Resumo: Nem sempre o que vemos em nós mesmos como virtude é, de fato, virtude. Neste artigo, falo sobre como a perfeição é uma ilusão paralisante, que, muitas vezes, visa justificar, com ares de nobreza, a nossa covardia em realizar as transformações que a própria natureza nos exige, quase sempre, de forma imperiosa e arquetípica.
O mundo está cheio de “talentos”, em seus quartos e de portas fechadas, à espera do momento propício para expressarem-se no máximo esplendor de uma suposta perfeição. Mas o que é perfeito? Perfeito é o que não falha, é o que não erra, não decepciona, não incomoda, é o que não peca e também é o que não aprende, o que não transforma nem se transforma… é o que não existe.
O poeta português, Fernando Pessoa (2023, posições 542-553), com o pseudônimo Bernardo Soares, escreveu:
“Agir é exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo[…] E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Sonhado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se”.
Sem a imperfeição não existe obra e a vida é a maior das obras de qualquer pessoa e de todo Fernando. Mesmo que os poemas sejam a manifestação que torna o poeta imortal à grande maioria dos mortais, em alguma medida, seus versos imperfeitos só puderam frutificar graças à vida imperfeita que ele se encorajou a viver.
Não há poeta sem coragem, não há poeta sem fracasso, não há vida sem imperfeição. No fundo, todos os que aspiram à perfeição temem a vida como a própria morte; paralisam-se e, sem que saibam, deixam de viver ainda em vida, o que, como se diz no popular, é sempre pior do que morrer.
Perfeição e morte
Perfeição e morte têm uma relação estreita. Pelo seu caráter irreal, a perfeição aborta a ação, e a ação é uma das provas de que somos seres animados — com alma. Por isso, não é incomum que a paralisante aspiração pelo perfeito surja em momentos de crise na vida, quando temos de morrer, em parte e simbolicamente, para renascer transformados, para renascer outros, mais apropriados à nova etapa da vida que nos chega como imperativo da natureza, como uma voz interior. Sobre esta mesma voz, Jung escreve:
A voz interior é a voz de uma vida mais plena e de uma consciência mais ampla e abrangente. Por isso, dentro da mitologia, o nascimento de um herói ou seu renascimento simbólico costumam coincidir com o nascer do sol; é que o formar-se da personalidade equivale a um aumento da consciência. Pelo mesmo motivo, a maioria dos heróis é designada por atributos do sol, e o instante em que surge sua grande personalidade é chamado de iluminação. (JUNG, 2021, p. 197)
De fato, é um ato heroico se assumir imperfeito para as novas etapas de nossas vidas. Significa lançar-se numa existência desconhecida, ter coragem de deixar para trás aquele no qual nos reconhecemos. De forma mais didática, quero dizer que não é aconselhável nem saudável ir para a vida adulta com a consciência da criança nem seguir para a velhice com a cabeça do jovem. A cada uma dessas passagens, não seremos mais quem éramos, mas traremos conosco uma lembrança imprecisa e de consistência onírica de quem fôramos.
A vida quer que nos transformemos. A transformação é a única maneira de preservar a essência da vida, de honrar o caráter mitopoético da alma, pois o que não se transforma não conta histórias.
Ao mesmo tempo, sabemos, não é fácil se transformar, não é fácil ouvir a voz interior e despir-se da ilusão de perfeição que veste aquele que cremos que somos no momento, aquele no qual nos reconhecemos, mesmo que tal querido conhecido tenha se tornado inapropriado para acompanhar-nos na nova etapa da vida que se apresenta adiante. Confundimos perfeição com roteiros padronizados concebidos a partir da consciência que temos agora. Mas o que será do amanhã, quando a consciência “de agora” não mais nos servir? Que roteiro seguir?
A voz do coração
É impossível realizar o futuro com os olhos do passado, bem como é impossível realizar o passado com os olhos do futuro. O que temos é o presente, que se norteia pelo futuro e se identifica com o passado, um astigmatismo anímico, que nos obriga a olhar em duas direções ao mesmo tempo, sem jamais sermos capazes de realizar perfeitamente, ou ver com nitidez, nenhuma delas.
A visão desfocada é a condição do ser humano que vive, de fato, seu presente, ciente de que o passado e o futuro sempre serão imprecisos e que seguir em frente rumo ao novo ou lembrar o que se foi é sempre uma realização imperfeita. Estar presente é viver com dúvida. A dúvida não nos traz o conforto e a proteção ilusórias que sentimos quando estamos fechados no quarto da infância e adolescência. Todavia, é por meio da dúvida que podemos abrir um mundo de possibilidades e incertezas.
Mas, claro, não queremos a incerteza — só as possibilidades.
A perfeição, assim, pode ser vista como um antídoto infantil contra a incerteza, contra a noite escura, o mar selvagem, salgado, bravio e repleto de monstros. Por isso, é preciso coragem e toda coragem é uma atitude do coração — core actum —, restando à razão, senhora das certezas, não o protagonismo, mas a coadjuvância.
Seguir a tal voz interior, que talvez também possamos chamar de voz do coração, é lidar com o que julgamos ser mau — não nos outros, em nós mesmos. É lidar com o fato de não sermos, aos olhos do mundo, tão bons como gostaríamos de ser; lidar com a constatação de que não somos tão imaculados e admiráveis do ponto de vista moral; é saber-se incapaz; é perder, mas não necessariamente se perder completamente; é reconhecer-se e se amar mesmo imperfeito. A respeito, Jung escreve:
De modo imperscrutável acontece muitas vezes que se acham misturados na voz interior o mais baixo e o mais alto, o melhor e o pior, o mais verdadeiro e o mais fictício, o que produz um abismo de confusão, ilusão e desespero[…] Naturalmente será ridículo acusarmos de maldade a voz da natureza, que é sempre boa e sempre destruidora. Se ela se nos afigura de preferência como má, isso provém principalmente daquela antiga verdade de que o bom é sempre inimigo do melhor. (JUNG, 2021, p. 198)
O “mal” como salvação
O caráter “sempre” destruidor da voz interior, a que se refere Jung, está ligado à ideia de que, para que o novo nasça, algo precisa morrer. Contudo, importante destacar, essa morte nunca deve ser integral. A morte deve ser sempre parcial. É preciso jeito, cuidado e amor para morrer. Não é sem motivo que se teme sair do quarto e encarar a vida e as transformações que ela demanda. Aspectos da velha consciência precisam ser preservados para que tal morte seja uma transformação e não uma aniquilação. Se for uma aniquilação completa, não haverá mitopoiesis, não haverá história a contar.
Como escreveu Clarice Lispector em carta a uma amiga: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” É interessante, aqui, recorrer mais uma vez a Jung (2021 p. 198), para quem “Se o ‘eu’ sucumbir [à voz interior] apenas em parte e puder salvar-se de ser totalmente devorado, fazendo uso da autoafirmação, então poderá assimilar a voz [interior].”
Embora, como escreve Jung (2021 p. 198), não se possa acusar a voz interior de maldade, é comum que a consciência que experiencia o chamado a transformação a veja dessa forma. Contudo, ao ser capaz de assimilar apenas parcialmente o que ela comunica, sem se entregar por completo a ela, o ego — centro focal da consciência — encontra a oportunidade de esclarecimento e pode, enfim, compreender que “o mal era apenas uma aparência de mal, sendo na verdade o portador da salvação e da iluminação”.
Sempre e de novo
Na mesma linha, o temido e “maléfico” imperfeito, que nos exila do ideal “benéfico” de perfeição, costuma ser uma descoberta libertadora. O homem que chega aos quarenta, consumido pelo fato de nunca ter sido o que havia, vinte anos antes, planejado para si mesmo, pode e precisa encontrar um novo sentido para o “fracasso” que foi sua juventude adulta, precisa de um novo olhar para o presente para que a imperfeição do passado seja uma iluminação e não um abismo. Se não for capaz dessa ressignificação, com que cara vai encarar o futuro, posto que, assim, jamais estará à altura dele?
Da mesma maneira, aquele cinquentão, a que todos consideram um sucesso, rico, famoso e poderoso, dono de uma “vida perfeita”, como poderá encarar uma demissão ou a quebra inusitada de sua empresa ou, ainda, uma separação? Como uma mulher madura e bem-sucedida poderá deixar boa parte do que conquistou por não encontrar mais sentido no que sempre fez? Ela sente que há muito a realizar, mas, para alcançar o que anseia, terá de se transformar noutra. Quem ela será?
Com o jovem aplaudido de pé pela família, quando criança e adolescente, por ser muito inteligente, drama semelhante costuma se dar. As grandes ideias, os poemas que escreve e só mostra aos mais próximos, o piano que toca e todos dizem que é fabuloso… Tudo isso colocado à prova no mundo continuará sendo “perfeito”? Estará ele pronto para não ser o “máximo”, para não ser o pequeno prodígio que sonha ser — ou que sonham por ele? “Pronto” ou não, se ficar onde está, nada mudará. E, sejamos sinceros, quem está pronto de véspera?
A perfeição como desculpa para não se viver não se revela apenas em grandes atos da vida, até porque a vida se faz de pequenas ações, faz-se em cada palavra, em cada verso para, só depois, ser um poema e, quiçá, com mais poemas, um livro.
Por isso, é na recusa da realização de tarefas simples, sob o pretexto de uma perfeição, que deixamos de viver a grandeza de nossa existência. Sem a imperfeição humana, todo o sonho é natimorto. Mas o que a Anima Mundi quer de nós é que sejamos capazes de ir além do ventre das idealizações. A alma quer nascer, quer realizar-se — sempre e de novo.
Wagner H. P. Borges — Membro Analista em Formação IJEP
Dra. E. Simone Magaldi — Membro Analista Didata IJEP
Bibliografia:
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego — Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. São Paulo: Companhia de Bolso, 2023. Livro Eletrônico.
JUNG, C. G. A natureza da psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
_________. O desenvolvimento da personalidade. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.