Atravessamos um período de profunda mudança nos valores pessoais e sociais, onde muitas projeções sombrias são descortinadas e vem à tona de forma contundente.
O ódio, a vontade de destruir o outro, o desrespeito são evidenciados na política, vociferado nas mídias e na atitude social de modo geral, refletindo as características perversas e sombrias de grupos que pretendem não apenas se perpetuar no poder, mas utilizá-lo para coagir minorias, alienando a população do pensamento crítico.
Esta perversidade pode ser sentida em qualquer rede social, nas disseminações das fake news, nos grupos de Whatsapp, nas manifestações públicas.
Em direção a isso, pessoas importantes e com características psicopáticas estão não apenas fluindo em nossa sociedade, mas despertam identificação e projeção sombria coletiva, como se fossem uma licença poética de validação da vontade de destruir o outro.
Não é novidade que psicopatas sempre estiveram entre nós. Mas por que temos a sensação que eles são validados pela sociedade?
Diferentemente do que pensa a crença popular, grande parte dos psicopatas não são assassinos. Eles convivem em nosso meio agindo de forma perniciosa sem sentir culpa ou remorso. Possuem narcisismo exacerbado, são embotados de emoções, ausentes de empatia, desprezam e ignoram as regras sociais e fazem sofrer as pessoas ao seu convívio.
No livro Eros de Muletas – Reflexões sobre Amoralidade e Psicopatia (1998), Adolf Guggenbühl-Craig apresenta a hipótese de que psicopatas são pessoas que experienciam o arquétipo do inválido, ou seja, Eros está invalidado na consciência dos psicopatas como se fosse uma deficiência crônica e duradora. O embotamento deste Eros é no sentido arquetípico, ou seja, o princípio criador e criativo, o amor relacional, o Daimon, o sagrado. Com Eros na sombra, há uma forte contraposição na consciência voltada para a busca do poder.
No livro Psicologia do Inconsciente, Jung aborda de forma brilhante que a sombra do amor é o poder:
(…) Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro. Quem se encontra do ponto de vista de Eros procura o contrário, que o compensa, na vontade de poder. Mas quem põe a tônica no poder, compensa-o com Eros.
(JUNG, 2016, p.65 §78 – grifos meus)
Como nos psicopatas Eros está na sombra, a vontade de poder está unilateralizada na consciência. Quanto mais primitivo for o estágio da consciência, maior será a busca pelo poder.
Trazendo esta reflexão no âmbito social, somos convidados a pensar na sombra coletiva: a acentuada desigualdade social; o racismo; a violência contra as mulheres; a homofobia; a invisibilidade social dos idosos; a falta de condições dignas e básicas da população carente; entre outros.
São incontáveis as características da sombra coletiva que permeiam o inconsciente coletivo, porém gostaria de refletir sobre a sombra do poder, pois é inevitável pensar em fluxos de dominação social sem pensar no poder.
Existem inúmeras formas de se atribuir o poder: por autoridade, tiranias, classes sociais, dinheiro, etc. Porém, como arquétipo, o poder engloba tudo e vai além.
De um modo sombrio, os indivíduos detentores do poder gostam de ostentá-lo e os mais perversos buscarão manobrar o mercado, a economia, a mídia, o conhecimento, as religiões, etc, para se perpetuarem, promovendo uma espécie de alienação popular.
As leis de mercado, os baixos investimentos na educação, a super fomentação do desejo de consumo, a instigação de sombras coletivas como preconceitos, medos, mentiras, etc faz com que as pessoas se distraiam e não percebam que são manipuladas para finalidades sórdidas.
Numa falta de empatia, essas pessoas não se sensibilizam com a morte, a doença, a fome, as necessidades primordiais. Com a sede de poder, os perversos não se intimidam em agir contra a sociedade e, se necessário, mentem, corrompem, roubam, matam e causam o mal coletivo. Como este mal está aderente ao poder perverso, e o poder está contraposto a Eros, este “Eros social” está na sombra.
Sendo assim, a ausência do Eros social “dá um match” com a ausência de Eros dos psicopatas, ou seja, a ausência de Eros de ambos se coincide. Em outras palavras, os psicopatas veem a si próprio validados pela sociedade e a parte sombria da sociedade sente-se representada por eles.
Para os psicopatas, as regras sociais são estranhas e até mesmo ridículas, podendo quebrá-las para se promoverem e atingirem seus objetivos pérfidos. Com a ascensão social, eleva-se a sensação do poder e de pertencimento a esta sociedade, numa retroalimentação sombria.
Simbolicamente, os psicopatas servem como um espelho perverso da nossa sombra individual e coletiva. Enquanto a falta de Eros social refletir a ausência de Eros pessoal (e vice-versa), ascenderá a necessidade de dominação e poder.
Por isso, faz-se urgente olhar com honestidade para nossa sombra e a integrarmos pois, com Eros predominante na consciência, agiremos de forma mais acolhedora em favor do coletivo, percebendo o outro com toda sua humanidade.
Com a ampliação da consciência, a ascensão do Eros coletivo frutificará uma sociedade mais justa e menos predatória.
Daniela Euzebio, analista em formação pelo IJEP.
BIBLIOGRAFIA
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2016 (Obras completas de C.G.Jung, v. 7/1).
JUNG, Carl Gustav. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas de Winterthur. Petrópolis – Vozes, 2015
GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf – Eros de muletas – reflexões sobre amoralidade e psicopatia. Curitiba – Corsária, 1998
SANFORD, John A. MAL – O Lado Sombrio da Realidade. São Paulo: Paulinas, 1988