Resumo: Ogum, senhor dos caminhos, das lutas e das ferramentas sagradas, nos ensina que é preciso forjar o próprio destino. Meu novo artigo mergulha nesse arquétipo poderoso, entre a psicologia junguiana e os mitos afro-brasileiros, para pensar as guerras visíveis e invisíveis que todos travamos. Se você sente que está em meio a encruzilhadas, batalhas ou buscas por justiça, talvez Ogum tenha algo a te dizer. Convido você a ler esse texto com o coração atento e a alma aberta. Quem sabe, em alguma linha, uma espada simbólica não se acende em sua consciência?
Há um momento na vida em que a alma percebe que não poderá mais fugir. Nem se esconder nas cavernas da complacência, nem fingir mansidão quando o sangue pulsa revolta. É nesse instante limiar, entre a dor e a coragem, que Ogum se apresenta. Ogum não chega com meias palavras. Ele bate o ferro na bigorna do destino e forja a travessia.
É o orixá das encruzilhadas em linha reta, onde não cabe dúvida, apenas passo firme. Senhor das ferramentas e do trabalho, é ele quem prepara o chão para que outros caminhem. Na psique, Ogum é aquele que nos chama à responsabilidade de ser quem nós somos (Daimon), mesmo que para isso seja preciso romper pactos com a sombra da submissão.
Na linguagem da psicologia analítica, Ogum representa o arquétipo do guerreiro, mas não apenas o que luta contra, e sim aquele que luta por.
Por justiça.
Por dignidade.
Por clareza.
Por vida.
Como bem lembra Waldemar Magaldi, “somos filhos da guerra entre o ego e o Self” (2006, p.42), e Ogum é aquele que atravessa esse campo de batalha como mediador da ação consciente. Ele nos ensina que não basta sentir, é preciso agir. Não basta ter vontade, é preciso disciplina. E, sobretudo, não basta sonhar, é preciso construir com as próprias mãos, com o próprio suor, com o próprio sagrado.
Ogum é o arquétipo da ferramenta que corta, que delimita, que separa o antes do depois. É a espada que livra e a enxada que semeia. É o corte necessário para que a alma não apodreça de tanto esperar. Nos processos clínicos, Ogum pode emergir nos momentos de decisão, quando o sujeito precisa escolher sair da posição de vítima e assumir a autoria da própria história. Mas cuidado: Ogum não tolera a mentira que contamos a nós mesmos.
Ele arranca máscaras, desarma subterfúgios e exige honestidade crua, com os outros, mas sobretudo com a própria alma. Ogum é feito de ferro e não por acaso. Na tradição simbólica, o ferro representa aquilo que suporta o fogo, mas que também se transforma por ele. É o elemento que atravessa o calor da dor para se tornar instrumento de ação. Ogum é aquele que nos ensina que o sofrimento pode ser moldado, temperado e ressignificado, não para nos endurecer, mas para nos tornar precisos e preciosos, como o próprio processo alquímico e o Processo de Individuação.
Jung (2006.p. 170) dizia que “o sofrimento precisa fazer sentido, senão ele destrói”.
É Ogum quem dá esse sentido à dor: não como castigo, mas como forja. Ele transforma o caos interno em direção, e o excesso em canal. No corpo, Ogum se manifesta nas tensões musculares, nas dores das articulações, nas inflamações que denunciam batalhas silenciosas sendo travadas sem nome, sem que ninguém saiba, onde temos somente nossos pensamentos, nosso travesseiro e nossas lágrimas silenciosas.
É comum que, na clínica, ele apareça escondido nas queixas psicossomáticas ligadas à exaustão, ao cansaço do excesso de responsabilidade, ou nas dores que os ombros carregam como se fossem lanças. Como lembra Waldemar Magaldi, “toda dor que se fixa no corpo é um chamado do espírito que não está sendo escutado” (palestra 2016, disponível no youtube com o título: O corpo fala o que a alma cala)
Ogum é essa escuta materializada no corpo, ele fala através das dores que insistimos em calar.
Mas não é só no corpo que fala Ogum. O trabalho também é sua casa. Ele rege os caminhos trilhados com suor, os instrumentos da profissão, as batalhas cotidianas da sobrevivência. Se Xangô faz justiça, é Ogum quem empunha a espada.
Se Exu abre os caminhos, é Ogum quem constrói a estrada.
É ele que garante que a travessia seja possível, mesmo que árdua.
O ferro de Ogum é também o ferro do útero, da faca que corta o cordão, da tesoura que liberta, do bisturi que cura. Não há nascimento psíquico sem dor, sem corte, sem separação e Ogum conhece bem esses processos. Ele está presente nos ritos de passagem, nos momentos em que o antigo não serve mais, mas onde o novo ainda assusta.
Ele é a ponte entre o que fomos e o que precisamos ser.
Mas Ogum não é apenas ferro e luta. Ele é também oração, silêncio e fé. Sua espiritualidade não está nos templos, mas na lida. Ogum reza com o corpo, canta com o suor, dança com a superação. Na umbanda, é comum ouvi-lo nos pontos cantados pedindo proteção para a estrada, força para a luta e luz para o caminho.
Porque Ogum não abandona os seus, mas também não alivia os fardos sem sentido. Ele só caminha com quem caminha.
Nos tempos líquidos de Baumann (2001, p.8), em que tudo escorre, dissolve e se fragmenta, Ogum nos oferece a firmeza da direção. Ele nos ensina que não há liberdade sem responsabilidade, e que a coragem não é ausência de medo, é a travessia dele, porque para que haja vida precisamos ter a coragem de romper com tudo que nos aprisiona, nos apequena ou nos machuca.
Na clínica, vejo Ogum surgir quando o sujeito ousa romper com padrões adoecidos, dizer “não” ao que fere sua alma, ou mesmo tomar decisões que pareciam impossíveis. Ele aparece quando a mulher cansada de se calar decide falar. Quando o homem esgotado de carregar personagens de si mesmo, decide tirar a máscara. Quando alguém enfim entende que lutar não é guerrear contra o outro, mas sim firmar aliança com o próprio destino.
Há um momento na vida em que a alma se cansa de adiar o próprio nascimento. É quando a angústia deixa de ser apenas dor, e se torna impulso. Quando o grito que antes se escondia no corpo toma forma, gesto, direção. É aí que Ogum se apresenta. Mas precisamos tomar cuidado, porque ele nunca chega de mansinho. Ele irrompe. Com sua espada flamejante, ele rompe as amarras invisíveis, corta os laços podres que já não sustentam a vida, e forja a coragem de seguir.
É o senhor das estradas, não apenas as de barro, as de ferro ou as asfaltadas, mas as estradas internas, aquelas que nos levam do medo ao destino. Na mitologia afro-brasileira, Ogum é o orixá da guerra, da metalurgia, das ferramentas e dos caminhos.
Mas em seu mistério mais profundo, ele é o senhor da travessia psíquica. Na psicologia analítica, ele encarna o arquétipo do guerreiro, não no sentido bélico, mas no da alma que ousa posicionar-se no mundo.
Jung (2000, §276) escreve que “o inconsciente quer ser percebido e compreendido”, e Ogum é essa força interior que nos arranca da paralisia para nos lançar no movimento consciente.
Ele não é a vitória de um sobre o outro, mas o processo da tensão entre ambos. Ele é a luta simbólica que transforma o sofrimento bruto em ação com sentido. O ferro como símbolo iniciático aparece sempre em seus mitos, ao longo de sua jornada e descrevendo a seu caráter e sua índole.
O ferro de Ogum não é apenas material. Ele é símbolo. É o elemento que resiste ao fogo e, ao mesmo tempo, se transforma por ele. Representa a alma que não se quebra diante da dor, mas que se molda, não para se endurecer, mas para tornar-se instrumento da própria Individuação.
No corpo, o ferro se traduz na rigidez muscular, na dor das articulações, nas tensões da nuca e dos ombros. Ele pesa, endurece, inflama. É o grito abafado que desce do espírito e se aloja na carne. Simone Magaldi (2021, p. 59) ensina que “as dores que adoecem o corpo são quase sempre sintomas do que não pôde ser dito pela alma”.
Nesse sentido, Ogum nos convida à escuta do corpo como campo de batalha simbólica. Onde há dor, há também verdade, ainda que encoberta, e essas dores sendo ouvidas, podem se tornar verdadeiros tesouros no caminho do ser que verdadeiramente somos. A travessia de Ogum é sempre ritual. É necessário perder algo para ganhar outro sentido. Sua espada não fere, ela separa. Corta o cordão umbilical da dependência psíquica, rompe a lealdade cega aos complexos familiares, desfaz os pactos inconscientes com a autossabotagem.
Ogum representa o corpo e o trabalho. Rege o trabalho, e isso tem uma profundidade imensa no espírito da época. Em um mundo onde produtividade virou doença, o trabalho regido por Ogum é aquele que dignifica, que constrói caminho, que organiza o caos. No ferro do operário, no bisturi do cirurgião, na enxada do agricultor, no teclado do escritor Ogum está presente. Trabalhar, aqui, é um ato espiritual.
Como nos lembra Byung-Chul Han (2015 p. 24), “a sociedade do desempenho transforma cada sujeito em seu próprio carrasco”. Mas Ogum não é o orixá da exaustão. Ele nos ensina o trabalho com propósito, o esforço que edifica, e não o que esvazia e, de forma alguma, aquele trabalho que nos leva para o vazio de sentido e significado, burnout ou para a desconexão ou o vazio existencial.
Na clínica, Ogum surge nos momentos de virada. Quando o sujeito cansado de repetir os mesmos padrões decide parar de esperar permissão, ou esperar ser libertado e vai para a vida, fazendo suas escolhas e se responsabilizando pelas suas próprias escolhas. Quando a pessoa que sempre cuidou e viveu a vida em função de todos percebe que também precisa ser cuidada. Quando alguém, finalmente, diz “não” e esse “não” se torna a espada que corta a repetição neurótica.
Ogum é imprescindível para reconexão com a alma mediante os desafios da vida moderna, ele convoca a todos para a experiência do corpo, e não podemos esquecer que uma psique sem um corpo não existe, ele prega essa vivência como a coragem necessária para nos levar a espiritualidade.
Vivemos tempos de anestesia emocional e simbólica, onde muitos seguem sem alma, como quem caminha sem saber por quê. É nesse cenário que a força de Ogum se faz ainda mais urgente. Ogum é a coragem que nos faz caminhar com as vontades e aspirações de nossos próprios sentimentos, em sentido ao nosso Daimon. Mas, não a coragem performática dos heróis hollywoodianos. É a coragem de encarar o medo, de atravessar a noite escura da alma, de suportar o desconforto da mudança.
É a coragem de se tornar quem se é, mesmo quando isso desagrada os pactos de silêncio, os moldes familiares e os contratos sociais adoecidos. Numa ampliação simbólica, Ogum é o início da jornada da alma. É ele quem nos arranca da caverna, não para nos expor, mas para nos revelar. E no caminho da Individuação, Ogum em nossa psique é essencial. Porque é ele quem prepara o terreno, firma o solo, abre passagem entre as pedras. E cada pedra removida do caminho é também uma pedra retirada do peito.
Em sua expressão mais profunda, é o símbolo do guerreiro arquetípico que habita a psique humana. Mas não se trata de um guerreiro qualquer e sim daquele que, atravessando a noite escura da alma, luta pela verdade do ser. Ele não ataca por vaidade, mas age por integridade.
Jung compreendia que esse guerreiro interior emerge quando o sujeito precisa romper com a persona adaptada e encarar os conflitos que impedem o florescimento do Self. Ele escreve: “o herói é aquele que vence o dragão, isto é, os conteúdos perigosos do inconsciente, e conquista a vitória sobre o medo, a dúvida, a hesitação” (JUNG, 2000, §280).
Em outras palavras, o guerreiro psíquico não combate inimigos externos, ele enfrenta os próprios demônios internos: as repetições, os complexos autodestrutivos, os pactos invisíveis com a submissão ou com a violência. A espada de Ogum, nesse sentido, é símbolo da consciência que corta o enredo adoecido e instaura um novo ciclo de vida.
No Processo de Individuação, o arquétipo do guerreiro tem a função de criar separação entre o ego infantil e a matriz arcaica do inconsciente. É ele quem oferece força, disciplina e coragem para que o ego não se perca nos mares simbólicos da mãe devoradora, da culpa paralisante ou da identificação com a sombra.
Jung afirma: “O herói é o símbolo do si-mesmo, pois representa o esforço da totalidade psíquica para vencer as forças do inconsciente que ameaçam devorar o ego” (JUNG, 2002, p. 150).
Ogum é, portanto, expressão desse herói arquetípico. Ele representa o impulso psíquico para a ação justa, o enfrentamento necessário e o avanço ético. Como força iniciática, ele nos conduz da servidão inconsciente à liberdade interior. E liberdade, aqui, não é fazer o que se quer, mas ser quem se é.
Como nos lembra Jung: “A individuação é o processo pelo qual uma pessoa se torna aquilo que ela realmente é, separando-se da coletividade inconsciente” (JUNG, 2013, p. 131).
E Ogum é a força que viabiliza esse corte simbólico, ao mesmo tempo doloroso e libertador. No vasto panteão dos orixás, há algo curioso que salta aos olhos: Ogum e Iemanjá são, talvez, os mais lembrados, mais cantados, mais representados nas imagens populares, mesmo fora dos terreiros. Vemos suas figuras em chaveiros, em estampas, em velas nos mercados, em festas nas praias e nos altares improvisados da fé popular.
Mas e Nanã? E Obaluaê? E Ossain? E Ewá? Por que esses parecem habitar as margens da consciência coletiva?
A resposta não é simples, mas podemos ampliá-la simbólica e arquetipicamente.
Ogum e Iemanjá representam dois polos estruturantes da psique humana e da vida social:
- Ele, o princípio da ação, do corte, do fazer, do guerrear, da expressão solar, masculina, fálica, associada ao ferro, à estrada e à civilização.
- Ela, o princípio do cuidado, do acolhimento, da origem, das águas e da maternidade, expressão lunar, feminina, uterina, associada ao mar, ao amor e ao colo.
Essas são imagens potentes e universais, que podemos observar são fáceis de nomear, visualizar, associar ao cotidiano. Ogum é o pai que protege. Iemanjá é a mãe que cuida.
Ambos preenchem fantasias inconscientes básicas da psique: proteção e pertencimento. Quem nunca precisou de alguém que lhe defenda e lhe cuide, quem não precisa de um “colo” de mãe? Jung (2000, §64) afirmava que “os arquétipos mais acessíveis são aqueles que encontram ressonância com estruturas emocionais universais, como o pai protetor e a mãe amorosa”.
Por isso, esses dois orixás se tornaram “porta-vozes” da fé afro-brasileira para além dos muros do sagrado. Mas há um preço nisso: os demais orixás sofrem apagamento simbólico, especialmente os que lidam com a morte, a ancestralidade, o silêncio, o mistério ou a sexualidade, tudo que a cultura patriarcal e racionalista tenta suprimir. Nanã, senhora dos pântanos e da morte uterina, é esquecida porque confronta o narcisismo da eternidade. Obaluaê, com suas feridas, causa incômodo num mundo que idolatra juventude e performance. Ossain, o ermitão das matas, não cabe numa lógica de produtividade. E Pombagira, com seu desejo e sua voz, foi demonizada.
A cultura dominante assimilou Ogum e Iemanjá como se fossem “palatáveis”, mas, reduziu sua profundidade, transformando-os em caricaturas: Ogum o guerreiro invencível, Iemanjá a mãe boazinha. Mas Ogum também sangra. E Iemanjá também engole. A visibilidade desses dois orixás é, portanto, ambígua:
Eles são honrados, sim, mas também utilizados para calar o resto da floresta simbólica.
Como nos lembra Simone Magaldi (2021, p. 92), “todo símbolo que se torna domesticado perde sua potência transformadora”.
Nos cabe, então, resgatar os orixás esquecidos, e restituir a profundidadedaqueles que foram simplificados. Ogum não é só ferro: é contradição. Iemanjá não é só colo: é abismo. E os demais orixás são tão fundamentais quanto eles na travessia da alma, e na jornada do ego para se tornar inteiro. Nem toda batalha de Ogum é visível. Nem toda guerra se trava com espada na mão. Há dores que Ogum carrega no íntimo e que nenhum canto popular canta. Porque, ao contrário do que imagina a imagem domesticada do guerreiro invencível, Ogum também se cala. Ogum também sangra. Ogum também se ajoelha.
Na mitologia, há passagens em que Ogum enlouquece, esgota-se, se isola nas matas. Depois de matar sem distinção, ele se vê tomado por um colapso interno, e se retira. Esse silêncio é fundamental. É ali que o guerreiro descobre que vencer não é apenas subjugar o outro, é olhar para dentro e suportar o próprio grito e curar as suas próprias feridas, assim como lutar suas próprias guerras.
Jung (2000, §288) afirmava que “o herói, antes de conquistar o tesouro, precisa descer ao reino das trevas”.
No caso de Ogum, essas trevas são a dor do dever mal compreendido, o peso de ser sempre o forte, o esgotamento de quem sustenta o mundo nos ombros e esquece de si. O silêncio de Ogum não é fraqueza, é um recolhimento que nos conduz ou reconecta ao sagrado. É o intervalo entre o golpe e o perdão. É a pausa em que o ferro se resfria, em que o suor vira oração, em que o coração pode finalmente escutar a si mesmo.
Pensando sobre tudo isso me parece muito difícil e doloroso, e é assim mesmo a luta que o Ogum em nós nos convoca, e que nós, analistas, vemos todos os dias no silencio e na tensão criativa no setting terapêutico. Verdadeiras guerras são travadas e todos sangram, cliente e analista sofrem juntos e juntos se transformam.
No mundo contemporâneo, onde se exige produtividade constante, Ogum adoece. Torna-se o homem exausto, a mulher guerreira solitária, o analista que cuida de todos, mas não tem onde desaguar. É na clínica que esse Ogum aparece, muitas vezes em forma de burnout, de crises de falta de sentido, de depressões ocultas sob a capa do “funcionamento exemplar”.
Mas Ogum também é espiritualidade. Não a espiritualidade da rendição, mas a da presença firme, da oração que se faz na ação, do ofício que vira oferenda. Ele é o orixá que não foge do mundo, ele o atravessa com honra, como todos os guerreiros que se entregam para a coragem, ou seja, o chamado da alma.
Waldemar Magaldi (2007, p. 78) nos lembra que “a espiritualidade verdadeira é a capacidade de manter-se íntegro mesmo no meio da batalha”.
Ogum é essa integridade encarnada. Quando o ferro já não corta e a estrada se fecha, Ogum se recolhe. Não para desistir, mas para escutar o que a dor tem a dizer.
Porque a dor, quando ouvida com coragem, é também um oráculo, um portal para a transformação de todos nós. E nesse espaço sagrado entre o grito e o silêncio, o guerreiro se torna curador. Porque só quem enfrentou a própria sombra pode proteger o outro com verdade.
Ogum é ainda o senhor da ordem e da disciplina e seu irmão Exu, senhor do caos criativo e das encruzilhadas. Na mitologia africana do encontro entre essas forças nasce Ogum Xoroquê, aquele que carrega a espada e o tridente, o corte e o movimento, a rigidez e a ginga. Conta-se que Ogum, depois de muitas guerras, ao perder-se nos próprios excessos, foi acolhido por Exu. E desse acolhimento simbólico nasceu Xoroquê, figura paradoxal, dual, ambígua, que guarda os extremos do humano. É Ogum que aprendeu a rir. É Exu que aprendeu a guerrear com estratégia.
Na linguagem junguiana, Ogum Xoroquê representa a união entre o ego guerreiro e a sombra instintiva, entre a ação reta e a esperteza do inconsciente.
Trata-se da união simbólica de opostos, que Jung compreendia como essencial no Processo de Individuação: “A individuação requer a união dos opostos, pois toda unilateralidade conduz ao desequilíbrio psíquico” (JUNG, 2011, p. 179).
Xoroquê nos mostra que não há luz sem sombra, nem caminho que se sustente sem lidar com as bifurcações da alma. Ele é o guerreiro que reconheceu o limite da força bruta e permitiu-se rir, negociar, improvisar. É aquele que caminha entre mundos, e por isso mesmo é perigoso, poderoso e profundamente verdadeiro.
Na clínica, Ogum Xoroquê aparece quando o sujeito já não consegue mais sustentar a rigidez. Quando a armadura pesa mais do que protege.
Quando o caminho reto se mostra impossível, e é preciso aprender a escutar os sinais da encruzilhada. Ele é a reconciliação do guerreiro com o corpo, com o prazer, com o erro, com a vida. É o momento em que o ego, já cansado de lutar contra tudo e todos, finalmente se curva, não em rendição, mas em sabedoria.
Porque como lembra Simone Magaldi (2021, p. 83), “há uma hora em que o herói precisa descer do cavalo e aprender a andar descalço”.
Ogum Xoroquê é esse andar descalço. É a alma que, depois de guerrear, aprende a dançar. É a espada que vira ponte, é o ferro que aprende a ser fogo também. Ogum é o general simbólico dessa travessia. Ele nos lembra que o maior inimigo não está fora, mas nas covardias íntimas que nos impedem de florescer. A coragem, portanto, é sagrada.
Porque só ela nos devolve ao eixo da alma.
Trago ainda um ponto, ou uma reza sagrada de Ogum, para nossa ampliação simbólica:
Eu tenho sete espadas pra me defender
Eu tenho Ogum em minha companhia
Ogum é meu pai
Ogum é meu guia
Ogum é meu pai
Na fé de Zambi
E da Virgem Maria
(autor desconhecido)
Há quem pense que as espadas de Ogum servem apenas para atacar. Mas, quem conhece a alma desse orixá sabe: são sete espadas, e todas são de defesa. Não da defesa bruta, impulsiva, inconsciente. Mas da defesa ritual, construída ao longo de uma vida de travessias. “Eu tenho sete espadas pra me defender”, dizem em pontos de canto e reza. E cada uma dessas espadas carrega uma história, uma dor, um enfrentamento, um renascimento.
Numa ampliação simbólica, entendo que a primeira espada é a da justiça, aquela que corta o abuso e delimita o que não cabe mais. A segunda é a da verdade, que separa a ilusão da consciência, o autoengano da lucidez. A terceira é a do limite, o “não” que protege a alma de repetir velhas feridas. A quarta é a da coragem emocional, que permite sentir sem ser arrastado. A quinta é a do silêncio, que escolhe o recuo sagrado quando o mundo grita demais. A sexta é a da memória ancestral, que lembra quem se é, mesmo quando tudo ao redor tenta apagar. (Leitura própria desta autora)
E a sétima?
Ahhh, a sétima é a espada invisível, aquela forjada no espírito, no fogo do axé, na oração solitária, a coragem que temos que buscar, para ser nós mesmos. Essas espadas não são armas de guerra, mas instrumentos de consciência. São defesas simbólicas contra a destruição psíquica, contra o apagamento da identidade, contra a repetição do trauma. São como diz Jung (2011, p. 143): “as defesas necessárias à integridade do ego surgem como respostas simbólicas a conteúdos inconscientes ameaçadores”.
Na clínica, vejo essas espadas emergirem quando uma pessoa ferida decide não perpetuar a violência, os desmandos, os abusos, as dores e situações que se repetem na história de sua família, se desvinculando e, quem sabe, “libertando” as próximas gerações desta carga transgeracional que sofreu. Quando alguém, enfim, entende que defender-se não é fechar-se, mas honrar os próprios limites com dignidade.
Que Ogum nos ensine a lutar sem perder a ternura, a dizer sim sem abandonar o discernimento, e a atravessar nossas dores com honra e direção. Que sua espada nos proteja, que suas ferramentas nos fortaleçam, e que seus caminhos se abram dentro e fora de nós.
Laroyê Exu, que anuncia. Ogum Yê, que constrói.
Que Ogum te acompanhe com firmeza e que o sagrado te cubra com coragem e direção. Axé!
Ms. Natalhe Vieni – Analista Didata em Formação do IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Analista Didata e Fundadora do IJEP
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