“Aquele que conhece os outros é instruído; aquele que conhece a si mesmo é sábio” Lao Tzu
Coordeno cursos de pós-graduação lato-sensu que titulam especialistas em Psicologia Junguiana desde 1988, nestes trinta anos já formamos mais de três mil alunos pelo Brasil afora. Ensinar essa teoria e prática aos alunos, que buscam compreensão teórica e capacitação clínica, mas não pretendem serem exegetas da teoria junguiana, exige que descompliquemos a transmissão deste conhecimento, extremamente complexo, incomodativo e profundo. Jung foi um gênio atormentado, que ao longo da sua obra se contradisse e sofreu diante da amplitude e inefabilidade da alma. Sempre alertamos nossos professores e alunos que, recortes de trechos isolados da obra junguiana, é um desrespeito anacrônico e ecológico, beirando a esquizofrenia, que, aliás, Jung temia tanto, devido a sua complexidade, diversidade, profundidade e transdisciplinaridade. Jung publicou de peito aberto seus estudos, pesquisas e reflexões dos 23 aos 86 anos, e, nesse período de mais de meio século, muitas transformações e contradições aconteceram.
O desrespeito anacrônico significa não levar em consideração a evolução cronológica e evolutiva da obra, “pinçando” afirmações que, no final da sua vida, foram revistas e modificadas, como no caso clássico da transferência. E o ecológico, por sua vez, por se tratar de uma teoria que deve ser compreendida sistêmica e integrativamente, abrangendo corpo, alma, espirito e a consciência egóica, com suas respectivas personas nas atividades relacionais, familiares, sexuais, laborais, sociais, políticas e religiosas. Onde qualquer uma dessas personas, quando hipertrofiada, hipotrofiada, ausente ou negada, irá gerar projeção de sombra e mais neuroses.
Para Jung, o Ego (que é o primeiro complexo que se diferencia do inconsciente, arquetipicamente presente em todos humanos) faz polaridade opositiva e complementar com a Sombra (que por ser arquetípica, é universal). O Ego, apesar de não ser a totalidade da consciência, é o representante dela, assim como a Sombra, que também não é a totalidade do inconsciente, é sua representante. Da mesma forma que na Sombra estão muitos aspectos da Anima ou do Animus (nossos contrapontos sexuais), assim como no Ego estão a maioria dos aspectos da Persona, porque o Ego necessita da Persona para se relacionar e adaptar-se com o entorno social, e tudo isso pertence ao Self, que é a totalidade do Sí-mesmo. Com isso, de forma indireta, Persona e Sombra fazem espelhamento opositivo, assim como a Persona do Ego masculino faz oposição com a Anima e a Persona do Ego feminino faz oposição ao Animus. Porém, Jung também diz que para chegarmos na relação com a Anima ou com o Animus devemos ultrapassar as barreiras da Sombra e flexibilizar a Persona, as máscaras funcionais.
Reitero que a Persona é um arquétipo de extrema importância para as relações humanas e que um indivíduo saudável é aquele que transita pelas personas, usando-as e flexibilizando-se, sem ficar identificado com elas. Assim como o Ego é um complexo necessário para poder cuidar e respeitar, simultaneamente, o corpo (soma) e a alma (psique), sem negar ou ficar identificado unilateralmente com uma destas instancias que compões o Self, incluindo Persona, Sombra, Anima ou Animus e o próprio Self, porque, neste caso acontece o que chamamos de inflação do Ego!
O processo de individuação é um caminho do Ego e para o Ego, potencialmente presente no Self, que é a totalidade psíquica, possibilitando a realização do Sí-mesmo, a serviço da Alma, que também chamamos de Psique. Esse processo não tem fim, mas sua finalidade é o autoconhecimento, por meio do confronto com o inconsciente até surgir o despertar do amor e, consequentemente da ética e da necessidade de servir cada vez mais para poder ser! O indivíduo que não aceita dirigir-se, conscientemente, em busca do Self, com o objetivo de integrar o consciente com o inconsciente, nada mais será do que produto cultural. Ele ficará impossibilitado de autorrealizar-se e integrar-se, permanecendo apenas como uma persona, que pode ser bem funcional, fruto da adaptação e construção coletiva, desconhecendo quem de fato é.
“O verdadeiro processo de individuação – isto é, a harmonização do consciente com o nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou Self – em geral começa infligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento. Esse choque inicial é uma espécie de apelo, apesar de nem sempre ser reconhecido como tal. Ao contrário, o ego sente-se tolhido nas suas vontades ou desejos e geralmente projeta essa frustração sobre qualquer objeto exterior. Ou seja, o ego passa a acusar Deus, a situação econômica, o chefe ou o cônjuge como responsáveis por essa frustração.” C. G. Jung, O Homem e Seus Símbolos, pág. 219. (JUNG, C. G. – O Homem e Seus Símbolos, 2ª edição especial brasileira – Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008)
O processo de individuação poderia ser apresentado como uma espiral voltada ao autoconhecimento à serviço do bem comum, na qual os indivíduos permanecem se confrontando com as mesmas questões básicas, de forma cada vez mais refinada, de acordo com as demandas e amplitude de cada etapa da vida humana:
“O homem deve sentir que vive num mundo misterioso, sob certos aspectos, onde ocorrem coisas inauditas – que permanecem inexplicáveis – e não somente coisas que se desenvolvem nos limites do esperado. O inesperado e o inabitual fazem parte do mundo. Só então a vida é completa. Para mim, o mundo, desde o início, era infinitamente grande e inabarcável” (JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. p. 308)
No processo de autoconhecimento devemos levar em consideração o momento de vida de cada indivíduo! O desenvolvimento da personalidade, no modelo da psicologia analítica, apesar de não ser linear e hierárquico, precisa respeitar as etapas da vida humana. Gosto da metáfora das quatro estações, que exponho a seguir, levando em consideração a atual expectativa de vida do homem contemporâneo. A primeira estação é a primavera, o desabrochar da vida em toda sua plenitude, a florescência, com pujança e viço, explosão de hormônios, sexualidade e vitalidade, que vai até os 25 anos, passando pelas etapas do Pleroma, Uroboru, Matriarcado, Patriarcado e início do caminho da Alteridade. Óbvio que nesta fase os instintos ficam mais exacerbados. Acredito que a psicanálise freudiana ficou paralisada neste dinamismo, por isso que acabou reduzindo tudo a causalidade e a sexualidade.
A segunda estação é o verão, que de forma muito criativa, Gilberto Gil, diz ser o apogeu da primavera! Nesta fase, que vai até os 50 anos, busca-se o brilho próprio, a autonomia e a conquista do espaço físico, psíquico, amoroso, social, familiar, laboral e espiritual, até que a Alteridade se torne prática usual e cotidiana. Atinge a plenitude desta etapa quem consegue conquistar o sentimento de liberdade, consciente das interdependências, resultantes das suas escolhas. Depois disso começa o declive natural com o advento do outono, que vai até os 75 anos, onde precisamos aprender, simultaneamente, desfrutar e doar nossos frutos. Creio ser a fase mais altruísta e produtiva, que nos faz sábios, generosos e comprometidos com o cuidado e o aprimoramento da humanidade. O ativismo social e a política, para quem atingiu esta etapa plenamente, é o mais importante, porque é o momento onde o processo de individuação fica mais presente, devido a metanóia e a necessidade de desapego da matéria, em todos os sentidos. Cada vez mais me convenço de que só levamos desta vida aquilo que deixamos nela! Essa é a dinâmica da dádiva, num contínuo processo virtuoso entre dar, receber e retribuir. Nesta fase precisamos ter mais atenção no caminho, mesmo que parece ser ordinário, cotidiano e repetitivo, para descobrirmos o quanto ele é rico de aventuras, romances e surpresas extraordinárias. Com isso, o caminho fica mais importante do que o destino, capacitando-nos para que o inverno seja mais rico ainda.
Após os 75 anos ingressamos no inverno, como uma fase de mais recolhimento e interioridade, para que o porvir de uma nova primavera anímica e espiritual possa acontecer. De fato, é muito triste ver um indivíduo, nesta fase, ainda identificado com a primavera ou o verão, apegado ao ordinário e profano do mundo materialista e consumista, negando o envelhecer e agindo como um puer aeternos. Sem compreender e aceitar a natureza como um processo evolutivo. Infelizmente, ainda vemos muitos homens poderosos, entre eles políticos de profissão, nesta etapa da vida, com seus objetos de uso, abuso e consumo, que vão de brinquedinhos caros até parceiras muito mais jovens. Essa realidade me faz sentir um profundo pesar, porque sei que essas pessoas nada farão para o bem comum, buscando transformar tudo que é bem público e social em bens privados, buscando cada vez mais poder e gerando mais desigualdade e iniquidades. Todos eles unidos contra a educação, para que o povo continue servindo como bens de produção, sem crítica reflexiva para mantê-los no poder. Pablo Picasso, no seu inverno, disse: “O sentido da vida é encontrar o seu dom. O propósito da vida é compartilhá-lo.”
Óbvio que esse esquema evolutivo, que parece ser sequencial e ascendente, não é rígido nem fixo. Em cada estação estão presentes as demais, principalmente porque o Inconsciente Coletivo é atemporal, aespacial e universal e contém toda a história de todas as etapas do desenvolvimento humano, incluindo as experiências humanas diante de cada uma destas estações. Enquanto que o Inconsciente Pessoal começa na concepção e termina na morte do binômio corpo/ego, deixando o resultado das experiências existenciais na alma, ou Psique, e no Inconsciente Coletivo. Uma criança, que ainda não está contaminada pela primazia do Ego e aprisionada/adestrada pelas personas da civilização, pode acessar o Inconsciente Coletivo, onde tudo e todos estão conectados, por ser o Aion da experiência de toda manifestação senciente (humanos e não humanos), incluindo o manifesto e, possivelmente, imanifesto, além de que no seu Inconsciente pessoal está toda a influência ancestral e transgeracional.
No livro a Natureza da Psique, que C. G. Jung escreve no auge do seu inverno, § 797 – 802 ele amplia o conceito das etapas da vida:
“Assim como existem um grande número de jovens que, no fundo, tem um medo pânico da vida (que eles ao mesmo tempo desejam ardentemente), também existe um número, talvez ainda maior, de pessoas idosas que tem o mesmo medo em relação a morte. Tenho observado que aqueles que mais temem a vida quando jovens, são justamente os que mais tem medo da morte quando envelhecem… …. A vida é teleológica par excellence, é a própria persecução de um determinado fim, e o organismo nada mais é do que um sistema de objetivos prefixados que se procura alcançar. O termo de cada processo é o seu objetivo. Todo processo energético se assemelha a um corredor que procura alcançar sua meta com o máximo esforço e o maior dispêndio possível de forças. A ânsia do jovem pelo mundo e pela vida, o desejo de consumar altas esperanças e objetivos distantes constituem o impulso teleológico manifesto da vida que se converte em medo da vida, em resistências neuróticas, depressões e fobias, se fica preso ao passado, sob algum aspecto, ou recua diante de certos riscos sem os quais não se podem atingir as metas prefixadas. Mas o impulso teleológico da vida não cessa quando se atinge o amadurecimento e o zênite da vida biológica. A vida desce agora montanha abaixo, com a mesma intensidade e a mesma irresistibilidade com que a subia antes da meia idade, porque a meta não está no cume, mas no vale, onde a subida começou. A curva da vida é como a parábola de um projétil que retorna ao estado de repouso, depois de ter sido perturbado no seu estado de repouso inicial…. …. Do meio da vida em diante, só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade, porque na hora secreta do meio-dia da vida inverte-se a parábola e nasce a morte. A segunda metade da vida não significa subida, expansão, crescimento, exuberância, mas morte, porque o seu alvo é o seu término. A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim. Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver. E não querer viver é sinônimo de não querer morrer. A ascensão e o declínio formam uma só curva… …. Um jovem que não luta nem triunfa perdeu o melhor de sua juventude, e um velho que não sabe escutar os segredos dos riachos que descem dos cumes das montanhas para os vales não tem sentido, é uma múmia espiritual e não passa de uma relíquia petrificada do passado. Está situado à margem da vida, repetindo-se mecanicamente até à última banalidade. Pobre cultura aquela que necessita de tais fantasmas!”
É interessante e importante constatarmos que um mesmo estímulo para um mesmo indivíduo, como uma obra de arte ou um livro, em cada estação da sua vida, e em função do estágio evolutivo que ele se encontra, irá produzir insights e reflexões absolutamente diferentes. Porque em cada estação da vida, a visão de mundo e as crenças vão sendo transformadas, interferindo nas crenças, intenções e interesses. Com isso, os pensamentos e os sentimentos, diante de um mesmo estímulo, irão gerar resultantes diferentes, com atitudes completamente distintas.
Com isso, a cura está na aceitação e coerência com a estação da vida e o continuo compromisso com o reestabelecimento do amor próprio, lembrando que o verdadeiro amor é incondicional e libertador, aceitando toda diversidade e pluralidade de raças, gêneros, crenças e doenças! Também é importante deixar claro que cura é sinônimo de integridade e consistência da existência com as dimensões anímicas e espirituais e não ausência de sofrimento, dor e tristeza. O verdadeiro amor necessita amar incondicionalmente o amar! E isso é, simultaneamente, um ato de coragem e desapego, equivalente a fé diante do mistério da vida, que depende, constante e continuamente, da dalética complementar entre Eros e Thanatos! Por isso o amor liberta e nos faz íntegros, possibilitado que aconteça o processo de individuação, que depende do caminho do autoconhecimento, por meio do reconhecimento da sombra e descoberta do sentido e do significado existencial, a serviço e servindo a cura pessoal e social! Encerro este texto com mais uma contribuição de Jung: “…Mas o que acontecerá, se descubro, porventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola da minha bondade, e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar?” (C. G. JUNG – Psicologia da religião ocidental e oriental; Ed. Vozes, 1983 – § 520).
*WALDEMAR MAGALDI FILHO. Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP (www.ijep.com.br), oferecidos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.