Muitos de nós tivemos uma infância marcada pelas brincadeiras ao ar livre. Desde cedo, aprendemos a arte de soltar pipas, que envolve direcionar uma linha e fazer malabarismos no céu. Quanta beleza e aprendizagem se concretiza nesse momento lúdico, que também envolve alguns perigos, que podem ser evitados com conhecimento, cuidados e escolhas, simbolicamente representadas por asas e gaiolas. Neste sentido, Rubem Alves nos deixou um aforismo – visão que faz ver sem explicar – sobre gaiolas e asas: “Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados têm sempre um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são os pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado”.
O voo dos pássaros nos transmite a sensação de liberdade. As andorinhas voam em bando, pois “uma andorinha voando sozinha não faz verão”, que nos remete para a importância da coletividade. Da mesma forma, a águia, considerada a mensageira divina e rainha dos céus, representa a coragem, a força e a beleza. Enquanto isso, seres humanos voam de avião, que encurta o tempo, o espaço e une as pessoas. Voar de avião, de helicóptero ou de asa delta, tem um sentido simbólico de nos lançarmos no ar. De forma idêntica, o ato de abrir as asas e voar de um pássaro pode representar a vontade de nos entregarmos para a vida, com menos apegos e mais amor. Na canção Pássaro de Fogo, com coragem, força e beleza, Paula Fernandes expressa sua criatividade: “Tão longe do chão, serei os teus pés, nas asas do sonho, rumo ao teu coração…” Seres humanos também voam em pensamentos! Neste sentido, as expressões voar alto, voar baixo, voar livremente ou mesmo voar com os pés no chão são comuns, representando metaforicamente os nossos voos, nem sempre percorridos com êxito.
A possibilidade de nos elevarmos, move-nos para reflexões sobre a atmosfera. Segundo a ciência, existem cinco camadas da terra que são envolvidas pelo ar: troposfera, estratosfera, mesosfera, termosfera e exosfera. Há muito tempo, em 1643, Torricelli inventou o barômetro, que serve para medir a pressão atmosférica, a altitude e as possíveis mudanças de tempo. Com o avanço da tecnologia, hoje ele já é encontrado em iPhones 6/6 Plus, funcionando no app Saúde (Health). A ciência avançou, porém sabemos que nem tudo pode ser explicado. Alguns fenômenos continuam nos surpreendendo. Quem imaginou que uma pandemia provocaria um recolhimento social no mundo! O Coronavírus (COVID-19) se propagando pelo ar, ao mesmo tempo que o oxigênio, incolor e inodoro, é essencial na respiração dos seres vivos. Como disse Rubem Alves: “O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver (…) A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver (…) As ferramentas permitem-me voar pelos caminhos do mundo”. Analogicamente, isso nos leva a pensar: como voar pelos caminhos da alma?
O elemento ar, assim como a terra, a água e o fogo, são fundamentais para o universo e também representam funções internas, visíveis ou não. O ar transita pelo terreno da razão, do estímulo e do espaço. Vindo ao encontro, a alquimia, estudada por Jung no decorrer de muitos anos, constituiu-se de sete operações e, a sublimatio é a operação que pertence ao ar, em que um sólido é aquecido e entra no estado gasoso, tomando a direção do alto. Esse processo envolve a elevação e a volatização, com imagens simbólicas que indicam movimento para cima: elevadores, montanhas, escadas, voos, pássaros, asas e outros mais. Metaforicamente, é o momento em que o indivíduo começa a conscientizar-se de algum conteúdo inconsciente que estava desconhecido e, passa a tornar-se de seu conhecimento, que permite trazer a função pensamento, definida por Jung como uma das funções racionais, que envolve julgamento lógico e temporal. Ela é voltada ao intelectual, permite associar ideias para chegar a uma conclusão, envolvendo a lógica e a objetividade e está centrada na busca de resultados e soluções de um problema. É o que ocorre na operação sublimatio: afastamo-nos do problema para uma maior compreensão dele, mas não podemos ficar afastados o tempo todo. Asas podem se tornar gaiolas! Ainda, para possibilitar mais reflexões, cito Jung, que em outras palavras evidencia a necessidade de sairmos dessa operação e voltarmos à concretude: “A vida natural é o solo em que se nutre a alma. Quem não consegue acompanhar essa vida, permanece enrijecido e parado em pleno ar. É por isto que muitas pessoas se petrificam na idade madura, olham para trás e se agarram ao passado, com medo secreto da morte no coração” (O/C 8/2, 2013, par. 800). É possível que Jung quis nos afirmar que ficarmos parados pode nos fixar em padrões unilaterais, que geram patologias.
Nos estudos da psicossomática, o elemento ar é relacionado ao aparelho respiratório, envolvendo o pulmão e a respiração, podendo surgir no corpo em forma de sintomas como a asma, a bronquite, a rinite e outros mais. Quantas vezes ouvimos a expressão “falta-me ar” para respirar! Fiquei sem ar, simbolicamente pode representar que não consigo mais respirar o mesmo ar que outros respiram, ou seja, não suporto mais lidar com os problemas do ambiente. Igualmente, temos outras representações sociais: perdi o fôlego, prendi a respiração, estou com a respiração cansada, estou suspirando, estou bufando… São sensações nítidas de estarmos presos em gaiolas. No simbolismo oriental, doenças respiratórias podem representar tristeza, secura, dificuldade de adaptação a novas etapas e de abandonar velhas coisas e, o desejo de ritmo e ordem. O pulmão estabelece contato com o mundo exterior, que envolve trocas e liberdade. Os estudos sobre a astrologia nos mostram que os signos gêmeos, libra e aquário são guiados pelo ar, que abrange a comunicação, a curiosidade, a liberdade de viver e o movimento. Ficar parado para esses signos é um caos. A inspiração é símbolo de um ato criativo e, quando não estamos inspirados, a imunidade pode baixar, tornando-nos suscetíveis à doenças que podemos pegar no ar, com fungos, bactérias e vírus.
Os meios de comunicação expandem suas informações com a utilização de expressões como “está no ar” ou “vai ao ar”, lançando ideias pela televisão, pelo rádio e pela internet. No momento, com a pandemia do Coronavírus, passamos a nos comunicar por diferentes plataformas digitais, estabelecendo relações de troca no trabalho, no lazer e no entretenimento. Essas conexões podem simbolizar o movimento de pesar e medir no distanciamento, focar e voltar para a terra, representando o uso da criatividade para “pensarmos” novas realidades. De forma metaforizada, podemos ampliar sobre o pensar no distanciamento, com a teoria de C.G. Jung, que apresentou em Tipos Psicológicos, as quatro funções psíquicas e considerou a função pensamento como racional, por envolver a discriminação lógica e conceitual, que compreende o julgar, discriminar e classificar, sem interesse no seu valor afetivo. Mas podemos de fato pensar sem envolver as funções sentimento, sensação e intuição? Segundo o autor, as quatro funções são importantes, predominando uma, que é a mais presente, denominada de função principal. As demais ocupam o lugar de funções auxiliares e, uma delas é nossa função inferior, que precisa de um olhar especial, por envolver nossos aspectos sombrios. As quatro funções dão conta da completude de uma determinada situação.
As palavras ar e pensamento, que permeiam nossas reflexões, permitem-nos muitas ampliações. Para maior compreensão, Fernando Pessoa nos deixou uma analogia que envolve o ar e o pensamento em forma de poesia, representando a dualidade que envolve a liberdade e a prisão: “Raiva nas trevas o vento, sem poder libertar. Estou preso ao meu pensamento, como o vento preso ao ar”. Em contrapartida, Cidade Negra, trouxe reflexões sobre o pensar, em seu álbum Sobre todas as forças (1994): “Pensamento é um momento que nos leva a emoção (…) Sempre que para você chegar terá que atravessar a fronteira do pensar (…) E o pensamento é o fundamento, eu ganho o mundo sem sair do lugar”. O pensamento pode ser uma prisão, quando retemos conteúdos que precisamos deixar morrer dentro de nós. Ao mesmo tempo, pode ser uma expressão criativa que promove um olhar diferente para a angústia, resultando em algo libertador.
Na mitologia grega, Zeus era considerado o deus dos céus, dos raios, dos relâmpagos e dos trovões e os utilizava para a destruição ou para a produção. Para Zeus foi dado poderes sobre os céus, assim como para Hades poderes à terra e Poseídon aos mares. Outros deuses também eram ligados ao ar. Éolo era respeitado como o guardião dos ventos, que ensinava a navegar. Zéfero era deus do vento do oeste, representando uma brisa suave ou vento agradável. Ainda, na mitologia grega, encontramos Pegasus, filho do amor impossível de Poseidon e Medusa, em forma de cavalo alado, criador da fonte de inspiração dos artistas e considerado por muitos o rei dos céus. Zeus permitiu que ele continuasse a subir cada vez mais alto até alcançar as estrelas, transformando-as em constelação. Inspiração metaforizada que se converteu em artes, filmes e livros e, que até hoje envolve temáticas sobre sonhos idealizados e concretizados, como aparece na música A Força do Amor, da banda Roupa Nova: “Abriu minha visão o jeito que o amor, tocando o pé no chão, alcança as estrelas. Tem poder de mover as montanhas, quando quer acontecer, derruba barreiras”. Sejamos como Pegasus, uma eterna fonte de elevação e imaginação criadora, capaz de transformar a nossa realidade!
Voar envolve subir e descer. O sonho de voar como os pássaros inspirou Santos Dumont, o inventor do avião e Ícaro, da mitologia grega, que realizou esse sonho, construindo asas, feitas com penas de gaivotas e coladas com cera de abelhas. Ao sentir-se livre como um pássaro, voou cada vez mais alto, sem ouvir os conselhos de seu pai. A tragédia ocorreu em seguida, pois o calor do sol derreteu a cera e descolou as penas, despencando das alturas até cair e afogar-se no mar Egeu. A desmedida provocou a tragégia, que de alguma forma, o cantor Byafra, nos anos 80, trouxe na música Sonho de Ícaro, que foi tema de novela e cantada até hoje por muitos de nós. Nela, retratou a delícia de ir às alturas: “Voar, voar, subir, subir. Ir por onde for, descer até o céu cair, ou mudar de cor. Anjos de gás, asas de ilusão e um sonho audaz feito um balão”. Por outro lado, a fábula O gavião e o Rouxinol, enfatiza situações de bom senso no dia a dia e nos alerta para o perigo da desmedida, do excesso, da violência, da arrogância, do orgulho e da vaidade, que é maléfico para todos, também conhecido como hýbris, na mitologia. Isso é retratado no texto de Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, em que gavião no alto das nuvens leva preso em suas garras um rouxinol: Desafortunado, por que gritas? Um muito melhor e forte te segura, tu irás por onde eu te levar, mesmo que tu sejas um bom cantor (…) Insensato quem deseja com os mais fortes medir-se, da vitória priva-se, sofre penas, além da vergonha”. Da mesma forma, a hýbris se faz presente nos entornos relacionais e nos convida para a harmonização dos opostos.
Finalizando minhas ampliações, trago Ísis, considerada a deusa mais importante do Antigo Egito, pelo seu conhecimento e pela sua sabedoria, um falcão com as suas asas abertas, consideradas asas divinas, que podiam ressuscitar os mortos. Era considerada deusa da morte e deusa curadora, simbolicamente representando a vida, com morte e renascimento. Diante de tantas mortes físicas e emocionais reais, precisamos renascer! E quantas vezes deixamos morrer, não apenas por escolha, mas por não termos alternativas. Por outro lado, podemos abrir espaço para o novo, promovendo o renascimento e a cura com novos pensamentos e novas atitudes. Podemos nos distanciar da terra como pássaros que voam livremente pelo ar, depois voltarmos à terra e, transcendermos para os cuidados com a terra e com todos que nela habitam. Neste sentido, a arte do silêncio nos ensina a escutar a voz do vento. É o que nos trouxe Fernando Pessoa, em seus versos: “Ás vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”. As escolhas nos permitem voar pelos caminhos da alma e, para tanto, podemos optar sempre entre asas ou gaiolas.
Claci Maria Strieder, Analista em formação pelo IJEP.
Leituras de apoio:
ALVES, Rubem. Gaiolas ou Asas. A arte do voo ou a busca da alegria de aprender. Porto: Edições Asa, 2004.
COLEÇÃO: Divindades gregas. Brasil: Editora Abril, 2004.
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. intr. e comentários por Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1990.
GANDON, O. (2000). Deuses e Heróis da Mitologia Grega e Latina. São Paulo: Editora Martins fontes.
JUNG, C.G. A Natureza da psique. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2013.
__________ Psicologia e alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1994.
__________ Tipos psicológicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2013.
MACHADO, Luciano Vieira. Mitos gregos – o voo de Ícaro e outras lendas. São Paulo: Editora Ática, 2005.
POESIAS. Fernando Pessoa (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor). Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).
________ Fernando Pessoa Antologia Poética (com organização, apresentação e ensaios de Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012.
www.letras.mus.br › biafra/sonho de ícaro.