Resumo: Este artigo propõe a reflexão sobre a dificuldade de dizer não, e o quanto é importante estabelecer limites nas relações. Refletir sobre esses limites nos permite evitar que o outro nos invada e também nos protege de circunstâncias que causam dor e sofrimento nas relações.
Refletir sobre a capacidade de dizer “não” e o significado disso nas relações pessoais é um ponto essencial para o processo de individuação e crescimento pessoal. A coragem de dizer “não” implica um movimento de autoafirmação, onde nos colocamos como prioridade, honrando nossas necessidades e limites. Essa palavra simples pode revelar muito sobre o valor que nós damos e a importância que atribuímos ao outro em nossas vidas
Quando evitamos dizer “não” por medo de desaprovação ou rejeição, podemos acabar negligenciando nosso próprio bem-estar, nos afastando de quem realmente somos. Em contraste, ao sermos capazes de recusar algo que nos fere ou não corresponde aos nossos valores, afirmamos nossa autenticidade e fortalecemos nossa integridade.
O processo de individuação proposto por Jung sugere que ser íntegro e autêntico em todas as situações é um caminho para nos tornarmos quem realmente somos. Isso inclui ser capaz de enfrentar conflitos, impor limites e aceitar as consequências de nossos “nãos” para viver de acordo com a nossa essência. Como você tem lidado com a necessidade de dizer “não” e com os desafios que isso traz para manter-se fiel a si mesmo?
Ao aprofundarmos a questão da dificuldade de dizer “não”, percebemos a importância de estabelecer limites claros com as pessoas e situações em nossas vidas. Refletir sobre esses limites nos permite evitar que o outro nos invada e também nos protege de circunstâncias que causam dor e sofrimento nas relações.
Os limites pessoais funcionam como uma fronteira: eles permitem a entrada do que nutre a relação, bloqueiam o que intoxica e deixam ir o que não é mais necessário. Nossa dimensão psicológica precisa desses limites em equilíbrio. Quando se tornam barreiras rígidas, nada entra, e isso reflete uma inflexibilidade; por outro lado, limites excessivamente frouxos indicam dificuldade em dizer “não”. Assim, os limites nos fornecem contornos psicológicos que preservam nossa saúde emocional e relacional.
Minha habilidade de estabelecer limites é algo que aprendo ao longo de toda a vida. Trata-se de um processo contínuo de diferenciação entre o que sou eu e o que é o outro. Durante a gestação, a nova vida é alimentada por todas as emoções que a mãe experimenta, em uma espécie de simbiose. Ao nascer, inicia-se um processo de diferenciação física, e, gradualmente, a criança passa a reconhecer o próprio corpo, marcando o início da formação do ego. O vínculo se estabelece através do contato físico, e a pele, como órgão, delimita o que está dentro de mim e o que está fora.
No decorrer da vida vão se estabelecendo os limites psicológicos e mentais. Os limites mentais são construídos à medida que aprendo a pensar, moldando minha visão de mundo, meus valores, minhas crenças. Eles também dependem do ambiente em que vivo, onde me pergunto se tenho o direito de pensar como penso e se sou validada ou não pelas pessoas ao meu redor.
Os limites psicológicos e emocionais são influenciados pelo ambiente em que estou inserido. Como minhas emoções são recebidas? De que forma lidei com elas, como aprendi a diferenciá-las? Isso está relacionado à maneira como os vínculos foram estabelecidos e como ocorreu a troca de afetos.
Na fase adulta, nosso sistema de limites, que começou a ser estabelecido na infância, já está consolidado em um nível que a consciência não alcança. Isso significa que, de forma inconsciente, agimos automaticamente para definir nossos limites. Quando meu sistema de limites está muito frouxo, tudo passa a entrar, existe um padrão permissivo da invasão do outro em mim. No extremo oposto, posso me tornar rígido e impermeável, me tornando indisponível para os vínculos afetivos.
O importante é buscar o conhecimento do que sou e do que não sou, reconhecer o que me pertence e o que pertence ao outro. Isso inclui as escolhas nas relações afetivas. Conhecendo essa fronteira entre eu e o outro, reconheço minhas responsabilidades resultando em uma maior autonomia e liberdade diante da vida.
Dizer “não” é essencial para relações saudáveis, e essa habilidade é importante. No entanto, as mulheres muitas vezes encontram mais dificuldade em definir claramente seus limites. Culturalmente, a expectativa de cuidar do outro nos leva a dizer “sim” aos outros de várias formas, enquanto, ao mesmo tempo, acabamos dizendo “não” para nós mesmas.
A tendência de agradar a todos, conhecida como síndrome da boazinha, nos afasta do que é mais autêntico nas relações e nos leva a tentar um controle ilusório, uma forma de manipulação que acaba nos distanciando de nós mesmas. No final, o tiro saiu pela culatra, gerando raiva e ressentimento e enfraquecendo as conexões com os outros. Simplesmente, não funciona.
A pessoa que tenta agradar o tempo todo pode acabar comprometendo sua identidade, valores, desejos e necessidades em prol dos outros. Muitas vezes, esse comportamento esconde um desejo de proteção contra a rejeição, o abandono ou maus-tratos, além de uma busca compulsiva pela validação alheia. Ela pode sentir que precisa fazer muito pelos outros para ser aceita e amada e ter um medo excessivo de conflitos.
Quando a dinâmica em uma relação é evitar a rejeição, o abandono ou atitudes rudes do outro, e a pessoa adota uma postura permissiva, ela pode acreditar que assim está obtendo controle na relação. Ao evitar dizer “não”, sente que, se for rejeitada, abandonada ou se o outro agir de forma hostil, a culpa será inteiramente sua. Isso a leva a crer que precisa agradar ainda mais para evitar essa agressividade do outro. De certa forma, o “bonzinho” não está sendo tão bonzinho assim; está tentando manipular a situação.
Mas isso é uma ilusão. Não há como evitar ser abandonada ou rejeitada, apenas dizendo sim, e pode trazer um efeito contrário, atrair verdadeiros abusadores. Eu lido com o abandono e a rejeição, conheço em minha história pessoal esse medo inconsciente de desagradar, de dar tanto poder ao outro. Dizer sim ao encontro com a própria sombra, resgatando a auto aceitação e amor próprio, priorizando os seus desejos e ambições.
A busca pela validação dos outros mina a verdadeira identidade e autoestima. O externo passa a definir quem a pessoa é, retirando sua autonomia diante da vida. Nesse padrão, exagera-se em ações para que o outro se sinta confortável, assumindo a responsabilidade de ser aceito e amado por meio desses gestos. Isso resulta em desgaste, pois o tempo e as prioridades são direcionados para obter o amor do outro.
Provavelmente, esse “outro” do presente não é quem realmente deve amor e aceitação, mas algo que foi negligenciado na infância, pela família de origem, e agora é atualizado e projetado nas relações atuais. Revisitar essas dinâmicas e as dores causadas nas interações pode abrir caminhos para maior autonomia e uma nova compreensão de valor próprio.
A evitação de conflitos também pode estar por trás da dificuldade em dizer “não” nas relações. Isso geralmente é resultado de uma forte repressão da própria raiva, egoísmo e do desejo de exercer independência, devido à falta de autoconfiança. Ao evitar lidar com esses aspectos, não se aprende e nem se cresce emocionalmente.
Jung acredita que o processo de individuação – o desenvolvimento da própria identidade verdadeira – envolve integrar a sombra e, portanto, aceitar tanto a capacidade de dizer “sim” quanto de dizer “não”. Ao aceitar que os próprios limites são importantes, o indivíduo se torna mais inteiro e autêntico. Esse processo também envolve reconhecer que relações autênticas requerem honestidade e que não é possível agradar a todos o tempo todo sem sacrificar a própria integridade.
Assim, a dinâmica psicológica de evitar o “não” pode ser vista, na perspectiva de Jung, como uma resistência ao crescimento pessoal. É uma forma de proteger uma imagem idealizada de si, mas que impede o indivíduo de se expressar de maneira completa e autêntica.
Um verdadeiro processo de autoconhecimento, no qual a mulher resgata da sombra seu poder pessoal e questiona as atitudes de agradar presentes em sua persona, pode devolver-lhe autoestima e auto validação, permitindo escolhas com mais autonomia diante da vida. Estas reflexões não tem o objetivo de encerrar as motivações que levam uma mulher a evitar impor seus limites nas relações, mas podem ser um caminho para questionar as atuais dinâmicas presentes em sua personalidade. Trago agora uma fábula que descreve essa dinâmica.
Era uma vez uma mulher que se mudou para uma caverna nas montanhas para aprender com um guru. Ela lhe disse que queria aprender tudo o que havia para saber. O guru entregou-lhe pilhas de livros e a deixou sozinha para que pudesse estudar. Todas as manhãs, ele ia à caverna para avaliar o progresso da mulher, trazendo consigo uma pesada vara. Diariamente, ele fazia a mesma pergunta:
— Já aprendeu tudo?
E, todas as manhãs, ela respondia:
— Não, ainda não.
Então o guru batia com a vara em sua cabeça. Isso se repetiu por meses. Até que, certo dia, o guru entrou na caverna, fez a mesma pergunta, ouviu a mesma resposta e levantou a vara para bater, como de costume. Mas, dessa vez, a mulher agarrou a vara antes que tocasse sua cabeça.
Aliviada por ter evitado a surra do dia, mas temendo uma possível represália, a mulher olhou para o guru. Para sua surpresa, ele sorria.
— Parabéns — disse ele. — Você se formou. Agora sabe tudo o que precisa saber.
— Como assim? — perguntou a mulher.
— Você aprendeu que nunca aprenderá tudo o que há para saber — respondeu ele. — E aprendeu como interromper sua própria dor.
(BEATTIE, 2022, p. 27)
Euflausina Goes dos Santos – Membro Analista em Formação
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Didata IJEP
Referências:
BEATTIE, Melody. Co-dependência nunca mais. Rio de Janeiro, BestSeller, 2022.
BEATTIE, Melody. Para além da codependência (recurso eletrônico). Rio de Janeiro: BestSeller, 2013
JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente [OC 7/1]. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.