Resumo: Este ensaio discute a tendência, presente tanto em pacientes quanto em analistas da clínica junguiana, de buscar apressadamente um sentido para os acontecimentos da vida, especialmente aqueles marcados pela desgraça e pela injustiça irredutível. Apoiado em uma perspectiva ética e clínica, o texto sustenta que essa corrida pelo significado — ainda que inspirada em princípios simbólicos ou espirituais — pode representar uma recusa inconsciente em acolher o sofrimento nu e cru do acontecimento. Em vez de aliviar o sofrimento, essa busca pode invalidar a dor e promover uma repressão emocional disfarçada de elaboração simbólica.
O autor argumenta que há um narcisismo velado na tentativa de encontrar imediatamente um “aprendizado” ou “propósito” para eventos como o suicídio, o estupro ou a perda brutal, ignorando a necessidade de sustentar o silêncio, o absurdo e a sombra da experiência. A análise profunda e ética exige a capacidade de suportar os opostos: reconhecer tanto a busca por sentido quanto o peso do sem sentido, sem se render ao conforto ilusório das explicações rápidas. O ensaio adverte contra o risco de transformar o trabalho analítico em romantismo místico e propõe uma postura mais humilde e corajosa diante do sofrimento humano, sustentando o real, o simbólico e o trágico.
Palavras-chave: sofrimento, busca por sentido, narcisismo analítico, simbolismo, dor psíquica, análise junguiana, individuação, misticismo superficial.
Em tempos de inflação simbólica, há uma tendência cada vez mais comum — tanto entre pacientes quanto entre analistas — de interpretar todos os acontecimentos à luz de um possível sentido oculto, como se cada dor precisasse imediatamente de uma função, uma explicação ou um propósito. Tudo precisa significar algo. Tudo precisa ser integrado. Tudo precisa curar. E nessa busca apressada por significado, o acontecimento em si, cru, nu e desgraçado, é muitas vezes ignorado ou violentamente interpretado, como se a dor, para ser legitimada, precisasse logo tornar-se metáfora.
É verdade que a psicologia analítica se baseia numa visão simbólica da psique, e que muitos sintomas, sonhos, atitudes e experiências podem, sim, carregar sentidos profundos. Mas também é verdade que nem tudo pode — nem deve — ser interpretado de imediato. Há acontecimentos que precisam ser simplesmente reconhecidos como desgraças. Como realidades psíquicas e existenciais que, por um tempo, não se deixam transformar, redimir ou simbolizar.
Carl Gustav Jung nos alertou: “O objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade, mas sim possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento” (JUNG, A Prática da Psicoterapia, OC XVI/1, §185).
Essa firmeza exige do analista algo que talvez seja mais difícil do que oferecer explicações: suportar o silêncio. Sustentar o não saber. Tolerar o peso do acontecimento sem buscar alívio imediato na espiritualização ou na sublimação.
É preciso lembrar que nem toda dor é transitória ou transformável.
Algumas dores, como as provenientes de acontecimentos graves, são como fissuras permanentes na alma, e o gesto mais humano diante delas é o acolhimento, não a decifração. Diante de questões severas — como um abuso sexual, um estupro coletivo, uma morte trágica de um filho, a devastação causada por uma doença incurável ou a dor silenciosa e crônica da ideação suicida —, qualquer tentativa apressada de simbolização pode se transformar em uma forma sutil de violência. Como se disséssemos àquela pessoa: “Entendo sua dor, veja como ela tem um propósito elevado”. Mas a verdade é que não entendemos. E tentar entender cedo demais, com boas intenções, pode nos colocar exatamente no lugar do analista inflado, tomado por uma onipotência simbólica que deseja aliviar mais a si mesmo do que ao outro.
Há uma arrogância disfarçada de espiritualidade nesse movimento. Um narcisismo analítico que recorre à busca por sentido como um modo de se proteger da angústia.
Porque sustentar o sofrimento injusto do outro sem resposta é insuportável para muitos psicoterapeutas. Jung escreveu que a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e alegria, e que “por trás da neurose se esconde todo o sofrimento natural e necessário que não se está disposto a suportar” (JUNG, A Prática da Psicoterapia, OC XVI/1, §185).
Poderíamos dizer que, por trás de muitos esforços interpretativos, esconde-se a recusa do analista em sustentar a própria impotência.
Mas a experiência clínica demonstra que há momentos em que nenhum símbolo redime, nenhum arquétipo consola e nenhuma função transcendente se manifesta. Há momentos em que o analista deve se despir de suas teorias e técnicas, para permanecer apenas como presença humana diante daquilo que não se compreende. Jung reconheceu esse perigo quando afirmou que há momentos em que mergulhamos numa profundidade onde “todas as muletas e arrimos são quebrados”, e é ali que talvez se manifeste o arquétipo do sentido, “até então oculto na significativa falta de sentido […]” (JUNG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, OC IX/1, §66). Mas a vivência desse arquétipo, antes de ser revelação, é colapso. É como “uma morte voluntária”, forçada por uma vida que não se explica.
Essa morte simbólica exige do analista não uma resposta, mas uma travessia compartilhada.
Uma escuta que reconhece a brutalidade da vida e não a camufla com poesia. Uma escuta que não exige do paciente a performance do resiliente. Porque há dor que não edifica. Há sofrimento que não amadurece. Há feridas que não viram cicatriz, mas que se tornam abismos habitáveis — desde que alguém permaneça ali conosco.
A escuta analítica, quando madura, não tenta suprimir essa ausência de sentido com respostas apressadas. Ela não busca anestesiar a dor do outro com beleza simbólica. Ao contrário, ela reconhece a necessidade paradoxal de sustentar os opostos: acolher tanto a busca por sentido quanto a total falta dele. Jung foi enfático: “a totalidade, a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e alegria” (JUNG, A Prática da Psicoterapia, OC XVI/1, §185). E mais ainda: “a paixão do ego, ou seja, do homem empírico implica sofrimento, sendo ele como que violentado pelo Si-mesmo” (JUNG, Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade, OC XI, §233).
Portanto, o sofrimento que não faz sentido é, ainda assim, parte da totalidade. E o analista deve ter coragem para olhar para ele com humildade.
Porque se não o fizer, corre o risco de transformar a análise num romantismo espiritual, num misticismo superficial que não resiste ao primeiro vento de inverno. E esse risco não é apenas teórico: ele é clínico, prático, cotidiano. Ele se manifesta quando um paciente começa a ocultar sua dor por perceber que sua verdade bruta não cabe mais na escuta do analista. Quando, mesmo sem querer, o analista estabelece a expectativa de que o sofrimento só será aceito se vier acompanhado de uma iluminação.
Jung nos ensinou: “Um sofrimento incompreensível é difícil de suportar, ao passo que é espantoso ver, com frequência, o que um indivíduo é capaz de aguentar quando entende a razão e a finalidade do seu padecimento” (JUNG, A Vida Simbólica, OC XVIII/2, §1.578).
No entanto, isso só acontece quando a razão é vivida, não imposta. Quando o sentido emerge, e não é fabricado pelo desejo do analista. Quando ele vem como consequência da travessia, e não como forma de evitá-la.
É preciso lembrar: nem todo acontecimento precisa ser simbolizado. Nem toda dor precisa ser metaforizada. Algumas dores precisam ser acolhidas apenas como dores, eventos do destino que nos quebram, e que não podem — e talvez não devam — ser interpretados imediatamente. E isso não significa cair no niilismo, mas sim honrar o mistério. Há uma força na escuridão não explicada. Jung chegou a dizer que a dor no coração de um paciente era a dor da alma que ele se recusava a sentir, e que o sintoma físico só desapareceu quando ele chorou (JUNG, A Natureza da Psique, OC VIII/2, § 303). Ou seja, às vezes não é a interpretação, mas a vivência direta da dor é que traz algo para o indivíduo. Porém nem todos estão preparados para sustentar essa vivência.
Muitos analistas, especialmente os mais jovens ou inseguros, buscam em suas formações um abrigo contra a angústia do real.
E transformam a escuta em um campo de garantias, onde o símbolo precisa aparecer, onde a redenção precisa acontecer, onde a história do paciente precisa, de algum modo, terminar bem. Como se pudessem, amparados por uma metodologia infértil e um desejo infantil, aprisionar as Moiras e definir o destino a ser fiado — o que nem os deuses olímpicos se atreviam a tentar. Esse otimismo forçado — às vezes travestido de espiritualidade — é um desserviço à alma em dor. Porque a alma pede verdade. Mesmo que a verdade seja insuportável. Mesmo que a verdade seja que nada fez sentido. E essa é uma verdade que pode e deve ser sustentada.
Jung insistia que o inconsciente não era apenas o reservatório de conteúdos reprimidos, mas também o campo onde se gestam os futuros conteúdos da consciência. E, como tal, é um campo que inclui o trágico, o absurdo, o injustificável. A psique não é só luz, ela é também sombra; não é só sentido, é também nonsense. Não reconhecer essa ambivalência é trair a própria alma.
É legítimo e até necessário que a análise busque sentido. Mas essa busca precisa ser atravessada pela humildade do não saber, pela capacidade de sustentar aquilo que ainda não se simbolizou, aquilo que talvez jamais se simbolize. Porque se a análise corre apressada para encontrar um “para quê?” em tudo, corre também o risco de abandonar o “isso aconteceu”, que é o ponto de partida — e muitas vezes também o ponto de chegada — de quem viveu um horror.
Por fim, cabe também lembrar: uma análise que ignora a dor do acontecimento em nome do símbolo corre o risco de se tornar cúmplice da repressão.
E como nos adverte Jung, os conteúdos que não são acolhidos pela consciência retornam como sintomas (JUNG, A Natureza da Psique, OC VIII/2, §702). Por exemplo, como rancor, revolta, desconfiança ou até mesmo desistência do processo analítico. A dor não acolhida se transforma em sombra — e, na clínica, pode se tornar silêncio. Um silêncio que se distancia. Um silêncio que desiste.
Dessa forma, o verdadeiro trabalho analítico exige uma coragem rara: a de escutar a dor sem explicá-la. De acompanhar o outro no abismo, sem a pressa de fechá-lo com uma ponte simbólica frágil. E, sobretudo, de reconhecer que, em certos momentos, o maior gesto de cuidado é simplesmente estar ali — presente, vivo, humano — ao lado de quem sofre, sem tentar aliviar a dor, mas apenas sustentá-la junto, com respeito, firmeza e, principalmente, amor. Afinal, a vida não é um problema, é um mistério. Os problemas, nós conseguimos resolver. Os mistérios, apenas viver.
Leandro Scapellato – Membro Analista em formação/IJEP
Waldemar Magaldi – Membro Analista Didata/IJEP
Referências:
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, Carl Gustav. Interpretação psicológica do dogma da Trindade. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

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