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Afrodite não está no espelho: uma crítica aos padrões estéticos da contemporaneidade

Afrodite não está no espelho: uma crítica aos padrões estéticos da contemporaneidade

Afrodite não está no espelho: uma crítica aos padrões estéticos da contemporaneidade

A beleza não tem usado espelhos, não possui perfil nas redes sociais, não está na décima segunda cirurgia de plástica. Na arte, Afrodite aparece tão pouco e ainda mesmo não é percebida. A beleza sumiu do mundo. Afrodite, a dourada, a deusa da beleza, do amor, dos beijos mais doces, fugiu do mundo. E aqui estamos nós, procurando-a. 

A beleza ou Afrodite é fugitiva por culpa nossa; estamos presos em movimentos grandiosos. Movimentos esses que tentaram enquadrar Afrodite neles. Afrodite não cabe nas enormidades que criamos. Não porque ela é maior, mas porque ela é imensurável. Afrodite ou a beleza não cabe ao racionalismo ou ao padronismo. Quanto mais curtidas uma arte, uma foto, um perfil possuem, mais longe Afrodite estará.

Da arte às revistas de “beleza”, aos filtros das redes sociais, às cirurgias plásticas extremas. Afrodite não está mais aqui. Não à toa existe uma enorme variedade de definição do conceito de beleza na história e no mundo. Todas respondem, ninguém acerta. Afinal, quem conseguiria flechar a mãe do maior arqueiro de todos? Que Apolo me desculpe. 

Afrodite ou a beleza não pertence aos olhos de quem vê, nem mesmo ao objeto visto, mas a ela mesma.

Por isso é tão difícil de conceber a beleza. Beleza é beleza. Assim, este artigo não tem a pretensão de conceituar beleza, mas apontar onde ela não está.

A qualidade generalizante deste artigo é necessária. Não estou aqui apontando que a soma total dos indivíduos está cooptada pelos padrões estéticos. Minha intenção é apontar que a alma coletiva está sofrendo da doença dos padrões estéticos, sendo mais ou menos aparente nos indivíduos.

Não quero me delongar nas consequências da fuga de Afrodite nas discussões políticas, sociais e ambientais. Certamente elas são importantes, porém não cabem em um único artigo. Hoje detenho-me em apontar as consequências da fuga no corpo e na imagem visual do corpo. 

A humanidade hoje possui uma extrema deficiência em viver a aisthesis (estética) do corpo.

A estética do corpo hoje nos remete erroneamente às ideais: visualidade e padrão de beleza. A palavra estética provém da palavra aisthesis– capacidade de sentir o mundo, compreendê-lo pelos sentidos, é o exercício das sensações. Portanto, a estética do corpo nada mais é do que a capacidade de se sentir corpo e compreender-se pelos sentidos. Devemos lembrar que alma também é corpo. Se o corpo sai de cena, a alma também sai.

Nem mesmo o atleta conhece isso. O atleta busca enormidades e grandiosidades. Ele conhece o corpo de forma mecânica e quebra recordes com isso, mas não faz maravilhas. Nunca mais apareceu um Garrincha, pois Afrodite sumiu e as abstrações entraram: números de otimização e de performance. O mais importante é ganhar. 

A visualidade e o padrão não são inimigos, tornam-se inimigos no momento que tendem ao enormismo. Como aponta James Hillman, tudo o que é enorme é feio. O enorme aqui empregado pelo autor é algo que não possui finitude. Esse enorme é compulsivo, obsessivo, não possui limites. 

Devemos abstrair de forma última em prol da otimização. Um rosto deve possuir tais e tais medidas; o corpo deve ser liso, sedoso, sem pelos; manchas e pintas são inaceitáveis; os órgãos genitais devem possuir determinada cor, formato e tamanho. O sexo atualmente é visual e padronizado. Foi cooptado pela imagem visual do sexo da atualidade: a pornografia. O grande fenômeno disso é, sem dúvidas, a pornografia – um lugar onde Afrodite jamais pisou.

Como é difícil alguém olhar no espelho hoje e a beleza estar lá.

A voz que chega não é a da beleza ou de Afrodite. A imagem visual do corpo foi cooptada pelo enormismo sem limites. A palavra abstração, vale lembrar, sempre é uma subtração. E o que foi subtraído nessa dinâmica foi a beleza, a aisthesis, o corpo e a alma. 

Em troca, a abstração nos traz números: quilos, gramas, centímetros, metros – que leva a uma busca errônea pela harmonia. Curioso é aquele procedimento de “harmonização facial”. Melhor seria se fosse chamado de “padronização capitalista facial”. Na mitologia, Harmonia é filha de Afrodite. Se a deusa se foi, como poderia conceber a filha?

Se a beleza se exibe por meio da aisthesis do corpo (cheiros, gostos, visões, texturas, músicas) e a harmonia nasce dela e estamos a cada dia mais distantes delas pois estamos subtraindo-as, quem estaria falando em nossos ouvidos quando estamos diante do espelho? Os seres do enormismo são os titãs. 

Aquilo que a humanidade atualmente entende por beleza não é de forma alguma beleza, é compulsão e obsessão.

Grande parte da humanidade vive hoje uma epidemia psíquica de transtorno compulsivo obsessivo. 

A psicologia profunda não pode mais deter-se somente à análise do indivíduo. É necessária uma análise da coletividade. Não podemos somente conceber que existe uma fraqueza ou um defeito em nós sem antes duvidarmos da inquestionabilidade dos padrões coletivos. 

Retornamos ao titanismo. Por estar ligado à abstração padronizante, não faz parte do nosso mundo, portanto, não possui limites. É uma voz que vem do Tártaro, um lugar mais abaixo do submundo; na minha imaginação, mais infernal do que o inferno. 

Por não possuir limites, o limite é reprimido quando vem as vozes novamente: “só vai ser mais esse procedimento e pronto”; “só menos um quilinho” e parece que jamais acabará. 

Será possível deixarmos de confundir a voz dos titãs com a de Afrodite? É um desejo meu. Afinal, o enormismo desvirtua-nos da alma, ameaçando nossa saúde mental e física.

A obsessão por padrões de beleza abstratos, promovidos por indústrias e pela mídia, cria um delírio coletivo, que chamamos de realidade, em que a beleza foge e restam os números, medidas e conformidade com normas inatingíveis. É dever da psicologia profunda acompanhar a humanidade no questionamento dos padrões coletivos e feiosconvidando novamente Afrodite para o nosso mundo. 

Leonardo Torres – Membro analista em formação

Waldemar Magaldi – Membro didata

Referências: 

HILLMAN, James. Cidade e Alma. São Paulo: Studio Nobel,1993. 

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