Uma das belezas que a Psicologia Analítica nos proporciona é mudança na forma de olhar, sentir e perceber a vida. Por trás de cada processo, dor e história existe uma infinidade de símbolos que permitem profundos aprendizados e que, quando ampliados, geram saltos de consciência.
Símbolos estes que conversam conosco a todo tempo, sejam na forma de sonhos, imagens, arte…
Ao pensarmos em arte mal percebemos que ela nos acompanha, permeia e invade. A arte é inerente às classes sociais, farta em todas as religiões, abundante em todas as nações. Como lindamente disse Ferreira Goullart: “a arte existe porque a vida não basta”.
Cada um de nós tem uma ou mais músicas que nos remetem às memórias afetivas, um filme marcante, um livro inesquecível. Em nossa fantasia dançamos como bailarina; lutamos numa guerra; rimos de uma confusão; choramos pela perda; cantamos num show.
A forma que a arte nos invade nem sempre é consciente e temos uma sensação de que ela nos ajuda a minimizar as complexidades da vida. Por outro lado, a arte também pode nos causar incômodos, evidenciar desconfortos, provocar furor.
De certa forma, buscamos obras que compensem nossas fragilidades internas e nos ajudem a suprir ou traduzir nossos aspectos conscientes ou inconscientes.
Quando somos tomados por alguma manifestação artística, somos invadidos por emoções pois a Arte pode ativar algo que sentimos mas que não havíamos percebido com clareza.
Em terminologia junguiana, dizemos que a imagem arquetípica apresentada na manifestação artística nos ativou um complexo.
Devemos lembrar que todo complexo tem um núcleo arquetípico e o arquétipo tem um aspecto numinoso. Conforme Jung, o arquétipo se manifesta tanto no nível pessoal (através dos complexos) como coletivamente (características de toda uma cultura), e contêm em si modos de comportamento idênticos em todos os lugares e indivíduos.
Por isso quando uma imagem nos invade é preciso escutar as conversas internas que geram em nós, pois podem surgir projeções até então não reveladas do nosso inconsciente.
Devemos fazer uma investigação e nos questionar sem medo das respostas: O que sinto ao olhar este quadro? Por que odeio este personagem? Que memórias vem ao ouvir esta música? Por que achei isso tão engraçado?
A imagem arquetípica representada na obra pode expor aspectos positivos e salutares da consciência, evidenciar elementos inconscientes, ampliar a visão periférica do nosso olhar poético:
René Magriite, The False Mirror (1929)
Ou elas podem servir como projeções, revelando nosso material perverso inconsciente, trazendo à tona aquilo que está na sombra e que foi oculto pelo ego. Por isso ao comtemplarmos uma obra, podemos ter sentimentos de incômodo, choque, perplexidade, irritação:
Caravaggio, Judite degolando Holofernes (1599)
Quando a imagem arquetípica ativa nosso complexo, ela ecoa em nosso inconsciente pessoal e traz manifestações do inconsciente coletivo pois, como dito, o arquétipo se manifesta tanto no nível pessoal quanto coletivo.
No livro O espírito na Arte e na Ciência, Jung nos alerta que, quando um artista executa uma obra de Arte, ele transcreve em forma de imagem o espírito da época para o presente:
“Este é o segredo da ação da Arte. O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada. De certo modo a formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando novamente a cada um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo, lhe seria negado. É aí que está o significado social da obra de Arte: ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aquelas formas das quais a época mais necessita.”
(JUNG, Carl Gustav. – p.53 – grifos meus)
Por isso, ao ser tocado por uma obra, também seria importante observarmos o espírito da época de que ela foi feita e compará-la com as similaridades do espírito da época que vivemos atualmente:
Edvard Munch, O grito (1893)
Quando, por exemplo, Fernando Pessoa se utiliza de seu heterônimo Álvaro de Campos para escrever o Poema em Linha Reta, ele descreve uma sociedade que está afundada na persona e que ele não se sente pertencente a este coletivo. O poeta questiona se apenas ele tem defeitos perante uma sociedade que está fortemente identificada com a persona de pessoas perfeitas, felizes e infalíveis.
Numa rápida analogia com nossa atualidade, quem de nós nunca se sentiu inferiorizado ao se comparar com as vidas perfeitas expostas nas redes sociais? A persona da sociedade da nossa época também está identificada com pessoas perfeitas, felizes e infalíveis.
“(…) Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos”
Fernando Pessoa – 1929 (Álvaro de Campos)
Jung fez uma importante consideração sobre a produção das obras de arte no livro O espírito na Arte e na Ciência. Ele explica que, quando a inspiração da obra invade e se revela ao artista produtor e traz em si sua própria forma, onde ele (artista) se sente inundado e é incapaz de recusá-la, ele foi tomado por um complexo autônomo.
“A obra inédita na alma do artista é uma força da natureza que se impõe, ou com tirânica violência ou com aquela astúcia sutil da finalidade natural, sem se incomodar com o bem-estar pessoal do ser humano que é o veículo da criatividade. O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual extrai seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem. A psicologia analítica denomina isto complexo autônomo. Este, como parte separada da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva vida psíquica independente e, de acordo com seu valor energético e sua força, aparece, ou como simples distúrbio de arbitrários processos do consciente, ou como instância superior que pode tomar a seu serviço o próprio Eu. Portanto, o poeta que se identifica com o processo criativo é aquele que diz sim, logo que ameaçado por um “imperativo” inconsciente. Mas aquele que se defronta com a criatividade como força quase estranha não pode, por algum motivo, dizer sim e é pego de surpresa pelo “imperativo”.” (JUNG, Carl Gustav – p.48 – grifos meus)
Sendo assim, a produção de uma obra é simultaneamente a manifestação consciente e inconsciente do artista, que está invadido por um complexo e permeado pelo inconsciente coletivo do seu tempo. Essa participation mystique, essa interpenetração psíquica, transborda na produção artística e transcende espaço e tempo. Os sentimentos, as pulsações, as emoções deixam de ser do indivíduo (artista) para ser do coletivo; não se trata mais das alegrias e dores do indivíduo, mas de toda humanidade.
Vincent Van Gogh, A noite estrelada (1889)
A arte é atemporal e possui muitas linguagens. Algumas são imortais e outras efêmeras e se esvaem com a poeira do tempo. O importante é que, ao nos sentir tocados, possamos permitir uma fusão com ela e deixarmos as emoções e incômodos se revelarem; que possamos auscultar seus dizeres, sentir o arrepio na pele da alma, que possamos sair prenhes de significado e que nos permitamos fazer parte deste valoroso amálgama simbólico.
Daniela Euzebio, pós graduada em Psicologia Junguiana pelo IJEP, pós graduanda em Arteterapia pelo IJEP, analista em formação pelo IJEP.
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Atendimento: R. Domingos de Morais, 2781 – Vila Mariana, São Paulo (ao lado do metrô Santa Cruz).
Fontes:
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completas de C.G.Jung, v. 8/2).
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2016c (Obras completas de C.G.Jung, v. 9/1).
JUNG, Carl Gustav. O Espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985 (Obras completas de C.G.Jung, v. 15).
BOTTON, Alain de; ARMSTRONG, John. Arte como Terapia. John. Arte como Terapia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.