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A identificação com o masculino na busca pela perfeição do feminino

Resumo: A identificação com o masculino na busca pela perfeição do feminino Vivemos em uma sociedade patriarcal que impõe padrões rígidos de perfeição e alta performance como sinônimos de sucesso. Nesse contexto, as mulheres frequentemente encontram-se em desvantagem, tanto profissionalmente quanto pessoalmente, levando-as a perseguir metas e padrões psíquicos masculinos. Este artigo propõe uma reflexão sobre como essa busca pelo poder e reconhecimento, muitas vezes inconsciente, afasta as mulheres de sua essência feminina primordial, resultando em sofrimento psíquico. Utilizando a perspectiva da psicologia junguiana, exploro como a integração dos princípios masculinos e femininos pode ajudar a restaurar um equilíbrio saudável, essencial para o bem-estar e a autenticidade feminina.

“… um incansável desejo de poder […] servirá de símbolo da mulher destituída de sua feminilidade em razão de seu empenho na consecução de metas masculinas, que, em si mesmas, são uma paródia do que a masculinidade realmente é”.

WOODMAN, Marion., 2002, p. 09

Vivemos em uma sociedade patriarcal que impõe a perfeição e a alta performance como padrão de sucesso.

Nessa corrida pelo poder, as mulheres seguem na desvantagem, tanto no âmbito profissional quanto no pessoal. No mercado de trabalho, segundo o 1º Relatório de Transparência Salarial do Brasil, as mulheres recebem 19,4% a menos que os homens e, dentre os cargos de liderança, essa diferença é ainda maior, subindo para 25,2%. Atrelado a isso, é sabido que a dependência econômica é um importante fator de vulnerabilidade da mulher. Portanto, é altamente compreensível a busca da mulher pelo poder e sucesso diante de uma sociedade opressora e machista.

O que desejo propor com esse artigo é uma reflexão sobre como a necessidade de “sobrevivência”, a garantia de direitos e até mesmo a busca pelo sucesso profissional, têm se manifestado, em muitos casos, inconscientemente, distanciando o feminino da sua essência primordial, trazendo muitos atravessamentos e dores. Na clínica, compreendemos que o que acontece no dia a dia é reflexo e consequência da mesma dinâmica inconsciente entre os princípios masculinos e femininos na psique, individual e coletiva, da mulher contemporânea.

Vivemos um processo de sublimação histórica do feminino arcaico, que constitui o que Jung nos apresenta como arquétipo da Grande Mãe. E, como todo arquétipo, é um aspecto psíquico, eficiente auxiliar das adaptações instintivas e com características duais/antinômicas.

[…] as circunstâncias forçaram a mulher a adquirir alguns traços masculinos, para não permanecer atrelada a uma feminilidade arcaica e puramente instintiva, estranha e perdida no mundo dos homens, como uma espécie de ‘boneca’ imaterial.

JUNG, 2017, p. 136-7

Reiteradamente, ouvimos e vemos mulheres sendo valorizadas e reconhecidas socialmente quando se aproximam de Logos e se afastam de Eros.

Como explica Jung no livro “Civilização em Transição”, “a psicologia da mulher se baseia no princípio de Eros, que une e separa, ao passo que do homem, desde sempre, encontra no Logos seu princípio supremo. O conceito do Eros, em linguagem moderna, poderia ser expresso como relação psíquica, e o do Logos como interesse objetivo” (Ibid.,p.134). Ou seja, é quando o feminino se desconecta da subjetividade, da intuição e do amor e se encanta com a racionalidade, a ordem e o poder. E qual a consequência dessa unilateralização?!

Segundo Jung (2017, p. 129), o indivíduo, seja ele homem ou mulher, é composto de polaridades, portanto, o oposto do que está na consciência encontra-se no inconsciente. “Quando se vive o que é próprio do sexo oposto, vive-se, em suma, no plano de fundo, com prejuízo do primeiro plano que é essencial. A oposição sexual sempre se situa perigosamente próxima do inconsciente”.  E, como sabemos, quando não temos consciência de algum conteúdo sombrio estamos ainda mais vulneráveis a ele.

A partir desse entendimento, ampliamos a nossa compreensão sobre o sofrimento psíquico das mulheres que buscam um lugar justo e digno na sociedade, que insiste em privilegiar os homens e aquelas que mais se aproximam de uma persona rígida e masculinizada. E aqui, me refiro aos aspectos psíquicos e não sexuais.

“A masculinização psíquica da mulher vem trazendo consequências indesejáveis. […] A razão é que o animus dela (isto é, seu racionalismo masculino, e que nada tem a ver com a verdadeira racionalidade!) fechou o acesso aos seus próprios sentimentos.”

JUNG, 2017, p. 130

Ouvimos, aprendemos e absorvemos, consciente e inconscientemente, que negar os instintos e a intuição é estar no controle da vida e da razão. Nos ensinaram que o feminino arcaico é subjetivo demais, místicos demais e frágil demais. E, como somos filhas do nosso tempo, nos identificamos com a “perfeição” do modelo estabelecido na sociedade patriarcal que se sustenta na falácia da meritocracia. Somos cobradas a fazer o melhor na escola, no trabalho e nos relacionamentos.

“Nessa árdua luta para criar a nossa própria perfeição, esquecemos que somos seres humanos. Por um lado, tentamos ser a eficiente e disciplinada deusa Atena e, por outro, somos forçadas a afundar na voraz e reprimida energia da Medusa.”

WOODMAN, 2002, p. 13

Nos entregamos à pressão do desempenho, à busca pelo poder sobre os outros e sobre nós mesmas.

Flertamos com o sucesso e com o fracasso e, ao viver essa dualidade psíquica, emocional e física, ficamos adoecidas, esgotadas e solitárias. Um cansaço silencioso e sorrateiro.

Manifestações psíquicas da mulher contemporânea que chega ao consultório trazendo relatos de ansiedade, angústia, falta de sentido de vida e até adoecimentos físicos, resultante da desconexão do corpo com a alma. A anima foi relegada à sombra e ganhou aspectos perversos ao se desvincular da Grande Mãe.

Para a mulher, o vínculo com a Grande Mãe também é sempre o pré-requisito psicológico para […] ter um relacionamento saudável com o próprio corpo e com a terra. […] Frequentemente a possessão neurótica da mulher pelo animus é a expressão da sua incapacidade de diferenciar entre o Self e o Masculino. A mulher torna-se vítima de sua tendência à identificação e se aliena de sua própria natureza ao superdesenvolver o lado masculino, o lado do animus.

Erich Neumann, 2000, p. 26

É nesse sentido que a psicologia Junguiana se coloca como ferramenta para reestabelecer a conexão e integração do masculino com o feminino e do consciente com o inconsciente.

No setting terapêutico, por meio de ampliações, reflexões e confrontos, é possível estabelecer um diálogo da ancestralidade com a contemporaneidade, o contato Ego-Self.

Uma descoberta do feminino sensível e amoroso, capaz de reconhecer em si o Eros e o Logos que lhe habitam, e lançar mão de seus aspectos com sabedoria. Uma dança simbólica da anima com o animus, onde os dois têm seu papel fundamental, ora conduzindo, ora se deixando ser conduzido. Reconhecendo que somente pelo ao amor é que podemos nos transformar.

Clarisse Grand Court – Analista Junguiana em Formação pelo IJEP

Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata IJEP

Referências:

Agência Câmara de Notícias. Dependência econômica é fator de vulnerabilidade da mulher à violência, alertam especialistas. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Marco/mulheres-recebem-19-4-a-menos-que-os-homens-aponta-1o-relatorio-de-transparencia-salarial#:~:text=As%20mulheres%20recebem%2019%2C1,m%C3%A9dia%20%C3%A9%20de%20R%24%205.387.&text=No%20dia%2021%20de%20mar%C3%A7o,CNPJ%2C%20no%20Portal%20Emprega%20Brasil. Acesso em: 27 de maio de 2024.

JUNG, Emma. Animus e anima. 1ª edição. São Paulo: Cultrix. 2006.

JUNG, Carl Gustav.  Civilização em transição. 6ª edição. Petrópolis: Vozes, 2017.

MIRA, Eduardo. A independência financeira das mulheres deveria ser prioridade social.  https://forbes.com.br/forbes-money/2023/03/eduardo-mira-a-independencia-financeira-das-mulheres-deveria-ser-prioridade-social/. Acesso em 27 de maio de 2024.

NEUMANN, Erich. O medo do feminino e outros ensaios sobre a psicologia feminina. São Paulo: Paulus. 2000.

WOODMAN, Marion. O vício da perfeição. São Paulo: Summus, 2002.

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