Eu sou protestante há mais de 40 anos e sempre gostei de me apresentar como evangélica, no entanto, eu tenho repensado essa identificação e vou explicar o porquê. Para o professor Luiz Longuini Neto, evangélico seria uma forma de identificar parte da cristante como adepta da fé protestante, ou seja, não católica. “Evangelical ou evangélico equivaleria à totalidade dos cristãos que se identificam com a Reforma Protestante do século 16” (LONGUINI, p 21).
No Brasil, os cristãos não católicos passaram a auto-identificar-se como evangélicos, o mesmo ocorre com as Igrejas evangélicas. Os próprios católicos, passada a época de antagonismos, e principalmente por causa do movimento ecumenico, aceitaram essa identificação. Naturalmente, os católicos, ao identificarem os cristãos não-católicos como evangélicos, contornam o designativo de “protestante”, carregado de preconceitos no Brasil já que, no auge dos conflitos entre protestantes e católicos, aqueles eram designados por estes como “os que protestavam contra Deus”.
(MENDONÇA, 1990, p 15,16)
O uso do termo protestante para evangélicos sempre foi mais usado por historiadores e sociólogos e num momento ou outro, algumas pessoas de igrejas históricas, como presbiterianos, metodistas, anglicanos e luteranos se diziam protestantes.
No livro, Introdução ao Protestantismo no Brasil, que foi escrito na década de 90, se tornou um clássico, os professores Antônio Gouvêa Mendonça e Prócoro Velasques Filho, retratam de modo brilhante as ramificações do protestantismo brasileiro.
Mas quem são os evangélicos no Brasil hoje? Antes de responder a esta pergunta, quero falar da necessidade humana de se expressar religiosamente.
É claro que uma religião também é um fenômeno sociológico e por esse mesmo motivo pode perder-se de si mesma. Mas para Carl G. Jung, a religião é “(…) uma das expressões mais antigas e universais da alma humana (…) além de ser um fenômeno sociológico ou histórico, é também um assunto importante para grande número de indivíduos” (C. G. Jung, OC 11/1 – §1).
Carl Jung trata desse assunto do ponto de vista psíquico e empírico, se abstendo de uma abordagem metafísica ou filosófica do problema religioso. Para ele, existe uma função religiosa no inconsciente que é demonstrada nos símbolos religiosos. C. Jung dá esse exemplo: “quando a psicologia se refere, por exemplo, ao tema da concepção virginal, só se ocupa da existência de tal ideia, não cuidando de saber se ela é verdadeira ou falsa, em qualquer sentido”. Ele continua dizendo:
a ideia é psicologicamente verdadeira, na medida em que existe. A existência psicológica é subjetiva, porquanto uma ideia só pode ocorrer num indivíduo. Mas é objetiva, na medida em que mediante um consensus gentium é partilhada por um grupo maior.
(C. G. Jung. OC 11/1 – § 4).
No sentido junguiano, toda religião é verdadeira e por este motivo não é simplesmente criada por indivíduos, ela irrompe na consciência individual.
C. Jung percebe o caráter numinoso da experiência religiosa, a partir do pensamento de Rudolf Otto.
Religião é — como diz o vocábulo latino religere — uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de “numinoso“, isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade.
(C. G. Jung. OC 11/1 – § 6).
Segundo C. Jung, o numinoso pode ser capturado por um objeto visível ou um influxo invisível que produz modificação na consciência (Cf. JUNG, OC 11/1 – § 6).
Rudolf Otto fala de uma experiência profunda de anulação, “a estranha e profunda resposta da psique à experiência do numinoso, a qual propusemos chamar de “experiência de criatura”, constituído pelas sensações de afundar, de apoucar-se e ser anulado” (OTTO, 2007, p 90). De acordo com o teólogo Paul Tillich, essa experiência é a de estar possuído por aquilo que toca o ser humano incondicionalmente.
O sentimento de ser aniquilado pela presença do divino é o que expressa mais profundamente a relação em que se encontra o homem diante do sagrado. E esse sentimento perpassa todo o ato de fé legítimo e de todo estar possuído em última instância.
(TILLICH, 2002, p 13)
O problema religioso se manifesta nos seres humanos com a sua aproximação do numinoso.
Por isso, vale lembrar, que este só pode ser capturado pelo visível, no símbolo, sendo assim, a experiência religiosa não pode ser de forma alguma algo inflexível, nem mesmo quando se refere a Deus. Para Carl Jung, Deus é uma realidade psíquica, embora numa polêmica com Martin Buber, ele diga que nunca afirmou que Deus seja apenas uma realidade psicológica. “Além disso, eu jamais tive a pretensão de enfraquecer o significado dos símbolos; pelo contrário, se deles me ocupei foi por estar convencido de seu valor psicológico” (C. G. Jung. OC 11/2- § 170). Segundo C. Jung, o dogma da trindade é um dos símbolos mais sagrados do Cristianismo, por exemplo.
Paul Tillich afirma que o símbolo é fundamental, para aquilo que nos toca incondicionalmente é Deus (Cf. TILLICH, 2002, p 34). Segundo o teólogo alemão, “Deus é símbolo para Deus”.
Segundo P. Tillich, a preocupação incondicional é um dos elementos responsáveis pela integração da pessoa:
Uma preocupação incondicional se manifesta em todas as áreas da realidade e em todas as expressões de vida da pessoa. Isso porque o incondicional não é um objeto entre outros, e sim a base e origem de todo o ser, e como tal, o centro unificador da pessoa.
TILLICH, 2002, p 69
Esse elemento unificador do incondicional se segundo P. Tillich, pode se manifestar na vida artística, na atuação ética, na política, na pesquisa científica, entre outros aspectos da vida.
Nós mostramos como a fé dá forma e une a todos os elementos intelectuais, emocionais e corporais da pessoa e como ela representa a força integradora como tal. Essa imagem do poder da fé contém, porém, apenas as cores alegres e não os aspectos sombrios da desagregação e do mórbido, que podem impedir a fé de criar uma vida integral da personalidade, mesmo naquelas pessoas em que a força da fé se manifesta de modo mais visíveis: nos santos, místicos e profetas. O homem nunca vive exclusivamente a partir do centro da vida. Em todos os âmbitos de seu ser atuam forças corruptoras.
TILLICH, 2002, p 70
Esse aspecto sombrio e mórbido da relação do ser humano com a fé, precisa ser considerado e observado na experiência religiosa dos evangélicos. Essa dimensão sombria aparece ao meu ver na dificuldade de lidar com a dúvida, pois a intolerância mora na dificuldade de lidar com as incertezas.
Tanto para Paul Tillich quanto para Carl G. Jung, a experiência da fé deveria dar lugar para a dúvida.
Nem a fé pode desaparecer na dúvida, nem a dúvida na fé, se bem que cada uma das duas se pode perder quase que completamente na vida da fé. Mas uma vez que nenhum ser humano é capaz de viver sem uma preocupação última, tanto na fé como dúvida sempre estão por natureza presentes no homem.
TILLICH, 2002, p 66
Nas pessoas que clamam ter uma fé inabalada, o farisaísmo e o fanatismo são frequentemente a prova infalível de que a dúvida provavelmente foi reprimida ou de fato ainda está atuando secretamente. A dúvida não é superada pela repressão, e sim pela coragem. A coragem não nega que a dúvida está aí, mas ela aceita a dúvida como expressão da finitude humana e se confessa, apesar da dúvida, àquilo que toca incondicionalmente. A coragem não precisa de segurança de uma convicção inquestionável. Ela engloba o risco, sem o qual não é possível qualquer vida criativa.
TILLICH, 2002, p 66
O educador e teólogo Rubem Alves, reforça essa ideia, em seu livro Religião e Repressão, ao afirmar que qualquer dúvida, ou questionamento são vistas, em determinadas vertentes do protestantismo, como uma atitude suspeita, embora a dúvida seja radicalmente inerente à fé.
Pensada de forma radical, a experiência da fé se revela como irmã gêmea da dúvida. Não, de forma alguma estou sugerindo que falta alguma coisa à fé, que a fé seja incompleta por estar ainda assombrada pela dúvida.
ALVES, Rubem. 2005, p. 107
Em outro livro, Dogmatismo e Tolerância, R. Alves, reitera que: “A fé chegou mesmo a se identificar com a adesão intelectual a um certo número de proposições dogmáticas, que, pretendia-se, expressavam o ‘sistema de doutrinas’ contidas na Bíblia, e que eram necessárias para a salvação.” (ALVES, Rubem. 2004, p. 71)
Para Carl Jung, o ser humano exposto à dúvida não deveria projetá-las ao acreditar que aqueles que pensam e refletem sobre as doutrinas da fé, são inimigos.
O homem que apenas crê e não procura refletir esquece-se de que é alguém constantemente exposto à dúvida, seu mais íntimo inimigo, pois onde a fé domina, ali também a dúvida está sempre à espreita. Para o homem que pensa, porém, a dúvida é sempre bem recebida, pois ela lhe serve de preciosíssimo degrau para um conhecimento mais perfeito e mais seguro. As pessoas que são capazes de crer deveriam ser mais tolerantes para seus semelhantes, que só sabem pensar. A fé, evidentemente, antecipa-se na chegada ao cume que o pensamento procura atingir mediante uma cansativa ascensão. O crente não deve projetar a dúvida, seu inimigo habitual, naqueles que refletem sobre o conteúdo da doutrina, atribuindo-lhes intenções demolidoras.
C. G. Jung. OC 11/2 – § 170
O fiel cheio de certezas se organiza no mundo, reconhecendo aliados e projetando suas dúvidas, gerando inimigos que devem ser combatidos. A dúvida não assumida e projetada, gera cristãos evangélicos intolerantes, donos da verdade.
Uma verdade única que exclui todo aquele que pensa e vive diferente. Esse diferente é alguém que deve ser combatido e ser retirado o seu direito à voz. Assim sendo, para responder a pergunta quem são os evangélicos hoje, é necessário olhar para a repressão da dúvida e também para as alianças políticas de algumas denominações evangélicos com setores da política brasileira, representada pela bancada evangélica, identificada na sigla BBB (bala, bíblia e boi).
Como não é possível viver num mundo de certezas, o fiel vai buscar no discurso político conservador o meio ideal para idealizar um mundo onde as diferenças, as dúvidas e a pluralidade sejam silenciadas.
Neste sentido, ser evangélico hoje deixou de ser apenas um ramo do protestantismo, para representar uma ideologia social e política, com um projeto político muito bem definido, para impor a sua visão religiosa, cultural e política. A dúvida pertence ao ser humano, sem lugar interno para ela, estamos diante de um grande complexo cultural que tenta dominar o cenário político brasileiro travestido de ideias religiosas.
Silvana Venancio – Membro Analista em formação pelo IJEP
Ana Paula Maluf – Analista Didata do IJEP
Bibliografia:
ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004.
________.ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005.
JUNG, Carl. (1978). Psicologia e Religião. In Obras completas de C. G. Jung, (Vol. 11/1). Petrópolis: Vozes. Originalmente publicado em inglês em 1938.
________. (2013). Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. In Obras completas de C. G. Jung, (Vol. 11/2). Petrópolis: Vozes. Originalmente publicado em alemão em 1942.
LONGUINI, Luiz. O novo rosto da missão. Viçosa: Ultimato, 2002.
MENDONÇA, Antonio G.; VELASQUES. Prócoro Filho. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo, Edições Loyola, 1990.
OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.
TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. 7. ed. Trad. de Walter. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal, 2002.

