Vale também para a escrita, eu imagino, o que se pode dizer de toda criação humana: há escrita com e sem alma. A boa escrita aciona uma conversa animada da consciência com o inconsciente, da ilha com o oceano. Criativa e compreensiva em seus propósitos e em suas estratégias, a boa escrita se deixa afagar pela arte. Institui um cosmos possível de sentidos em um lugar da vida onde, sem a alquimia do “laboratorium”, o que resta é o caos – como convite, como desafio. Mais do território da poética que da técnica, a escrita pode ser terapêutica. Arteterapêutica!
Escrever é um ato decente ou indecente?
Este foi o tema de uma conversa entre o Sócrates do “conhece-te a ti mesmo” e Fedro, um dos amigos dele, numa bela manhã de verão, à sombra de um plátano na beira do rio Ilissos, fora dos muros da cidade de Atenas.
A escrita é indecente, responderia Sócrates, sem pestanejar.
Melhor não escrever nada! Nunca.
Interrompendo por um momento a conversa, a pergunta que já desde este início nos interessa é a seguinte: sob o ponto de vista da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, o que poderia ser uma escrita decente… ou indecente?
Um ponto de vista, como se sabe, é a visão a partir de um ponto. Representa uma escolha.
Escolher o ponto de vista alquímico da alma humana não significa desprezar os lados técnico, estético e ético de toda escrita. Simbolicamente, no entanto, estamos convidando para compor essa trindade sagrada – técnica, ética e estética – um personagem da mais elevada beleza e relevância: a alma!
Quaternidade.
Melhor do que trindade, como ensina Jung.
Um símbolo mais completo da totalidade.
Um demônio interior
Coerente com seu modo de pensar, Sócrates não deixou nada escrito ao longo de toda sua vida. Abominava simplesmente a ideia de escrever algo. Seria indecente fazê-lo, pensava.
Pelas ruas e praças de Atenas e também pelos corredores do movimentado mercado da cidade, Sócrates preferia provocar as pessoas a olharem para dentro de si mesmas, inspirado até a medula no lendário “conhece-te a ti mesmo”.
E ele provocava de verdade as pessoas. Provocava uma cidade-estado inteira: “Sou uma mutuca”, ele dizia de si mesmo. A égua era Atenas… E tome picada!
O aforismo “conhece-te a ti mesmo” estava inscrito na entrada da nau do templo de Apolo, em Delfos.
E é aqui que a filosofia – o “amor à sabedoria” – abraça amorosamente o mito; a consciência, o inconsciente; o masculino, o feminino… Mysterium coniunctionis!
Belos tempos aqueles em que o logos abraçava compreensivamente o mito! Em que a razão não havia sido ainda atacada pela doença do racionalismo moderno.
Em que o logos não virava a cara, emburrado, para o dia-logos!
Quais irmãos que às vezes não se bicavam, logos e mythos coexistiam e, em tempos de vacas gordas do espírito, conseguiam sem muitos pudores e na maior alegria se abraçar.
O diálogo – sempre tenso, vamos combinar – entre logos e mito, como se pode imaginar, tornava mais fácil o comércio com os conteúdos do vasto mundo do inconsciente humano.
A tensão faz parte.
O inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo como o grande universo – multiverso – frequentado por deuses e demônios os mais diversos, as mais diversas.
Divertidamente diversos.
O inconsciente como o mundo coletivamente humano de onde saltam para a vida os conteúdos de nossos sonhos e de nossas esperanças, representados por símbolos – também os mais diversos – que nos visitam por meio dos mitos, das artes, das religiões, tanto quanto das sabedorias cotidianas, algo assim como as artes do saber viver…
Um mundo onde cabe também, com todo respeito – mas, ai, como às vezes é difícil! –, o bom convívio com as ciências e com as técnicas; com a razão, o método, a régua e o esquadro.
Compreensão!
O abraço dos sentidos!
Saber colocar um “e” em lugares nos quais a nossa vã filosofia ama, adora o tempo todo colocar um “ou”, violentamente, arrogantemente.
Voltando à história de Sócrates – da mutuca e da égua –, quem o tinha mandado ser como era, dizer o que dizia, fazer o que fazia?
Bem feito! Merecia morrer!
Foi o Deus, responderia Sócrates aos seus acusadores, no grande Tribunal da Mentira.
Sócrates era movido por um daimon, uma força transcendente que se apossa da gente, vamos dizer assim, se a gente abre espaço para essa força agir!
E, então, coisas do arco da velha podem acontecer.
A escrita como ‘phármakon’
A propósito, na conversa com Fedro, Sócrates recorre mais uma vez e com muita naturalidade ao mito, quando lembra o Egito antigo e cita “um dos velhos deuses daquele país” – o deus Toth.
Deus de múltiplas qualidades e portador de muitos títulos, um inventor de primeira, a tradição mítica atribui a Toth, entre tantas outras maravilhas, a invenção da escrita.
Todo feliz, nosso deus sempre muito criativo, como costumava fazer, vai ter com o poderoso Amon com o baú cheio de novas artes.
– Artes que, veja bem, Grande Amon, com todo o respeito, precisam ser ensinadas aos egípcios!
Toth estava, de verdade, entusiasmado.
Tinha um deus dentro de si!
Tinha um demônio!
Foram muitas as perguntas que teve que escutar, dirigidas a ele pelo deus Sol, a respeito da utilidade de todas aquelas artes.
Na hora de falar da escrita e dos encantadores hieróglifos que inventou, Toth caprichou no argumento:
– Esta arte, meu caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá a memória. Portanto, com a escrita, inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria.
Toth falava da técnica da escrita!
Falava bem: uma bênção!
O deus-rei, no entanto, não apreciou o que ouviu.
Aliás, odiou.
A escrita – ele sentenciou – tornaria os egípcios esquecidos. Mais ainda do que isso, eles se tornariam uns preguiçosos, onde já se viu?!
Os egípcios, por meio da escrita, sempre na visão de Amon, deixariam de cultivar a memória. Eles passariam a confiar apenas nos livros escritos. Só se lembrariam de um assunto por terem visto algo escrito sobre ele, em algum lugar externo, e não a partir de si mesmos.
E não a partir de dentro, do mundo interior.
E não a partir da alma, poderíamos dizer.
Toth, ainda segundo o deus-rei, podia até ter inventado um auxiliar para a recordação. Mas não para a memória.
E Amon continuou, expressando-se no seu modo divino de falar:
– Transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber, embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência, serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios.
Aparência de sabedoria!
Sábios imaginários!
Ignorantes ignorantes, diria Sócrates: uns verdadeiros sofistas!
E não ignorantes sábios, ou filósofos!
Em suma, Amon via a técnica como ameaça, uma (possível?) maldição!
Qual Martin Heidegger dos tempos antigos, Amon parecia antecipar o que o filósofo alemão deixaria registrado em seu ensaio sobre “A questão da técnica”, de 1952. “A essência da técnica não é técnica”, escreveu Heidegger, provocando à reflexão. Convocando as mentes críticas ao gesto sagrado da “devoção do pensamento”!
Aliás, no texto “Toth e a Inteligência Artificial”, de minha autoria, você encontra um pouco mais sobre o tema da técnica e a visão de Heidegger a respeito do assunto. O ponto de partida, lá como aqui, é a história de Toth e a crítica à técnica da escrita.
A história que estou contando sobre a decência ou a indecência da escrita encontra-se no diálogo Fedro, um dos mais famosos de Platão, uma espécie de prolongamento do Banquete. Em ambos, a conversa altamente filosófica gira em torno do amor.
Mas, nesse ponto, no Fedro, o assunto é a escrita.
Uma indecência, na opinião de Sócrates!
Um enorme risco para a inteligência humana, pontificou Amon.
Viva Amon e abaixo Toth?
Calma!
O que Toth faz é ver na escrita um auxílio, um remédio, uma cura: é o lado positivo do que o termo grego pharmakon indica. O lado bendito!
Pode fazer viver.
Amon, por sua vez, enxerga na mesma escrita o outro lado do que pharmakon também evoca: em vez de auxílio, uma droga. Lixo. Maldição.
Pode matar.
Aliás, engraçada é a história de Platão…
Discípulo de Sócrates e fundador da Academia, a primeira grande escola filosófica de Atenas, ele andava sempre dizendo a todo mundo que escrever era, sim, indecente! Como o mestre, aliás, havia ensinado.
Mas Platão desandou a escrever, e não parou mais.
Contraditório?
Não, responderia Platão, autor de tantos e tão famosos diálogos!
Ele se defendia, dizendo só ter escrito o que o grande Sócrates havia falado.
Kkkkk!
Conta-se que, certa vez, ele teria escrito uma carta a um amigo com uma anotação, no final: leia, e depois queime, por favor!
Vai saber.
Por essas e outras é que Jung, que tantos e tão férteis diálogos traçou com o pensamento platônico, achava o fundador da Academia um tanto “avoado”. Parecia às vezes viver meio que “no mundo da lua”.
Bendito Platão, no entanto, o autor dos diálogos socráticos!
Bendita escrita!
Ou maldita escrita?
‘Symbolum’ e ‘diabolus’
Bênção ou maldição. Simples assim?
Não, não é simples.
É mais movimentado, dinâmico e interessante do que simples.
É mais divertido, até.
Porque não pode haver de verdade nada de simples em tudo aquilo que nós humanos imaginamos, desenhamos, criamos, produzimos.
Atravessada da cabeça até a ponta dos pés pelas promessas iluminadas, tanto quanto pelo lado noturno de nossa natureza, a cultura humana é sempre assim: dual.
Não há outro jeito, e não é bem assim que se possa dizer: é o que temos para hoje.
Porque é o que tivemos para ontem, o que temos para hoje e o que teremos para amanhã. Há que se negociar o tempo todo com os opostos em nós e no mundo em que nos foi dado viver. Outra condição humana não há.
Assustador?
Sim, não é?
Mas humanamente maravilhoso, também, você não acha?
Ambivalente como o próprio Toth – que às vezes é deus da vida e outras é deus da morte –, o humano existir se deixa compor em muitos sentidos por diversos graus de promiscuidade.
Desse modo, a pergunta sobre quem tem razão, se Amon ou Toth, não é boa.
É péssima.
É pobre, porque divide, separa – função da consciência! – o que precisa ser visto em sua unidade, ainda que paradoxal!
Dividir e separar, no fundo e no raso, é coisa do diabo: diabolus!
O symbolum, por sua vez, une, junta, mesmo deixando vivos os cheiros e as cores – às vezes o fedor – do paradoxo!
Assim, entre Amon e Toth, você poderia dizer que ambos ou que nenhum deles tem razão. Precisa, aí, nesse caso, diria Jung, de um tertium non datur, uma função transcendente…
Levante o olhar!
Integrar ou não integrar: that’s the question!
Necessitamos de um símbolo, ou de vários símbolos que nos permitam sair da enrascada.
Símbolos redentores.
Não se trata, portanto, de buscar solucionar o conflito pela via do recurso ao ato diabólico. Dá ruim. Coisa de gente doida, diria Jung!
Literalmente.
Uma ideia muito besta, essa de a gente imaginar-se num mundo encantado e paradisíaco de perfeição, sempre e em todo canto, divinamente maravilhoso.
Ai, como isso é doentio!
Viva o antidepressivo, o ansiolítico, uma dependência lícita ou ilícita qualquer! Nossa, como a indústria da medicação fica feliz. Demonicamente feliz!
Falando nisso, vale muito a pena ver com carinho e bastante atenção o vídeo “Sociedade antidepressiva”, de Waldemar Magaldi, no canal do Youtube do IJEP. Mein Gott, diria a minha avó! A coisa está feia.
O humano existir, ao contrário disso, nos convoca a levarmos a vida para a frente, na arte e graça de ver e sentir complementaridades lá onde a pequena razão (Nietzsche) só enxerga a triste sina dos opostos que se opõem, nesse eterno jogo nojento de perde-e-ganha, de vencedores e vencidos, segundo a máxima de Hobbes, bellum omnia omnes (a guerra de todos contra todos).
Ou do homo hominis lupus (o homem como lobo do próprio homem).
É da guerra dos opostos que nasce a mais perfeita harmonia! – proclama Heráclito, filósofo pré-socrático.
Essa é a guerra boa de ser guerreada, na visão do mito, da filosofia e, também, da Psicologia Analítica.
Enantiodromia!
Uma guerra que se deixa traduzir pela expressão “busca de sentido de viver”.
Individuação.
“Não vim trazer a paz, mas a guerra”, diz Jesus, o Cristo, símbolo maior do Si-mesmo na mandala do Ocidente, como entendia Jung.
De novo é o mito que comparece: a deusa Harmonia é filha de Ares (Marte), o deus da guerra, e de Afrodite (Vênus), a deusa do amor.
Jung fez uma verdadeira festa com essa ideia, ao assumi-la como um dos eixos básicos de sua concepção de energia psíquica, de desenvolvimento da personalidade, de individuação: o tornar-se quem se é (de novo, Nietzsche).
Habentibus symbolum facilis est transitus! Se você tem o símbolo, a travessia se torna fácil.
Uma deusa, um deus e outra deusa!
Harmonia, Ares e Afrodite.
E é assim, portanto – e de novo –, que o logos dialoga com o mito, o racional com o não-racional, o Ego com o inconsciente!
Transcender!
Compreender é diferente de explicar
O symbolum abraça, no sentido latino de comprehendere, que é o que compreender originalmente de fato significa: juntar, integrar, colocar as coisas para conversarem entre si, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença…
A meta: o casamento alquímico, que resulta mais da doidice (do inconsciente, do não-racional) que da farra do Ego!
Tão divino e maravilhoso, o Ego! Tão pequeno, porém. Ilha num imenso oceano.
Compreender não é o mesmo que explicar. É diferente.
Duas atitudes espirituais altamente nocivas se confrontam nesse duelo diabólico e infrutífero, que acontece quando um dos dois lados da equação maltrata, despreza, renega o outro.
Dualismo.
A unilateralidade, no campo onde o grito é pelo diálogo e pela integração, só pode ser do mal.
Filhos mal-aventurados da Explicação, com um Ego miseravelmente aferrado ao logos não-dialógico, temos uma dificuldade enorme de abraçar o mundo irreverente do inconsciente, com suas ameaças e suas promessas: o feminino, a mãe.
Não acolhemos, não damos colo, não nutrimos.
Porque a mãe é aquela que compreende, diz Jung, referindo-se justamente ao sentido etimológico de comprehendere.
Explicar. Explicar. Explicar.
Ad nauseam.
Uma indigestão explicativa!
Uma neurose das boas!
A morte do ato terapêutico da escrita!
Mais desordem ainda no caos!
A explicação torra a paciência do símbolo, o castra, afoga, mata.
Com a compreensão não é assim.
A compreensão – aquela que compreende – abraça a explicação, num “romance astral”, diria Raul Seixas, para lembrar “O trem das 7”, falando sobre o mal: “Ói, olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral”.
Onde o casamento alquímico não é buscado – “o tesouro difícil de ser encontrado” – e muito menos acontece; onde o astro deixa de representar um delicado convite para olharmos para além da matéria, da coisa, do fenômeno, vem o desastre: do grego = má estrela. Do latim: dis + aster, astrum = “mau”, “contrário”, “inadequado” + “astro”.
A escrita desastrosa?
Algumas notas interessantes sobre o método da compreensão aplicado à Psicologia Analítica, você encontra em “Jung e a heresia do método”, mais um texto de minha autoria.
A imagem da cachoeira
“A explicação adota geralmente uma visão unilateral, verticalizada, de cima para baixo, reducionista.”
É o querido professor Edvaldo Pereira Lima quem diz isso, falando sobre escrita criativa. Ele busca em Jung a inspiração para tratar do tema. Um banho de imaginação ativa.
“A explicação” – ele continua – “mostra o mundo sob uma ótica única ou de pouca abertura.”
A compreensão, por sua vez, “busca exibir o mundo sob perspectivas diversificadas. Mais do que isso, ilumina as conexões entre conteúdos aparentemente desconectados. Interliga dados, mostra sentidos, perspectivas”.
A compreensão é mais divertida.
Lima dedicou desde sempre a vida ao estudo e à prática do jornalismo a que ele dá o nome de literário.
Deambulando com carinho e emoção pelo universo dos símbolos da compreensão, Lima gosta de pensar em namoro e casamento nessa área (entre jornalismo e literatura, entre ficção e não-ficção). Ele fala de simbioses; fala de arte, ética e estética, e também de técnica, por que não?
Coloca o racional para abraçar o não-racional.
Lima dedica páginas inteiras a temas como o da capacidade de simbolizar, de ser criativo, de assumir uma voz autoral, de cultivar um estilo próprio, de se lambuzar com a vida, de se deixar pautar pela ética…
Nesse contexto, Lima alerta para um erro que nós fazemos demais, o tempo todo, alegremente, como Filhos da Gulodice da Explicação: colocamos o carro na frente dos bois na hora de parir um texto.
O carro, no caso, é o Ego, o racional e lógico, o método…
Muita fúria explicativa.
A explicação, no entendimento de Jung, é de tipo redutivo-causal. Costuma se fixar nos porquês. Vive e morre querendo saber o porquê das coisas. Regride, em vez de avançar. Olha para trás – o que, aliás, pode ser muito importante –, mas erra redondamente quando fica presa nesse passado.
Com a compreensão não é assim, ainda na visão de Jung. A compreensão olha para a frente, ainda que muitas vezes com o olho no retrovisor. É de tipo prospectivo-sintético. Foca nos para-quês.
O signo da explicação tem demais a ver com essa mania de querer ter certeza e segurança o tempo todo, com essa compulsão pelo “by the book” da nossa cultura racionalista, doente porque unilateral, mutiladora das virtualidades da alma humana…
É colocar o Ego na frente, no comando: “Marcha, soldado, cabeça de papel!”
É editar, antes do jogo mágico da escrita…
“Jorrar” é o verbo que Lima utiliza para o ato primeiro da escrita.
Primeiro deixar jorrar, e editar, e editar e editar, só depois!
A imagem é a da cachoeira: deixar jorrar “como água de cachoeira despencando do alto”, deixando fluir “suas emoções, suas impressões, suas sensações, suas informações”.
Primum vivere, deinde philosophare. Primeiro viver, depois filosofar.
É possível aplicar também ao ato da escrita – qualquer escrita! – a sabedoria embutida nesse antigo adágio.
A Vida, em primeiro lugar, com inicial maiúscula!
O vigor.
O viço.
E não o vício do rigor – cruz-credo! –, que o rigor é importante, em alguns tipos de texto, mas não demais porque estraga!
E estraga bastante. Empobrece.
Nunca, mas nunca mesmo, o rigor pode vir à frente do vigor, do encanto, do embate difícil, mas necessário e promissor, com o mundo das loucuras do não-racional, loucuras loucas e loucas sabedorias!
Habentibus symbolum!
E já que mencionei um pouco antes um método junguiano por excelência – o método da imaginação ativa –, não custa indicar mais um vídeo de Waldemar Magaldi sobre o assunto “Imaginação Ativa“, você vai gostar!
Montaigne prefere ensaiar
Um dos gênios da boa escrita, Michel de Montaigne (1533-1592) preferia ensaiar: é o pai do ensaísmo moderno.
Montaigne criou o termo, e viu que era bom! E acabou despertando ao longo dos cinco últimos séculos a raiva dos Filhos das Luzes, esses pobres “sábios imaginários”, como a eles se referiu o deus egípcio Amon.
Cinco séculos antes de Edgar Morin, o pai do pensamento moderno da complexidade, o criador do gênero do ensaio dos tempos modernos atacava o mainstream intelectual de sua época, que, já antes de René Descartes (1596-1650), sabia fazer muita análise (dividir, separar) e pouca síntese (juntar, unir).
Sábios imaginários que acabam produzindo aquilo que o francês do século 16, em diálogo com o francês do século 21, chamava de “picotamento do saber”.
Confusum est quidquid usque in pulverem sectum est. Tudo o que é reduzido a pó torna-se confuso.
Hiperespecialização, como chama a atenção Morin.
Um desastre.
Saber sempre mais sobre cada vez menos – e sem conexão de umas coisas com as outras!
“As glosas aumentam as dúvidas e as ignorâncias”, escreve Montaigne. E, no entanto, era o que mais ele via acontecer já em seu tempo.
“Há mais trabalho em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas”, reclama Montaigne. “E mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto: não fazemos mais do que glosar uns aos outros. Tudo fervilha de comentários, mas de autores há poucos.”
Ai, essa doeu!
Onde foi que enterramos o estilo e a voz autoral, de que nos falou há pouco Lima?
Conversando amorosamente com os seus cálculos renais – quanto sofrimento! –, Montaigne ergue bem alta a bandeira da experiência, da vida que vem antes da filosofia, dos bois que é bom que fiquem à frente do carro, do vigor e do viço que pedem licença ao imperativo violento do rigor: “Eu sou a minha física, eu sou a minha metafísica”, ele dizia.
Experiência – nesse caso, não a do empirismo científico, mas a da vida, do primum vivere –, eis a palavra mágica, a palavra-chave do verdadeiro ensaio. Da boa escrita.
De Montaigne aos mais importantes teóricos de nosso tempo que escreveram sobre o ensaio, todos são unânimes em reconhecer que o ensaio, esse Filho da Compreensão, haure sua força e encanto da experiência.
“No caso do ensaio” – afirma Vilém Flusser –, diferentemente do que esse autor chama de texto acadêmico ou de tratado, “viverei meu assunto e dialogarei com os meus outros. No primeiro caso [o do tratado], procurarei explicar meu assunto. No segundo, procurarei implicar-me nele”.
O ensaio de Montaigne “Sobre a experiência” – de onde extraí as palavras dele que acabo de citar – é um dos mais lidos e apreciados de todos os que ele escreveu. Trata-se de uma espécie de manual – não de regras, mas de atitudes – de como se deixar atingir pelo “jorro da cachoeira” da boa, compreensiva e criativa escrita.
O segundo mais importante ensaio de Montaigne é “Sobre os canibais”.
Os “canibais” eram para todo mundo, lá na França de então, os índios brasileiros. Os franceses tinham levado alguns deles para o seu país, depois de haver fundado no Rio de Janeiro a sua França Antártica, pelos idos de 1555.
Montaigne, porém, em pleno século 16, ensaia uma compreensão diferente.
Montaigne não quer fazer a glosa da glosa. Ele quer fugir da bolha maldita da explicação violenta, associada sem exceção ao imperativo do poder.
Como uma voz quase completamente isolada frente ao coro das elites pensantes de então – incluindo a própria Igreja católica de Montaigne, na figura de seus papas, teólogos e canonistas –, o nosso ensaísta não nega que os indígenas possam ter lá os seus motivos para comer carne humana.
Mas canibais, de verdade mesmo, no pior sentido… eram os europeus!
Shakespeare gostou de ler o ensaio.
Jean Jacques Rousseau, idem.
Fundado sobre o princípio da liberdade do espírito, e livre, portanto, das amarras da escrita racionalizante e repleta de perversas certezas e violentas seguranças, o ensaio abre os olhos. Faz ver. Amplia a consciência.
E mudar o olhar – coisa difícil para todo mundo –, nessa linha de pensamento, “é tudibão”,diria um mineiro.
Sabem por que vocês odeiam tanto o ensaio?, pergunta Adorno às elites pensantes da Alemanha de seu tempo, menos de dez anos depois de acabada a Segunda Guerra Mundial.
É porque vocês se dão mal com uma coisa chamada “liberdade de espírito”, responde.
O autor de “O ensaio como forma”, um texto clássico sobre o ensaio como método de escrita, se levanta contra o cientificismo e o cartesianismo de seus contemporâneos alemães.
Adorno é lapidar em sua conclusão: a heresia é a lei maior do ensaio.
Ensaístico, o texto criativo é herético – porque herético é o mundo da alma humana.
Ir ao ‘laboratorium’
No parto alquímico do ato da escrita, a dor faz parte, e essa percepção nos situa justamente na contramão da perversão contemporânea representada pela negação pura e simples de toda dor: é proibido sofrer!
Como não sofrer, não se angustiar, não sentir algo assim como um frio na barriga, uma ansiedade qualquer?
Como desejar um parto natural sem dor na hora da escrita?
A perversão do “é proibido sofrer” se deixa inevitavelmente acompanhar pela doença do mimimi, da irresponsabilidade, do regredir e se fixar na idade que um dia foi, a da criança criança…
Eis a receita do eterno puer.
Eis o homicídio de toda possibilidade humana de criação, de arte, mito, religião, filosofia e ciência.
O que aqui neste texto se está querendo afirmar, não é que escrever seja fácil e indolor, uma pura beleza, algo quase tão simples como descascar uma banana e comê-la!
Não é.
Ordinariamente, não!
Mas a coisa fica pior – impossível até –, se esquecemos a imagem da água que jorra da cachoeira (Lima).
Se não damos crédito à ideia da experiência de si e do mundo (Montaigne).
Se não prestarmos a atenção que merece o apelo à heresia (Adorno).
Se insistimos em colocar o carro na frente dos bois e não deixamos que se manifeste em toda a sua exuberância o que há de mais pleno e amplo em nós: o não-racional, o inconsciente como território de nossos sonhos e de nossas ilusões! De nossa relação com o maravilhoso, com o mysterium – tremendum et fascinans, como ensina Rudolf Otto.
Vamos ao laboratorium!
É o convite dos alquimistas.
O labor criativo do solve et coagula se deixa inscrever no abençoado fascínio espiritual do oratorium: é coisa do espírito, como tão bem expressa Jung, em O espírito na arte e na ciência!
Ora et labora, diz a máxima dos monges beneditinos.
Nessa luta, vamos, como sugere o alquimista Ostanes, às correntezas do Nilo, em busca da lapis philosophorum, “o tesouro difícil de ser encontrado”.
A pedra tem espírito (pneuma).
“Toma-a, divide-a e enfia tua mão dentro dela para extrair-lhe o coração, pois sua alma (psiqué) reside em seu coração.”
‘Meditatio’ e ‘imaginatio’
Filhos da Explicação como somos, apaixonamo-nos facilmente por um conceito ou uma definição.
Gostamos demais de uma regra, uma técnica ou uma receita qualquer que nos prometa a vã segurança de uma cerca ou de um muro, em lugares onde a vida está chamando para a alegria de se arriscar, se jogar, se entregar ao banho nas águas da cachoeira.
“Nós nos contentamos, assim, de adquirir certos conceitos verbais”, diz Jung, “mas passamos ao largo de seu verdadeiro conteúdo, que consiste na experiência viva e impressionante do processo feito sobre nós mesmos”.
É nesse ponto que Jung dialoga com Montaigne: a experiência viva e impressionante de como a coisa se dá em nós mesmos, com nós mesmos. De como a coisa nos atravessa.
“Não devemos entregar-nos a nenhuma ilusão quanto a isto”, continua Jung: “nenhuma compreensão de palavras, nenhum artifício da sensibilidade podem substituir a experiência verdadeira”.
No meio de toda a sua doidice, a sabedoria alquímica nos aponta o caminho das pedras, ou da pedra filosofal.
“Meditatio.”
“Imaginatio.”
“Soliloquium.”
Os caminhos da alma humana, de suas linguagens, de seus amores e dissabores, dos vapores e odores do vaso alquímico.
Escrever parece exigir bem mais do que aprender uma técnica: é abraçar compreensivamente o desafio de se confrontar consigo mesmo, com o Si-mesmo.
Mas, enfim, escrever é uma coisa decente ou indecente?
Depende.
Sabe-se lá o que a gente escreve e como o faz.
Mas será sempre indecente se não formos às correntezas do Nilo.
Se não nos banharmos nas águas da cachoeira.
Se não mergulharmos no vasto oceano do inconsciente, onde a vida pulsa em tom maior.
Dimas Künsch – Analista em Formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: COHN, Gabriel. Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p. 167-187.
FLUSSER, Vilém. Ensaios. In: Ficções filosóficas. São Paulo: Edusp, 1998, p. 93-98.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Scientiæ Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007. Disponível em: http://www.scientiaestudia.org.br/revista/PDF/05_03_05.pdf. Acesso em: 1 maio 2024.
JUNG, Carl Gustav. Mysterium coniunctionis. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012 [OC 14/1].
JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2012 [OC 15].
KÜNSCH, Dimas A. Compreender: indagações sobre o método. São Bernardo do Campo, SP: Editora Metodista, 2020.
KÜNSCH, Dimas A. Toth e a Inteligência Artificial. Portal do IJEP. Disponível em: https://blog.ijep.com.br/pegaso-crisaor-jung-heidegger/. Acesso em: 1 maio 2024.
KÜNSCH, Dimas A. Jung e a heresia do método. Portal do IJEP. Disponível em: https://blog.ijep.com.br/jung-e-a-heresia-do-metodo/. Acesso em: 1 maio 2024.
LIMA, Edvaldo Pereira. Da escrita total à consciência planetária. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues; ALESSANDRINI, Cristina Dias; LIMA, Edvaldo Pereira. Criatividade e novas metodologias. São Paulo: Peirópolis, 1998. [Série Temas Transversais, v. 4].
MAGALDI, Waldemar. Sociedade antidepressiva. Youtube. Disponível em: https://youtu.be/9ozcHpOzn5M?si=5ErFktn73W9aUuWc. Acesso em: 1 maio 2024.
MAGALDI, Waldemar. Imaginação ativa. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zhl2CcY60VQ. Acesso em: 12 maio 2024.
MONTAIGNE, Michel. Os ensaios.São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Foto: THALES CARRARO
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