. Assim, podemos pensar que, se amadurecer significa alcançar o desenvolvimento do que é potencialmente intrínseco, possíveis dificuldades da mãe em olhar para o filho como diferente dela, com capacidade de alcançar certa autonomia, podem tornar o ambiente não suficientemente bom para aquela criança amadurecer.

Segundo Jung os sintomas corporais são mensagens da própria psique, portanto é possível atribuir-lhe um significado simbólico que é muito mais acessível através dos sonhos. Os sonhos servem de intermediário entre o psíquico e o fisiológico, ligando-os entre si. Para Jung o poder de cura está na percepção consciente da natureza simbólica do sonho, que fornecerá o significado psíquico dos sintomas corporais por meio dos quais o espírito lutará por comunicar sua condição e suas necessidades. Tomar consciência do corpo e de suas operações equivale a tornar-se consciente do espírito. Sendo assim o processo de individuação pode ser percebido também no corpo, com isso em mente devemos compreender a obesidade em termos simbólicos, a partir dessa compreensão temos possibilidade de tratamento e de cura.

Para Woodman ser viciado é ser empurrado na direção de um dado objeto por uma energia interior incontrolável e quanto mais o indivíduo o tem mais ele quer. Podemos observar que em quadros de obesidade e compulsão alimentar essa relação viciada está presente. O sujeito é tomado por uma força maior (o complexo), que o faz ingerir uma enorme quantidade de comida num curto espaço de tempo e sem controle nenhum. Entendendo que o vício é um desejo que não encontra seu verdadeiro objeto, podemos compreender a compulsão como um sintoma de um instinto não satisfeito e, portanto, atuado.

No transtorno de compulsão alimentar a fome que necessita ser satisfeita é a fome psíquica, cuja base é instintiva e que foge ao controle do Eu por estar fora do domínio da consciência. Para Jung a fome psíquica seria o instinto modificado, o instinto como fenômeno psíquico. A fome como expressão característica do instinto de autoconservação é sem dúvida um dos fatores mais primitivos e mais poderosos que influenciam o comportamento humano. Ele observou que, no homem primitivo, o medo dos inimigos e da fome era um problema maior que a sexualidade. Analisando-se a compulsividade do homem contemporâneo podemos encontrar o mesmo medo, uma luta pela autoconservação e adaptação social. Para Jung o medo impede a progressão da libido, que quando represada por um obstáculo não regride necessariamente para objetos sexuais, mas para atividades rítmicas infantis que são o modelo primário do modelo de alimentação. A compulsão alimentar pode ser compreendida como a regressão da libido até as camadas mais profundas da psique.

Para a psicologia analítica o indivíduo doente é ¨tomado¨ pela doença, que é um complexo que se constela e traz simbolicamente alguma necessidade da alma não escutada.

O relacionamento mais importante entre mulheres é a relação mãe e filha. Esse é um elo primordial, é o ponto de origem da identidade do ego da mulher, da sensação de segurança diante do mundo, dos sentimentos que essa mulher terá sobre outras mulheres, sobre si mesma e sobre seu corpo. Para Woodman na mulher obesa o complexo materno é crucial. O bebê tem choros diferentes para cada necessidade, mas se sua mãe não souber interpretar os diferentes choros, não dispor de recursos internos para dar respostas diferentes ou não tiver amor para atender as necessidades, responderá a todo tipo de choro com comida. Uma mãe que não tem contato com o próprio corpo não conseguirá fornecer ao bebê um sentido de harmonia com o universo e com o Self, o que será fundamental para o sentido ulterior de totalidade do filho. Neumann diz que quando a relação primária é perturbada a criança se culpa e sente que não é amada. Mais tarde o Self da menina se transformará na mãe terrível que rejeitará ao filho o direito de viver. Ela experimenta o animus da mãe como algo hostil e desenvolve um paradoxo, passa a experimentar todo princípio ordenador como um ataque a sua psique reagindo com medo. Se a relação primária for positiva, a criança aceitará o ataque do princípio ordenador, pois o predomínio do princípio de Eros lhe dá coragem para aceitar o poder negativo. Se por outro lado, essa relação for negativa um ego assustado nascido do instinto de autopreservação substituirá por agressão e por mecanismos de defesa a segurança que a mãe negativa foi incapaz de dar. Para Woodman a criança que não conseguiu viver seus próprios ritmos espontâneos desenvolve um medo petrificador do poder de seus próprios instintos. Essa criança se transformará na mulher adulta que não compreende o princípio feminino.

É necessário que haja uma constância na relação mãe e filha para que esta se sinta acolhida. A repetição das atividades cotidianas como cuidar, alimentar, segurar, oferece conforto ao bebê e vai transformando os afetos aversivos em um senso de confiança, configurando assim um desenvolvimento normal. Dessa forma o bebê se sente amado e aceito dando base para um ego forte capaz de integrar elementos positivos e negativos.

Mãe é quem nutre, cuida, recebe, ama, apóia, dá segurança. A mãe deve aceitar o filho em sua totalidade, porém este também apresenta aspectos que poderão ser rejeitados por essa mãe. O filho não aceito em sua totalidade poderá rejeitar o próprio corpo. A mãe real sempre apresentará caráter positivo e negativo. O indivíduo juntará a essas impressões da mãe real projeções fantasiosas que lhe chegam através do inconsciente coletivo e das características da Grande Mãe, que é sentida por todos. É da mãe real que recebemos nossas primeiras impressões de como ser mulher e do que significa ser mulher, é dela também que recebemos alguns aspectos da mãe arquetípica, a Grande Mãe.

Em nossa cultura o alimento é um catalisador para praticamente qualquer emoção, uma maneira positiva de expressar alegria, amor, aceitação. O alimento e suas qualidades estão no centro de todas as comemorações, partilhar alimento é fazer parte da festa, é festejar a vida. A compulsão alimentar é uma neurose e podemos entender que, vista pelo lado positivo, está forçando as mulheres a tornarem-se conscientes, mas tal conscientização pode não ser suportável. Quando o conflito ainda não se encontra na consciência assume uma forma psicossomática, a neurose atacará onde mais dói diretamente no cerne do ego feminino. A menina gorda se isola e mergulha em seu próprio mundo interior onde as fantasias compensam a vida não vivida. O proibido, neste caso o alimento, se torna ao mesmo tempo objeto de desejo e de perigo. Enquanto o impulso inconsciente por trás do alimento, que envolve o relacionamento mãe e filha, não for compreendido, será posto em prática em atuações destrutivas. Se for entendido, poderá ser elaborado criativamente.

É possível perceber a importância da figura materna na vida da mulher e como o relacionamento com a mãe pode afetar a imagem que a filha terá dela mesma. O relacionamento entre mãe e filha formará o complexo materno que poderá ter caráter positivo ou negativo, dependendo da qualidade desta relação. No caso da compulsão alimentar o que está constelado é o complexo materno negativo. Durante seu desenvolvimento o bebê sentirá a presença da mãe boa e da mãe terrível e conforme o relacionamento vai se dando no cotidiano ele internalizará estas figuras e dependendo da força de seu ego, que será formado a partir da relação entre ele e a mãe ele conseguirá lidar com os dois aspectos de forma saudável. Na ausência de uma mãe nutridora tanto pessoal quanto arquetipicamente a mulher tentará concretizá-la nas coisas, incluindo a comida. A comida se torna a mãe, o amor materno virá através da comida. Desenvolve-se uma relação de amor e ódio. A mulher comerá em demasia para preencher esse vazio, mas embora se preencha literalmente de comida até não poder mais, o vazio continua porque o que ela procura é desesperadamente pelo amor e o acolhimento que não foi sentido nos primeiros anos.

Somos uma geração de mulheres que se afastou do princípio feminino e da Grande Mãe, nossas mães foram impelidas para o mundo do patriarcado, onde é preciso manter a ordem, a força, o poder e ficaram distantes do princípio feminino, isso resultou nesse afastamento da mulher das coisas da natureza, dessa ligação com o mistério feminino. A imagem da Grande Mãe precisa ser resgatada para que assim a mulher possa superar a distância entre si mesma e sua feminilidade. É preciso se reconciliar com o feminino sagrado. O equilíbrio devolveria a vida. O princípio masculino que é perfeccionista, racional, orientado para a consecução de metas deveria ser equilibrado pelo princípio feminino.

A partir desta compreensão podemos resgatar a relação entre mãe e filha. É necessário que esta mulher resgate a criança interior e a acolha para restaurar a relação com sua mãe interna, mesmo que a relação com a mãe externa esteja satisfatória ou que nem exista, porque o que causa toda a dor é a relação com a mãe interna, que foi composta pela imagem da mãe real e das impressões da mãe arquetípica.

A obesidade precisa ser compreendida de forma simbólica, a partir dessa compreensão há a possibilidade de tratamento e de cura. Os sonhos são uma ferramenta importante neste processo pois através de suas mensagens podemos acessar os símbolos que nos levarão a compreensão do transtorno.

Keller Villela

Psicóloga, Membro Analista em Formação pelo IJEP

Fone: 98225-4490 Vila Mariana e Guarulhos

e-mail: kellervillela@terra.com.br

Referências:

JACOB, Mario. Psicoterapia Junguiana e a pesquisa contemporânea com crianças. São Paulo. Paulus, 2ª edição, 2016.

JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. Rio de Janeiro. Vozes, 5ª edição, 2011.

________________ Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro. Vozes, 8ª edição, 2012.

________________ A natureza da Psique. Rio de Janeiro. Vozes, 8ª edição, 2011.

NEUMANN, Erich. A criança. São Paulo. Cultrix, 10ª edição, 1995.

WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1971.

WOODMAN, Marion. O Vício da Perfeição. São Paulo. Summus Editorial, 2002.

_________________ A coruja era filha do padeiro. São Paulo. Cultrix, 1980.

_________________ A feminilidade consciente.  São Paulo. Paulus, 2003.

www.abeso.org.br  consultado em 28/07/2018.

www.ambulin.org.br  consultado em 28/07/2018.

Keller Villela –

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