A pomba sempre foi uma ave que se apresentou de forma simbólica em muitas culturas, desde os tempos antigos. Particularmente a pomba branca assume sempre um aspecto bastante positivo, logicamente por se tratar de um pássaro bastante dócil, belo e gracioso. No século XX, a pomba branca ganhou bastante notoriedade após a obra de Pablo Picasso “Pomba da Paz” se tornar um emblema pela paz mundial após a Segunda Guerra Mundial quando, na ocasião, essa obra ilustrou o cartaz do Congresso Mundial pela Paz em 1949.
Curiosamente, no dia anterior ao congresso, sua companheira havia dado à luz uma menina que recebeu o nome de Paloma. Na década de sessenta, Picasso realizou uma série de desenhos dessa pomba, cada vez mais estilizados, e acrescentou um ramo verde no bico da pomba. Desde então essa obra se tornou um ícone do desarmamento e da harmonia entre os povos.
Mas seria a pomba branca um símbolo da paz ou apenas uma expressão semiótica para comunicação de uma ideia?
A pomba assumiu muitos aspectos no decorrer da história da humanidade. Na tradição pagã, a ave de Afrodite representava a realização amorosa, que o amante oferece ao seu objeto de desejo (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 2021). De acordo com a tradição cristã, a pomba surge como representação do Espírito Santo no batismo de Cristo e no milagre de Pentecostes, quando se repartiu um línguas de fogo que pousaram sobre os apóstolos. Também foi o Espírito Santo que protagonizou a Anunciação a Maria e, segundo JUNG (2014), existem pinturas da idade média onde algo como um mecanismo liga o trono de Deus ao ventre da Virgem, por onde desce uma pomba.
Ainda que a figura feminina tenha sido excluída do dogma da Trindade, a pomba também era a ave de Astarte, deusa da fertilidade e da sexualidade, a mais importante do panteão dos fenícios. Também para os antigos gnósticos o Espírito Santo, que apareceu na forma de pomba, era representado como Sofia, Sapientia e Sabedoria da Mãe de Cristo, mostrando que a princípio as qualidades de mãe era originalmente um atributo do Espírito Santo, e por bastante tempo as propriedades femininas permanecem ligadas a ele através da Pomba do Espírito Santo (Cf. JUNG, 2012, p. 94).
De acordo com a visão da psicologia analítica, a psique se apresenta à consciência de forma simbólica, utilizando-se dos símbolos como a linguagem do inconsciente, a sua forma de comunicação.
De acordo com Jung, quando um conteúdo arquetípico se manifesta, ele se apresenta à consciência na forma de um símbolo, que dá voz ao arquétipo codificando uma imagem arquetípica,
Ela [a psique] cria símbolos cuja base é o arquétipo inconsciente e cuja imagem aparentemente provém das ideias que o consciente adquiriu. Os arquétipos são elementos da psique e possuem certa autonomia e energia específica, graças à qual podem atrair os conteúdos do consciente a eles adequados (JUNG, 2013b, p.277). Para Jung (2013a) a expressão nunca é muito clara, pois é uma imagem que descreve da melhor maneira possível algo que ainda não adentrou totalmente a esfera consciente.
O símbolo é uma imagem de algo que ainda não pode ser completamente compreendido. E por isso é apenas pressentido, pois ainda não pode ser expresso em palavras.
Para que algo seja considerado como um símbolo é necessário que a consciência que o observa assuma uma atitude que Jung (2013c) chama de atitude simbólica, ou seja, que exista uma atitude de consciência que se propõe a atribuir um sentido e um significado ao que acontece, onde a compreensão nunca é literal, fundamentado na lógica e na razão. À medida que o símbolo é decodificado ele deixa de ser a melhor expressão para algo que é relativamente desconhecido, e se transforma num signo, numa expressão semiótica, algo destinado a permitir a comunicação entre pessoas. Jung considera que o símbolo, a partir de então, está morto.
Os símbolos têm a função de unir pares de opostos entre consciência e o inconsciente. Fazendo com que o conteúdo inconsciente receba um significado e uma forma à medida que penetra na consciência. Funcionando como transformadores que conduzem a libido de uma forma inferior para uma forma superior, não permitindo a estagnação da energia psíquica. Segundo Jung (2013b) sua atuação acontece de forma convincente graças ao númeno, a energia psíquica intrínseca ao arquétipo, e desta forma ressoa com as camadas mais profundas da alma.
Isso se faz perceber com muito maior clareza nos símbolos coletivos.
Segundo Jacobi (2016) os símbolos coletivos são as produções do espírito humano ao longo de toda a sua história, presentes nas mitologias e religiões, e os símbolos individuais são o resultado da capacidade geradora de símbolos de toda psique individual. No âmbito individual um símbolo pode permanecer como um bem do sujeito, atuando como pontes ente aquilo que se intui vagamente e o que se pode de fato entrar no campo da compreensão. Porém, apenas quando se faz presente o padrão arquetípico universal por traz do padrão individual e ele se transforma num símbolo coletivo, o símbolo exerce seu poder total de liberação e redenção.
A pomba, enquanto símbolo cristão, pode ser considerada um símbolo coletivo, que a psique coletiva apresentou a como imagem arquetípica e que foi integrada ao dogma. Veio das profundezas do inconsciente, e continua trazendo sua mensagem há milhares de anos. Pode-se dizer que a pomba representa muitas vezes aquilo que o homem tem de imorredouro, oi seja, a alma, o princípio vital (Cf. CHEVALIER; GREEMBRANT, 2021).
E a pomba de Picasso?
Segundo Paulino (s.d.), Picasso já havia sido considerado um defensor da paz e liberdade depois de pintar a Guernica em 1937. Segundo ela, sobre a Pomba da Paz ele declarou:
Picasso aprendera a desenhar pombos com o seu pai, e estes sempre lhe remeteram às lembranças de sua infância. A primeira imagem da pomba, antes do nascimento de sua filha era simples, produzida com tinta branca sobre um fundo preto e foi escolhida para ilustrar o cartaz do Congresso Mundial pela Paz pelo escritor surrealista Louis Aragon em uma visita ao seu ateliê.
Ora, ainda segundo Jung:
Picasso estava imerso naquela atmosfera de uma Europa sofrida, destruída pela guerra, que ansiava por paz. É neste momento que se apresenta a pomba branca, como que para Noé em sua arca, trazendo um ramo de oliveira e a mensagem de paz, harmonia, esperança e felicidade recuperada (Cf. CHEVALIER; GHEERBANT, 2021). Por este motivo é possível acreditar que sim, a pomba mais uma vez surgiu como a melhor forma de expressão de um conteúdo inconsciente; que depois foi decodificado, é claro. Mas que naquele momento simbolizava os anseios de um povo, como aconteceu em outros tempos.
Selma de Fátima Silva Canoas – Médica Homeopata e Analista em formação pelo IJEP.
Maria Cristina M. Guarnieri – Analista Didata.
Referências:
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 35. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2021.
JACOBI, Jolande. Complexo, arquétipo e símbolo na psicologia de C. G. Jung. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 2016.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013c
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2014
PAULINO, Roseli. Pomba da Paz – Pablo Picasso. Arte & Artistas, [s.d]. Disponível em: https://arteeartistas.com.br/pomba-da-paz-pablo-picasso/ . Acesso em 21/05/24
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