Este artigo tem o objetivo de investigar a simbologia da Queda e suas homologias míticas, para refletir sobre o atentado terrorista do World Trade Center, no ano de 2001; e a fuga do Afeganistão no ano de 2021. E entender se estes acontecimentos podem ser um pedido ou um chamado do Self para a tomada de consciência.
Os acontecimentos no Afeganistão parecem ter reverberado em grande parte do globo. Na mídia pudemos conferir com mais intensidade informações importantes que já eram disseminadas: antes e depois do domínio do Talibã; a repressão do feminino e das mulheres imposta por esse extremismo político-religioso. Mas, uma cena, em especial, chamou demasiadamente a atenção. Uma cena que há pelo menos 20 anos não se repetia. Por não ser uma cena qualquer e por mais literal e cruel que seja; nela, parece residir um pedido de simbolização, de tomada de consciência.
Essa cena, repetida pela primeira vez no World Trade Center e agora nos aviões internacionais, marcam, talvez, a síntese da megalomania humana neste século. Estamos nos referindo à imagem da Queda, que, no ano de 2001, quem estava no prédio teve que escolher morrer entre ser soterrado pelos escombros ou se jogar dos 110 andares, e, agora em 2021, em Cabul, dois indivíduos, um deles jogador da seleção de futebol de base, ao tentarem fugir do regime do Talibã agarraram-se no avião, mas ao chegar às alturas ambos não suportaram as condições de pressão, altura e temperatura e acabaram despencando em queda livre e morrer.
A Queda não é uma imagem recente, muito menos unicamente literal. De acordo com Joseph Campbell (1990), a Queda é de extrema importância simbólica para as religiões abraâmicas. Com suas devidas diferenças, as três religiões abraâmicas relatam o casal Adão e Eva provando do fruto proibido e sendo expulsos do Jardim do Paraíso. Essa expulsão é considerada uma Queda pelo autor, primeiro porque cria uma cisão entre criador/criatura, que traz para a criatura um reconhecimento da sua pequenez, infinitude e imperfeição; e, consequentemente, provando do fruto proibido, que apesar de poder ser entendido de maneira mais instintiva, sexual e literal, pode também ser entendido como a tomada da consciência e a consciência da consciência.
Parece-nos que o ser humano, esquecendo-se da sua pequenez ou mergulhando nela, provou de uma outra fruta no último século: a do poder. Mas, não qualquer poder, o poder do progresso, o poder da globalização provenientes da razão e do Esclarecimento. Paulo Freire (2018) afirma que o sonho do oprimido é tornar-se opressor. Talvez não seja diferente aqui: o sonho da criatura tem sido tornar-se criador. E por isso mesmo, a criatura buscou incessantemente, por meio da Razão, expulsar qualquer ameaça a essa meta.
No processo mais amplo do progresso do pensamento, o Iluminismo (Esclarecimento) tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade total. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber [racional] (ADORNO & HORKHEIMER, 1985 , p.17).
Os autores são pertinentes em apontar uma meta do Esclarecimento e não um objetivo alcançado. Todo esse processo foi sim uma tentativa de dissolver os deuses e substituir a imaginação, mas o ocorrido foi uma enantiodromia, como diria Heráclito; ou um paradoxo das consequências, como diria Max Weber discorrendo sobre o desencantamento do mundo: os deuses e os mitos transmutaram-se e continuaram a habitar a psique humana.
A modernidade expôs-se, no fundo, como uma estranha melodia, um canto de barbárie outrora inaudível. O que se apresentava fiel à liberdade flertava com grilhões. A igualdade, retocada com colorações abstratas, tornou-se cativa de ditames jurídicos que serviram tão-somente para relegitimar a discriminação. A solidariedade traduziu-se em um assistencialismo instrumental, motor procedimental de perpetuação de todas as formas sistêmicas de agressão (centralizadas ou impessoais), arraigadas na desigualdade. Não por acaso, a razão se converteu em princípio de dominação: a ciência, em novo mito: a técnica e a tecnologia, em objeto de culto diário. O iluminismo se rendeu ao seu contrário: transformou-se em instrumento do poder conservador. O que vigorava como gloriosa bandeira objetiva, por cuja sustentação se mobilizou enorme soma de energia humana em diversas épocas e lugares, revelou-se fábula (TRIVINHO, 2001, p.47).
Retomando a transmutação dos deuses, vale lembrar que Jung (2013) afirma que os deuses tornaram-se doenças. Socialmente falando, não seria incorreto afirmar que a deusa Colúmbia ganhou força desde o Iluminismo, afinal ela é a representante americana do racionalismo totalitário, que implantou as ferrovias europeias na América e trouxe o “progresso e a Palavra” – o liberalismo – para os nativos americanos. Seus adeptos são os famosos e ilustres self made men. Estes, que por sua vez, em prol do capital, usurpam todo e qualquer recurso natural necessário para fazer crescer o patrimônio.
Relembrando a questão da razão, Jung (2014a) (2014b) também aponta-nos algo extremamente importante: é necessário reconhecer que a razão ou a certeza do conhecimento é diferente de possuir consciência: “o conhecimento também produz uma inflação semelhante, em princípio, mas muito mais sutil do ponto de vista psicológico.” (JUNG, 2014b, §228). Isto é, a consciência abarca a racionalidade e a irracionalidade, é integralista; ela considera e pondera; reconhece as consequências de suas decisões e atos visando a ética do Self; e, por isso mesmo, reconhece um erro feito e se transmuta a partir dele. Ter consciência é superar a binariedade de uma psique infantil, no caso, da certeza última de um conhecimento. A consciência verdadeira é a certeza da incerteza; e a incerteza da certeza. Edgar Morin (2007) afirma-nos que todo conhecimento deve estar ao ponto de sua própria destruição, caso contrário, ele tornar-se-ia um dogma.
E quando ideias, religiões, indivíduos confirmam veementemente que são possuidores da verdade última, esta manifesta-se de forma padronizada, a partir do polo destrutivo arquetípico, ultrapassando os limites humanos, “dando origem aos excessos, à presunção (inflação!), à compulsão, à ilusão ou à comoção, tanto no bem como no mal.” (JUNG, 2014a, §110).
Sobre a inflação, na mitologia grega temos o brilhante conceito de húbris – a desmedida –, que é ilustrada muito bem por outra Queda: a do mito de Ícaro – filho de Dédalo –, que ao contrário do pai, simboliza um “intelecto insensato”; “um psiquismo deformado e vaidoso”; “megalomaníaco”. Ícaro, ao escapar do Labirinto do Minotauro com suas asas de cera, não escuta o conselho de seu pai – “nem tanto ao céu, nem tanto ao mar” – e acaba por levantar um voo nas alturas o que faz suas asas derreterem, entrar em queda livre e morrer. Isto é, toda inflação precede uma Queda. (BRANDÃO, 1986).
Simbolicamente, a inflação pode ser também vislumbrada por meio da Torre de Babel, que é uma metáfora do orgulho insensato humano. Isto é, a tentativa do ser humano igualar-se a deus Javeh, que ao perceber tamanho empreendimento, lança um raio sobre a torre, dispersando os construtores e confundindo sua linguagem, separando-os e dividindo-os pelo mundo. No Tarot, o décimo XVI arcano é a Torre – a revelação entre a vontade e a sorte, entre o que se quer e o que acontece. Não se pode negar também que a posição da Queda lembra a do Enforcado, o que rapidamente poderíamos sugerir que a humanidade deve buscar uma nova cosmovisão para o modus vivendi no planeta, se não a culpa coletiva assolará a todos. (Meditações sobre os 22 arcanos maiores do Tarô, p. 440).
Este “o que se quer” deve ser entendido melhor. Devemos antes perguntar: quem quer? Quem é este enforcado? Parece que quem queria, tanto no caso da Torre de Babel quanto para o Ocidente das luzes e globalizado é o ego. Tornamo-nos uma sociedade pautada pelo egocentrismo e pelo individualismo. Não à toa chamamos indivíduos hoje de “colaboradores” – todos trabalham juntos na empresa em prol do seu próprio individualismo. Todos querem sozinhos retornar ao Paraíso de onde caíram ou até ser o Criador de seu próprio paraíso, seja em cargos altíssimos, ilusões de poder ou na cobertura de prédios mega-altos das metrópoles.
Se toda inflação precede a Queda e toda Queda é um pedido de tomada de consciência, vale lembrar, por último, o que Jung (2012) aponta: ”não será a fome, nem terremotos, nem micróbios, nem câncer, mas o próprio homem que será o maior perigo do homem” (JUNG, 2012, p. 76).
Leonardo Torres – Analista Junguiano em Formação pelo IJEP-SP
Analista Didata: Waldemar Magaldi
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia 1. Petrópolis: Vozes, 1986.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2018.
JUNG, C. G., WILHELM, R. O segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014a.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014b.
JUNG, C. G. A Vida Simbólica Petrópolis: Vozes, 2012.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina. 2007.