Escrever sobre o “Fatum”, fado ou destino no início de um novo ano e juntar a ele a dura realidade de nossa breve existência, isto é, a certeza da nossa finitude, pode parecer um modo pouco otimista de adentrar este novo ciclo. No entanto, como nos faz refletir Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, no poema abaixo, Da nossa semelhança com os deuses, quando as divindades nos presentearam com nossas Vilas ou Vidas, nos deram também uma grande oportunidade de aprendizado se as usarmos para ampliar a consciência de quem somos, de onde viemos e da nossa condição de seres semelhantes às divindades, porém exilados e finitos:
Da nossa semelhança com os deuses
Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove.
Altivamente donos de nós-mesmos,
Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
Para esquecer o estio.
Não de outra forma mais apoquentada
Nos vale o esforço usarmos
A existência indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.
Como acima dos deuses o Destino
É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos.
(Ricardo Reis, 1914)
Será que podemos pensar em algo como um “fado” voluntário? Temos algum controle ou influência sobre aquilo que vai nos acontecer na vida? Será “fado“ sinônimo de “destino”? A “moira” dos gregos terá o mesmo sentido do “fatum” romano? E o “karma” indiano? As Crônicas Saxônicas de Bernard Cornwell enfatizam o jogo de dados que os deuses fazem com nossas vidas através da expressão “Wyrd bið ful ãræd” que significa “O destino é inexorável”. Será possível que já chegamos nesse mundo com uma dívida para pagar e para sofrer as punições que nos cabem? Há algo que podemos fazer ou é melhor nem tentar e só se entregar nas mãos do destino, seguindo o fluxo de um rio que corre num leito fixo e sem possibilidades de desvio? Todas essas perguntas, diriam alguns, fazem parte dos “mistérios” da existência. Então quer dizer que viveremos toda uma vida sem conseguir uma resposta? Talvez sim.
Às voltas com esses questionamentos, dentre outros, resolvi lançar mão do recurso cinematográfico da découpage para analisar o poema de Ricardo Reis. Essa técnica consiste em recortar, dividir um texto/roteiro em blocos para depois então levantar os elementos artísticos, cênicos e imagéticos envolvidos em cada um deles. Como um poema tem uma estrutura bastante diferente de um roteiro ou texto comum, resolvi que o corte aconteceria de forma aleatória, não necessariamente pelo fluxo das ideias ou o ritmo do poema. Nessa découpage do poema, as escolhas de pontos de corte e as livres interpretações foram inspiradas pelas questões acima levantadas.
Primeira estrofe ou “cena”:
Da nossa semelhança com os deuses / Por nosso bem tiremos / Julgarmo-nos deidades exiladas / E possuindo a Vida / Por uma autoridade primitiva / E coeva de Jove.
Segundo o poeta, ou o sujeito poético criado por ele, devemos nos considerar divindades, seres superiores, mas que foram exilados. Como exilados, possuímos uma Vida, mas ela não é eterna. Essa Vida nos foi concedida por Júpiter, pois com sua autoridade assim o desejou e como divindade eterna que existe desde os primórdios, assim o realizou. Possuímos uma semelhança com os deuses limitada pela finitude da nossa existência e pela nossa condição de meros seres humanos. Enquanto seres exilados da matriz divina, temos que nos contentar em viver essa breve Vida sem nos esquecermos do lugar de onde viemos, onde não pudemos permanecer, mas para onde sonhamos retornar.
Segunda estrofe ou “cena”:
Altivamente donos de nós-mesmos, / Usemos a existência / Como a vila que os deuses nos concedem / Para esquecer o Estio.
Se queremos ser donos de nós mesmos de forma superior, fazendo jus à nossa origem divina, devemos usar a brevidade da nossa existência como uma “vila” agradável e cheia de frescor e leveza que nos auxilie a enfrentar a fatalidade do “estio da morte”, porque os deuses assim nos permitiram e nos concederam, levando uma vida pacífica, serena, tranquila e sem sobressaltos, algo que poucos conseguem fazer, porém.
Terceira estrofe ou “cena”:
Não de outra forma mais apoquentada / Nos vale o esforço usarmos / A existência indecisa e afluente / Fatal do rio escuro.
Afinal, não vale a pena lutar contra a inevitabilidade da morte. Não vale a preocupação nem o esforço, pois esse é nosso inexorável destino enquanto seres semelhantes aos deuses, porém exilados e mortais, isto é, fluir nessa existência indecisa e fatal em direção ao rio escuro da morte, aceitando também uma existência que pouco responderá aos nossos anseios, pois estará determinada por forças muito além de nossa capacidade de compreensão e de influência.
Terceira estrofe ou “cena”:
Como acima dos deuses o Destino / É calmo e inexorável, / Acima de nós-mesmos construamos / Um fado voluntário
Nascido da Noite e do Caos, o Destino estava também acima das divindades, que se submetiam ao seu poder. Cego e inexorável, o Destino dominava os céus, a terra, o mar e os infernos. Na filosofia estoica, o “Fatum” (Destino Implacável) aparece, também, acima de todos os deuses e de todos os homens. O “Fatum” ditava as leis do Universo das quais nada nem ninguém podia fugir e com todo seu poder, não permite a nenhum ser a fuga dos seus desígnios. Então, por que devemos tentar nos opor a essa força?
No entanto, podemos, como seres semelhantes às divindades, mas exilados e mortais, ousar combater esse domínio, de alguma forma. O sujeito poético, então, subverte a lógica inicial do poema e propõe que experimentemos a construção de um fado voluntário acima de nós-mesmos.
Quarta estrofe ou “cena”:
Que quando nos oprima nós sejamos / Esse que nos oprime, / E quando entremos pela noite dentro / Por nosso pé entremos.
Cabia somente aos oráculos decifrar e revelar o que estava escrito no livro do Destino desde o princípio da criação, mas já que a nós, meros mortais, nos foi negada a capacidade de decifrar, revelar, dominar ou mudar o que o Destino nos reserva, que a finitude da existência nos permita a audácia de fazer uso da consciência desse inevitável fim para construirmos o próprio destino. Se devo ser oprimido, que seja eu mesmo o opressor. Se for para adentrar na escuridão, que seja com meus próprios pés. Se devo viver essa breve existência, que ela seja vivida de forma intensa e atenta, mas sem esquecer da leveza e do frescor que o deuses nos concederam, pois sem isso, o peso da certeza do fim pode obscurecer todo o caminho.
———————————-
Numa tentativa de ampliar ainda mais as questões acima levantadas, proponho pensarmos no conceito de karma – termo em sânscrito que significa ação ou ato deliberado. A lei do karma, apesar de ter origem milenar, vem sendo reafirmada por uma visão mecanicista, tendo larga influência na interpretação dos fenômenos materiais e até mesmo imateriais, isto é, que cada ser enfrentará as consequências de suas ações.
Considerando que somos os únicos seres a terem “consciência” de seus atos e de sua existência finita, até onde sabemos, foi preciso acoplar ao conceito de karma aquele de dharma, isto é, a lei moral e religiosa que regula o comportamento dos indivíduos e que define sua “missão” nesse mundo. No entanto, somente esses dois conceitos não seriam suficientes para que os seres humanos ficassem atentos às suas ações, era preciso considerar a presença de uma “alma”, e que ela sim, fosse eterna.
Com o corpo finito, mas a alma eterna, o karma e o dharma ganham maior importância e sentido, reforçam a ideia do destino inexorável sobre o indivíduo, mas faz surgir alguma esperança em vida, isto é, a de que é possível “influenciar” os acontecimentos de nossa vida atual e “futura” através de nossas ações, pensamentos e palavras no “presente”, e através da consciência de nossa missão em vida.
As Crônicas Saxônicas de Bernard Cornwell falam muito sobre o destino. O famoso wyrd, um conceito anglo-saxão que se refere ao destino pessoal e tem suas raízes no paganismo, compõe o ditado, Wyrd bið ful ãræd, (O destino é inexorável), fazendo com que Uhtred, um dos personagens da longa trama, no volume A Morte dos Reis, acabe por aceitar e sucumbir a essa imposição implacável do universo.
E, finalmente, Jung, em sua célebre frase “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de Destino” parece considerar algumas hipóteses diferentes. Essa citação nos passa a ideia de que aumentando nosso nível de consciência, seria possível, ao menos, ter uma maior percepção das demandas, necessidades e escolhas apresentadas pelo Self e que elas pudessem levar a um resultado que estivesse mais em consonância com nosso caminho individual.
Direcionando nossa vida para um objetivo maior, que seria definível ao longo do processo de individuação, despertaríamos nosso potencial individual e nossa consciência plena, pois cada indivíduo tem um destino exclusivo, que pode ser vislumbrado pela consciência através do trabalho conjunto com o inconsciente, propiciando um diálogo com as partes mais distantes aos olhos do Ego. Ao colocar o Ego em contato com a Sombra e outros elementos da psique, o processo de individuação busca dialogar e integrar os aspectos inconscientes, isto é, todos aqueles que forem possíveis de serem integrados à consciência e à vida:
“A ideia de um processo de individuação norteia todo o arcabouço teórico da escola de psicologia analítica de Jung e pode ser entendida como o ‘tornar-se si mesmo’, o que remete a uma pessoa íntegra, em contato com seu eu interior, o que Jung chamou de Self (…)” – (TERAPIA ANALÍTICA – Roberto Rosas Fernandes in Revista Psicologia – Especial terapias #6).
Tendemos a pensar, com base em todas as teorias anteriormente apresentadas, que nossas ações – sejam elas imediatas e exteriorizadas ou em longo prazo e interiorizadas – poderão influenciar nossos destinos de alguma forma, reforçando a ideia de que somos, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, responsáveis pelo que nos acontece.
Creio que aquilo que mais nos aflige, no entanto, seja a ideia de que não temos “controle” sobre absolutamente nada e que apostamos num caminho, decidimos empreender uma ação ou tomamos uma decisão em detrimento de outra, somente com base no chamado do presente, na necessidade premente e no sentimento imediato de que, naquele momento, é o melhor a fazer. E aí, viramos à direita ou à esquerda, sabendo que, dali a alguns quilômetros, ou menos, podemos nos arrepender. Ou não.
Nessas ilusórias tomadas de decisão, vemos que, com frequência, o que nos faz “agir” é um complexo, isto é, um núcleo com uma grande quantidade de energia e afeto onde estão contidas nossas experiências de vida e que determina nossas ações de modo inconsciente. Devido à sua autonomia, potência e inconsciência, os complexos podem dominar a atividade consciente, sendo projetados no exterior e identificados como objetivos. Se a pessoa desconhece um aspecto de sua personalidade, ela poderá ser levada pela ação do complexo que assume, nesse caso, vida própria.
Voltando ao poema de Ricardo Reis, que inspirou toda essa reflexão, podemos também considerar que se trata de livre-arbítrio, quando ele fala da possibilidade de um “fado voluntário”. Considerando as forças do destino como inexoráveis e as ações dos complexos, teríamos pouco espaço para o exercício desse nível de liberdade e autodeterminação, principalmente quando são confundidos com “controle”. Jung, sobre esse princípio que rege algumas condutas, diz que:
“Certamente uma pergunta que se fará a este respeito é se não haveria indivíduos para os quais o próprio livre-arbítrio constituiria o supremo princípio do agir, de modo que todas as suas atitudes seriam intencionalmente escolhidas por eles próprios. Não acredito que alguém haja atingido ou venha a atingir esta semelhança com Deus, mas sei que há muitos que almejam esse ideal, porque estão dominados pela ideia heroica da liberdade absoluta. De um modo ou de outro, todos os homens são dependentes; todos são determináveis de alguma forma, pois não são deuses.” (A NATUREZA DA PSIQUE – §636)
Somos determináveis, dependentes, semelhantes aos deuses, mas não somos deuses, somos exilados da condição divina e mortais. Vivemos uma existência profundamente contraditória e a plena consciência das forças em oposição e em constante conflito, ou então a total ignorância delas, talvez possa nos dar um breve alento.
A cada novo ciclo, renovamos nossa breve existência e nossas frágeis certezas através dos ritos de morte e renascimento, na esperança de atrair possibilidades de uma nova vida. Criamos esses loopings existenciais para alimentar a esperança de que o fim é apenas um recomeço, mesmo não tendo certeza de nada disso. Meras criações de seres exilados e mortais, porém órfãos de pais eternos, que acreditam que aquilo que fazem pode determinar seus destinos. Tomamos decisões, fazemos planos, alguns nunca colocados em prática, mas tudo isso nos dá uma efêmera sensação de que podemos determinar como será o novo ciclo que se inicia e termina em datas convencionadas para tal.
Apesar de tudo, ouso desejar algo para o novo ciclo que se inicia e que está sendo convencionalmente chamado de ano de 2020. Desejo que nossos ciclos sejam mais breves, porque um ano parece uma eternidade quando se trata das mutações do destino. Que nosso fado seja, dia-a-dia, mais voluntário e que a consciência do inevitável fim esteja sempre presente, não para causar preocupações excessivas, já que a morte e sua manifestação em nossas vidas continuarão sendo mistérios indecifráveis, mas para que nos empenhemos em viver de modo atento o momento presente, abrindo mão do controle e da ilusão do livre-arbítrio, mas não abrindo mão da percepção do sentido dos acontecimentos e das nossas intuições. Talvez essas sejam as nossas únicas “incertezas” possíveis.
———————————————————————————-
Isa Carvalho. Rio de Janeiro
Membro Analista em Formação do IJEP
Bibliografia:
JUNG, C.G. – Obras Completas – Ed. Vozes – 2012.
FERNANDES, Roberto Rosa – TERAPIA ANALÍTICA – in Revista Psicologia – Especial terapias #6
PESSOA, Fernando – Vida e Obras de Ricardo Reis - Ed. Global – 2017
CORNWELL, Bernard – A Morte dos Reis – Vol. 6 das Crônicas Saxônicas – Ed. Record – 2012