De origem germânica, nasci no sul do Brasil, com predominância da cultura europeia em que é muito valorizado o preparo de alimentos, produzidos e colhidos pelas famílias nas suas hortas, quintais e roças. Neste contexto, receber bem os familiares e os amigos envolve a fartura na mesa que, simbolicamente, pode ser entendida como reflexos do complexo materno, transmitido pela transgeracionalidade, fixado pela ideia de escassez decorrente das guerras. Por outro lado, também pode representar uma forma de comemorar e, neste contexto, geralmente as mulheres prepararam delícias da culinária alemã e italiana, transmitidas pelos seus descendentes, cozinhando em diferentes tipos de panelas, misturando cores, sabores e muito afeto.
A etimologia da palavra comemorar é de origem latina. Commemorare significa trazer à memória. Também significa com-memorare, recordar junto com outro e na minha lembrança comemorar envolve comer e orar. As celebrações em torno de uma mesa, no dia a dia, ou em datas festivas, iniciava com orações de agradecimento. Muitas recordações… A sopa da avó, cujo cheiro se eterniza. As rodas de chimarrão e pipocas em torno do fogão à lenha nos dias frios e chuvosos, tão significativo quanto o chá das cinco em Londres. E, neste sentido, comemorar em uma mansão ou em um barraco, envolve os mesmos princípios de alcançar a consciência pela preparação e partilha de alimentos. Desde cedo aprendemos a reproduzir a grandeza do simbolismo da fé e gratidão, orando: “Pai nosso, que estás nos céus! Santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia…” (Mateus 6:9-11). Sábias palavras e presença constante da alquimia!
Carl Gustav Jung estudou a alquimia por longos anos e desde o início, com a leitura de registros e textos, percebeu que ela coincidia com a psicologia analítica junguiana, podendo representar o processo de individuação. De acordo com diferentes autores, a alquimia envolve um processo de transmutação, que transforma os componentes em matérias diferenciadas para o alcance do opus alquímico. O objetivo era criar uma substância transcendente e miraculosa, simbolizada como pedra filosofal, elixir da vida ou remédio universal. Para tanto, era necessário utilizar material adequado, a prima matéria, submetendo-a a uma série de operações (calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio,e coniunctio). Vindo ao encontro, podemos afirmar que cada uma das operações é o centro de um elaborado de símbolos, que compõem o principal conteúdo de todos os produtos culturais e permite compreender a vida da psique, com as experiências da individuação” (Edinger, 2006, p. 34).
Preparar alimentos é uma alquimia. O processo que envolve transformar elementos em pão é um exemplo típico, que passa por todas as operações alquímicas. Para tanto, misturamos os ingredientes, a prima matéria, colocamos a massa em assadeira para crescer, depois a submetemos ao calor de um forno para transformá-la em essência, que é o alimento que vamos consumir. É um processo moroso, que envolve dedicação, persistência e amor. Em termos psicológicos, é o conteúdo sombrio que precisa ser ressignificado.
De forma similar, nas diferentes regiões do Brasil é comum nesta época do ano a comemoração com fogueiras, queimando e animando as noites frias das festas juninas, nos invernos da vida. Grãos de pipocas estourando com o calor do fogo envolvem a operação do calcionatio, representando a energia psíquica que é liberada gradativamente, dissolvendo emoções e sentimentos, construindo novas realidades.
Neste sentido, as receitas passadas de geração para outra geração são histórias que envolvem afeto e emoção. As panelas utilizadas no preparo de alimentos (barro, alumínio, pedra, cerâmica, vidro, aço inox, ferro, antiaderente) e assadeiras, remetem-nos aos vasos alquímicos, onde a prima materia recebia uma série de procedimentos químicos. Escolhemos a panela, de acordo com a receita. Cozinhar mais tempo, fritar ou assar, são escolhas que exigem conhecimento. Recipiente frágil não suporta o fogo ou o calor, que é essencial no preparo da comida. Colocar lenha no fogo, mexer para não grudar ou para dar o ponto, engrossar e entornar o caldo, são formas simbólicas de lembrar da fragilidade e da resistência do indivíduo diante das adversidades. Processo de transformação em que o cozinheiro mistura ingredientes, escolhe o recipiente e o calor adequado para realizar as mutações.
Da mesma forma, no preparo dos alimentos utilizamos processos que se intensificam no nosso entorno relacional. Picar, cortar, triturar, amassar, liquidificar… Alguns alimentos são tão duros que necessitam ser transformados, precisam cozinhar mais e a dosagem do calor do fogo é essencial para que isso ocorra. Analogicamente, assim são os indivíduos, que precisam passar por apertos, entrar em contato com o lado sombrio, para promover o autoconhecimento e ressignificação de padrões e de forma idêntica ao cozinheiro, o psicoterapeuta realiza a arte da transformação com a habilidade de controlar o fogo. Em outras palavras, envolve um processo em que é essencial respeitar o momento do cliente e a partir das suas reais possibilidades, dosar as transformações dos seus conteúdos sombrios para o alcance de um novo sentido e significado.
Diferentes culturas, diferentes temperos, mistura perfeita que envolve a sabedoria do tempo. O conjunto de imagens vinculado com a comida, aquilo que nutre o corpo e que foi assimilado pelo ego, também pode ter qualidades estranhas, miraculosas e indicar a expressão arquetípica da psique. Comer algo significa incorporá-lo (Edinger, 2006, p.127). Jung fez inúmeras viagens e, segundo relatos em seus diversos escritos, permitiu-se conhecer e provar as comidas típicas de cada lugar, uma das formas que encontrou para ampliar a compreensão dos aspectos simbólicos que moviam os diferentes povos, o que lembra a Eucaristia, considerado o rito central do cristianismo e como Jung ponderou, pode ser considerada como o rito do processo de individuação. Como afirma Edinger, “do ponto de vista do simbolismo do coagulatio, compartilhar o alimento eucarístico significa a incorporação, por parte do ego, de uma relação com o Si-mesmo” (2006, p.129).
Cozinhar é um ato de amor, uma mistura de elementos de várias cores, especialmente os verdes, amarelos e vermelhos – o colorido que encanta os olhos – que ativa memórias e emoções, ressaltado também em embalagens de produtos comestíveis. De forma similar, percebe-se uma conexão entre a comida e a expressão artística. Em diferentes culturas, cantores exaltam o preparo de alimentos. Isso nos remete a Chico Buarque, que na canção O Circo Místico, aproxima-se do comemorar, colocando mais água no feijão: “… Arroz branco, farofa e a malagueta; a laranja-bahia ou da seleta. Joga o paio, carne seca, toucinho no caldeirão e vamos botar água no feijão”. Dissolver e coagular, premissa básica da alquimia!
Dorival Caymmi nos deixou a música Você já foi a Bahia? Na letra, ele nos convidou para a gastronomia: “Você já foi à Bahia, nêga? Não? Então vá! Lá tem vatapá. Então vá! Lá tem caruru. Então vá! Lá tem munguzá. Então vá. Se “quiser sambar”, então vá!” Marisa Monte, por sua vez, apresenta-nos uma explosão de doces, na música Não é Proibido: “Jujuba, bananada, pipoca. Cocada, queijadinha, sorvete. Chiclete, sundae de chocolate. Paçoca, mariola, quindim, frumelo, doce de abóbora com coco, bala juquinha, algodão doce, manjar”. Produzir, colher e saborear nos faz lembrar de Alceu Valença, que compara Morena Tropicana a uma infinidade de frutas brasileiras: “Da manga rosa quero gosto e o sumo melão maduro, sapoti, juá. Jabuticaba, teu olhar noturno. Beijo travoso de umbu cajá. Pele macia, ai! Carne de caju! Saliva doce, doce mel. Mel de uruçu…”.
Por outro lado, quantos poemas e dizeres populares sobre comidas repetimos e muitas vezes não nos damos conta do que estamos reproduzindo. Descascar abacaxis e resolver pepinos são exemplos típicos, que simbolicamente representam a resolução de problemas. Assim como a comida é o alimento do corpo, a poesia é o alimento da alma. Alguns autores acreditam que a poesia e a culinária podem e devem habitar a mesma mesa. Nosso eterno Vinícius de Moraes entregou em suas palavras o seu amor por comida, no poema Não Comerei da Alface a Verde Pétala: “… Não nasci ruminante como os bois, nem como os coelhos, roedor; nasci, omnívoro: deem-me feijão com arroz, e um bife, e um queijo forte, e parati, e eu morrerei feliz, do coração de ter vivido sem comer em vão” (Los Angeles, 1962).
De acordo com os especialistas da culinária, o que pensamos gera emoções e o que comemos também. Atualmente nos deparamos com estudos específicos que definem os alimentos que mais contribuem para regular as emoções. Percebe-se um movimento de aperfeiçoamento de técnicas e realização de transformações nos alimentos, misturando cores, sabores, aromas, texturas, processo que compreende o preparo e o processamento, para o alcance da satisfação do nosso paladar, semelhante ao que os alquimistas realizavam com a prima matéria em seus vasos para alcance da opus alquímica.
Ainda pensando no afeto que envolve o preparo de comidas, podemos observar em nossas vivências que o lugar mais aconchegante da casa é a cozinha, considerado por muitos o coração da casa, onde acontece o milagre da alquimia: o preparo do alimento. Os equipamentos de laboratório dos alquimistas são substituídos por panelas, frigideiras, fogões e diferentes utensílios. Na cozinha temos o equilíbrio perfeito dos quatro elementos. A água para equilibrar nossas emoções; o ar para suavizar nossos pensamentos; a terra para estabilizar nosso físico e o fogo para nos dar ação em nosso dia a dia.
No contexto da psicoterapia, entram questões que envolvem a construção do vaso psicoterapêutico, que requer um espaço reservado, pautado num elo de confiança, para trabalhar a prima matéria que o cliente traz em forma de queixas ou demandas. É possível perceber que elas estão interligadas com a negação das necessidades do transcendente de sua vida interior e o Self cria caminhos para a sua expressão, muitas vezes por meio de crises e doenças psicossomáticas, a fim de sair da unilateralização egóica ou de complexos geradores de conflitos psíquicos, transformando em conscientes os seus conteúdos inconscientes, possibilitando um novo sentido para as suas dores da alma e alcance da harmonia, respeitando a totalidade do ser.
Assim como a alquimia possibilita a transmutação de elementos e a preparação de alimentos permite trazer emoções à memória, a psicoterapia favorece o processo de individuação e a função transcendente, com saídas criativas para o encontro do ego com o Self. As dores da alma (nigredo) vão se transformando e se tornando mais claras (albedo), para finalmente serem ressignificadas, com novo sentido e significado (rubedo), para o alcance da opus alquímica.
Para finalizar, deixo uma reflexão. Só continua vivo o que nosso coração alimenta. Alquimista na cozinha, no consultório ou no mundo, permita-se experimentar diferentes ingredientes, inventar e reinventar o sabor, o significado e o sentido da vida.
Leituras de apoio:
BÍBLIA De Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003.
EDINGER, E. Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 2006.
HUTIN, Serge. História Geral da Alquimia. São Paulo: Editora Pensamento, 2017.
IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa. Segundo Congresso, palestra do professor Waldemar Magaldi Filho sobre Alquimia, 2017. www.ijep.com.br
JUNG, C.G. A Prática da Psicoterapia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2013.
_________ Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1994.
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Claci Maria Strieder, Pedagoga, Psicóloga, Especialista em Psicossomática, em Psicologia Junguiana e Analista Junguiana em formação pelo IJEP.
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