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Aceito logo crio

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O tempo nos impele de um lado, com a sensação de pressa constante e de outro, as duras penas, nos faz entender que nossos processos de vida muitas vezes não podem ser acelerados. Receber e elaborar as adversidades que se apresentam a todo momento sem abandonar nosso mundo interior, pode se tornar um gigantesco desafio.

A fantasia de controle acaba quando uma vida se interrompe da noite para o dia, quando um corpo antes saudável se apresenta enfermo, quando a natureza escancara suas forças promovendo catástrofes, ou até mesmo nas dificuldades  que surgem de pequenas intercorrências do dia a dia, enfim, quando a imprevisibilidade fala mais alto e o caos pode se instalar. 

Os sentidos nos auxiliam na percepção do que está a nossa volta e em nosso interior, favorecendo uma conexão relevante entre emoção e imaginação, podendo levar a inúmeras experiências de transformação. 

Proponho aqui uma breve ampliação, na tentativa de farejar um consenso na relação entre aceitação e criatividade 

Pelo fato da Criatividade ser considerada uma qualidade inerente ao ser humano, sugere sempre um potencial a ser realizado. Deixa de ser compreendida apenas como um desdobramento do conceito de inteligência para se destacar em diversas teorias, desde o surgimento de uma ideia original ou aperfeiçoamento, até uma capacidade de ampliação da personalidade. (CARVALHO 2012)

O dicionário junguiano (2002, p.135) entende a criatividade como ” ato ou processo autêntico, e só secundariamente artístico”.

Jung, (2009a) compreende a criatividade como uma essência viva no sujeito, que deve ser entendida como um complexo autônomo, que surge e desaparece de acordo com sua própria tendência. 

O autor entende que o sujeito é dominado pelo impulso criador, relacionando o conceito de instinto com a criação, onde o impulso à ação seria sua definição de instinto, ” processos inconscientes e herdados que se repetem uniformemente e com regularidade por toda a parte” (JUNG,1919/1984b, 267)

As atitudes frente a tudo o que é apresentado pela vida irão impactar positiva ou negativamente, definindo nossa maneira de ” estar no mundo “.  Entendemos assim o efeito de aceitar – substantivo feminino, que tem o ato ou efeito de anuir, com acolhimento e receptividade. 

E nas exigências internas e externas da vida, aceitar o quê? Como?

Primeiramente, entendo que aceitar vai muito além do consentir, do concordar, tampouco do    resignar. Refiro-me a aceitação atrelada a algo maior, que nasce da permeabilidade de conteúdos do inconsciente para a consciência. 

Como humanos evoluímos na capacidade cerebral neocortical, nos tornando os únicos seres capazes de refletir e questionar. Neste ponto é que penso na aceitação, pois a capacidade reflexiva nos coloca numa posição de vantagem para lidar com a angústia. Está última, pode impactar negativamente -através do medo e paralisação, ou do anestesiamento – com os fármacos e infinitas patologias. Porém, nesta evolução também somos capazes de total entrega aos mistérios da vida, se usufruirmos do potencial de abstração e simbolização alcançando algo de novo em nosso caminho: criação 

Para Kast (2016) ficamos decepcionados quando por muitas vezes, aquilo que esperamos não acontece ou se apresenta muito diferente do esperado, onde a expectativa é uma postura de imaginação alimentada pela esperança, e ao citar Jung nos faz lembrar que falta ao homem a capacidade de perceber o significado da vida.

Na mitologia, o suposto filho caçula de Zeus, Kairós era o responsável pelo momento oportuno, momento bom. É preciso que se perceba este momento para agir, momento

este que está presente em todas as áreas da vida. Neste processo existe a necessidade de abandonar o domínio da razão e se entregar a intuição, percebendo possibilidades do ” vir a ser” (KAST 2016)

Ainda em Kast (2016), temos a importante necessidade de vivenciar o presente, sem abdicar do propósito e do desejo de criar o que está por vir. O sentido ou propósito aparece quando compreendemos o mundo de forma simbólica, pois os símbolos representam a situação concreta e real, embora possam remeter a um significado transcendente da experiência. 

A não aceitação nos coloca de encontro a situações catastróficas; assim aquele que aceita está mais próximo de transformar sua vida. Independente do desafio que se apresenta, o posicionamento escolhido permitirá ou não o desprendimento daquilo que se perdeu, que ficou para trás, abrindo- se para a renovação em si mesmo e também na vida.

Aceitar não significa se submeter passivamente, é sobre compreender. Para Kast (2016), é possível ser resiliente e ter condições de lidar com os reveses da vida, aprendendo a confiar em nossa capacidade de trabalhar de forma criativa com situações difíceis, bem como compreender os desígnios do self

Penso que a não aceitação nos leva ao processo inverso da evolução, regredindo ao cérebro reptiliano, onde as necessidades básicas de sobrevivência são suficientes, nos aprisionando em uma ” zona de conforto “.

Na entrega para o desconforto, para a frustração e para angústia, entendo que despertamos para novos interesses e estes podem nos conduzir firme e assertivamente na direção de processos criativos.

O ato de criar é uma maneira de reorganizar a própria experiência interna, em direção a novos insights sobre a mesma realidade. Para Storr (1993), citado por Carvalho (2012) o indivíduo criativo tende a sofrer menos, por ter maior capacidade de lidar com suas tensões interiores. Enfatiza ainda, que o trabalho criativo protege o sujeito de um adoecimento psíquico. 

Fica claro que toda a vida é repleta de possibilidades de mudança, desde que exista o genuíno desejo para tal, um impulso ou necessidade de se arriscar a uma nova visão do mundo bem como da própria vida.

Entender a criação neste contexto não alcança compreender a produção de algo próximo a ” obra prima’, mas a criação de algo que afete direta e positivamente a forma de viver. Dessa forma, o indivíduo que se esforça, respeitando suas características únicas, seguirá em direção as existentes formas de superação, utilizando-se de todo seu potencial criativo para produzir novas visões e comportamentos em relação a variedade de situações. 

Dentro dessa ideia de aceitação, forma-se um canal estreito com o processo criativo, aumentando as chances de mudanças, muito embora conscientes que mudanças significativas raramente são rápidas e simples. Quando o indivíduo se transforma, todas as áreas da sua vida são afetadas, modificando sua forma de se relacionar com o outro e consigo mesmo.

Enfim, conciliar este processo me parece que está além da resiliência, da

flexibilidade e de uma boa dose de paciência; é exigido de nós, a coragem da entrega sem garantias. A força geradora que nos faz compreender para aceitar, escancara imediatamente as portas da Criatividade. 

Pensei neste exato momento, no filme: ” O poço ” (2019), onde descer e aprofundar parecia ser o único caminho, onde o irracional poderia conduzir a algo transformador, e a doçura da sobremesa ” panacota”, podendo representar de um simples prazer até o ponto máximo da liberdade. 

Patrícia Moura Vernalha– Membro analista em formação do IJEP

Analista Didata – Waldemar Magaldi

Referências

 CARVALHO, OLAVO – Criatividade e abertura de espaço: Um estudo Junguiano –

Dissertação para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC SP  77p. 2012

 JUNG, C G. Instinto e inconsciente [1919] in Natureza da psique, OC volume VIII. Petrópolis: Vozes, 1984 

 JUNG, C G. Relação da Psicologia Analítica com a obra de arte poética [1922] in

O Espírito da arte na ciência, OC volume XV. Petrópolis: Vozes, 2009

 KAST, VERENA: A alma precisa de tempo: Vozes, 2016

 O Poço.  Direção: Galder Gaztelu – Urrutia. Roteiro: David Desola, Pedro Rivero.

País: Espanha Distribuição: Netflix 2019

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