O que significa a palavra sofrimento? Conforme a etimologia da palavra, vale destacar o que foi encontrado em pesquisa para este artigo:
“Sofrimento é uma palavra formada dentro da língua portuguesa e registada desde o século XVI. […] Sofrer, palavra registada desde o século XIII, provém de ‘sufférere‘, forma evoluída (ou paralela) do latim clássico ‘suferre‘, que significava:
- 1 – Suportar; sofrer; resistir;
- 2 – Incorrer num castigo, suportar um castigo, ser condenado a;
- 3 – Se sufferre – manter-se.”[1]
Logo, compreendemos que, quem sofre está designado a passar por algo, suportar e resistir, manter-se.
Quem sofre “de alguma coisa” ou “por alguma coisa”, se submete de algum modo à imposição de um processo. No mundo dos materiais, por exemplo, para que se produza um objeto qualquer, a matéria prima “sofre” um processo de transformação, de mutação para se chegar a um resultado. É claro que conosco, seres humanos, há uma diferença, tanto no que concerne ao processo, quando no que diz respeito ao resultado final, mas para chegarmos por exemplo à vida adulta, como pessoas atuantes em sociedade, com desígnios e trabalhos os mais diversos.
Sofremos também um processo de crescimento, de desenvolvimento que nos leva a uma série de transformações e de mudanças, tanto internas quanto externas, nas nossas relações, em nosso corpo em nossos valores. Não podemos escolher não passar por isso. É natural, se tentamos não passar por este processo, sofremos ainda mais, pois estamos sendo contrários a uma lei da vida. Mas isso todo mundo já sabe, não é?
Mas o que tudo isso tem a ver com a psicologia analítica e como este sofrimento humano é compreendido neste contexto? A visão do sofrimento na psicologia analítica é um termo que pode suscitar diversos debates e conversas. Trata-se de algo muito complexo, que não pretendo esgotar neste artigo. A proposta aqui é reflexiva, para que futuras discussões e maiores aprofundamentos possam acontecer.
Por que sofremos?
Ao pensarmos em nossa cultura judaica cristã, encontramos nas histórias bíblicas que influenciam o nosso pensar ocidental, um conjunto de mitos e referências, como heranças arquetípicas que de algum modo, nos colocam desde nosso nascimento em uma posição de devedores. No livro do Gênesis, Adão e Eva, ao incorrerem no pecado original, deixaram para a humanidade o sofrimento e a vergonha, como castigos pelo erro cometido de querer “ser Deus”.
O pecado original é a base cristã no ocidente, a partir da qual somos levados a confrontar uma questão que perpassa toda teoria junguiana, o bem e o mal, a dualidade do poder de Deus sobre os homens e a origem do sofrimento psíquico.
O mal existe em nós como a sombra de uma culpa, como já dito, proveniente do pecado original e depois, pela dívida gerada na compaixão do sacrifício e morte de Cristo – filho de Deus, feito homem – que morreu para salvar toda a humanidade. Já não bastava Adão e Eva!
Este elemento dual que gera paradoxos, está presente nas narrativas religiosas, mitos e contos, sendo essa uma batalha à qual nosso sistema psíquico está submetido. Este sofrimento pode se manifestar de diversas formas, como doença física, dor emocional, perda, ou desafios difíceis. Como uma experiência humana universal, logo, arquetípica, pode afetar o indivíduo e o meio que o cerca.
O homem sempre buscou formas diversas de encarar e de suportar o sofrimento.
Não podemos esquecer que atualmente há uma ode a situações que leve os seres humanos à alegria constante, por meio de uma ditadura da felicidade. Tudo que possa remeter o ser humano à dor, sofrimento e tristeza precisa ser banido, como se isso não fosse algo legítimo ou importante. Claro que não é agradável sentir-se triste, deprimido, inadequado, mas é inevitável. A busca de compreensão destes sentimentos são a base para que se possa compreender e suportar o sofrimento ao qual se está exposto. Encontrar significado nas adversidades pode trazer determinação e coragem para se passar pelo processo de sofrimento de uma maneira mais digna e, porque não dizer, natural. Segundo Jung (2013a):
Lamentavelmente é verdade que nosso mundo e vida consistem em opostos inexoráveis: dia e noite, bem-estar e sofrimento, nascimento e morte, bem e mal.
E sequer temos certeza se um compensa o outro: se o bem compensa o mal, se a alegria compensa a dor. A vida e o mundo são um campo de batalha, sempre o foram e sempre o serão. E se assim não fosse, a existência logo teria um fim. Um estado de perfeito equilíbrio não existe em lugar nenhum. (JUNG, 2013a. §564)
De qualquer forma, o sofrimento aponta que existe algo em nossa alma que está em conflito, em oposição. A dificuldade de enxergar o que está no lado oposto à dinâmica da consciência dispara uma série de consequências como: projeção do conteúdo sombrio em pessoas ou grupos, adoecimento físico, sintomas emocionais como depressão, angústia e ansiedade. É triste ver como este comportamento unilateral está tão dominante na nossa sociedade que na educação de nossos jovens a possibilidade de simbolização se perde a cada dia.
As iniciativas de quebras de regras e de busca de uma identidade, viraram uma série de comportamentos de risco, sem uma compreensão de que este comportamento pode fazer parte de um importante ritual de passagem da vida adolescente para a adulta, o que sem dúvidas, traz dor e sofrimento – mas com sentido. Ou então esse jovem se isola e vive uma vida somente nas telas, o que traz consequências desastrosas.
Nossos jovens estão expostos a uma mídia eletrônica viciante e entorpecente. Vinculados a imagens de relacionamentos falsos, validados por “likes”, ou invalidados por “cancelamentos” – o que já foi causa de mortes por suicídio inclusive.
Estas jovens almas não são orientadas e educadas para enfrentar as diversidades.
O mundo fake de youtubers e influencers, exerce sobre eles uma capacidade de influência que substitui por vezes a autoridade positiva dos pais, assim como o não contato e nem confronto com o mundo real. Quando compreendemos o sofrimento, como perdas, frustrações, e decepções como singular na vida de cada um e com sentido de evolução, passamos compreender que isto faz parte do humano e ajuda a amadurecer.
O cenário, portanto, é o seguinte:
- Crianças que não podem ser repreendidas, pois há uma insegurança dos pais sobre qual é o limite da bronca. Têm medo de traumatizar e geram com isso possíveis jovens e adultos inseguros e incapazes de lidar com suas próprias dores e frustrações;
- Jovens que fantasiam a partir de mídias sociais um mundo perfeito e absolutamente feliz. Rejeição, preconceito (de várias naturezas) e frustrações são resolvidos com likes, cancelamentos ou infelizmente, com catástrofes;
- Adultos que, de algum modo, são os cuidares parentais destes dois grupos anteriores, buscando sucesso a qualquer preço e quando não alcançam sentem o fracasso como uma culpa gigante, pois seguem na contramão da imposição do padrão social vigente. Tem algo de muito errado com ele.
Sofremos pelo bem ou sofremos pelo mal?
Este é o cenário em que temos um mundo absolutamente dividido. Com uma moral frágil e pautada em valores destorcidos gerando comportamentos intolerantes e de afastamento. O mal está no outro, que não é, pensa ou atua como eu. A salvação desta situação é projetada em líderes absolutamente autoritários (políticos, religiosos, empresariais) e que estão longe de serem uma referência positiva em termos de posicionamentos equilibrados e de alteridade. Cria-se um círculo vicioso e perigoso para a nossa consciência coletiva, o que gera em contrapartida uma sombra coletiva imensa e perigosa e destrutiva.
A questão da polarização entre o bem e o mal foi extensamente discutida na obra de Jung.
Em Resposta a Jó, Jung (1990) diz que a dualidade ou o paradoxo de Deus vem da premissa de que bem e mal se contrapõe igualmente. Nesta obra, ele contesta a ideia de privatio boni[2] entendendo que o bem e o mal estão presentes na imagem que ele concebe de Deus.
Jung continua dizendo que, sendo o Cristo religioso monoteísta, faz sentido que os opostos estejam então presentes em Deus. E daí vem a reflexão: se somos feitos à imagem e semelhança de Deus, poque negamos o mal? Por que negamos a capacidade de gerar sofrimento para nós e para outros? Seria Cristo a possibilidade de redenção de Javé? Há muito a se pensar…
Fica difícil em mundo tão literal e polarizado, com o rigor de estados urgentes de felicidade, pensar que o sofrimento existe como parte do entendimento do sentido da vida e como oportunidade para crescimento e consequentemente para o processo de individuação. Pode-se entender como passar pelo sofrimento opera na pisque a partir da visão de uma jornada heroica. Nenhum herói, seja nos contos ou nos mitos, dos mais antigos aos mais modernos, atinge o seu objetivo, sem passar por uma boa dose de percalços e desafios, que o fazem sofrer. Não estou falando aqui de uma imagem pasteurizada de herói, mas sim do sentido arquetípico deste termo.
Segundo Jung (2016):
Conversando com as imagens do sofrimento
Em nossos sonhos – que segundo Jung são um caminho para o inconsciente – várias imagens são desordenadamente apresentadas ao sonhador, com narrativas caóticas e com pouco sentido à luz da consciência, mas com um valor simbólico absolutamente necessário para que compreenda o sentido e as mensagens cifradas contidas nestas narrativas. Esta é a função compensatória dos sonhos, conforme diz Jung (2016): “O que acontece na fantasia portanto é compensação para o estado ou a disposição do consciente. Esta é a regra nos sonhos.” (JUNG, 2016, § 469).
Portanto, podemos compreender os sonhos como oportunidades para uma conversa entre os universos consciente e inconsciente.
Desse modo, escutar e buscar o entendimento e a integração destas imagens são um caminho para se compreender o sentido da vida, bem como dos nossos sofrimentos. São as imagens simbólicas que, carregadas de sentido podem fazer esta ponte com a vida consciente do individuo e trazer sentido e compreensão para os males que o acometem. O processo terapêutico é um espaço de escuta e de contato com estes medos, receios, fantasmas e fantasias de forma segura. Para Jung o espaço psicoterapêutico acontece em um movimento dialético entre duas pisques – a do paciente e a do psicoterapeuta. Neste espaço, o objetivo da psicoterapia é identificar os complexos e suas consequências, pois, por sua qualidade autônoma, eles não se submetem à vontade e controle do ego e da consciência. Segundo Jung (2013b):
Tomar consciência desta dualidade que é arquetípica na formação do ser humano, é ponto de partida para conseguir lidar com o significado e com as consequências do sofrimento. Há muitos recursos terapêuticos possíveis para esta conversa acontecer de modo que, o indivíduo possa se aproximar e se aprofundar nas suas imagens. Jung considerava de alto valor o desenho, a pintura a modelagem no processo terapêutico como formas de ampliação dos símbolos e das imagens associadas aos sonhos e às questões trazidas por seus clientes.
Sofrimento tem cura?
É muito difícil responder esta questão, à luz da psicologia analítica, uma vez que entendemos que a vida acontece por etapas e por ciclos. Não há condição estanque na vida. A energia está sempre em fluxo e condições adversas, acerca das quais nossa racionalidade e consciência não tem o menor controle, podem acontecer a qualquer momento. Compreendo que saber o significado de sua existência ajuda sem dúvida a suportar estas novas situações, de um lugar mais sereno, mas cura, é algo muito grande para uma questão humana e arquetípica.
No processo analítico, a compreensão do sofrimento do indivíduo permite encontrar maneiras eficazes de compreendê-lo e superá-lo. O sofrimento pode ser uma oportunidade, um convite para uma reorientação desta energia retida na dor, para a transformação em uma nova atitude, mais consciente e por que não dizer, criativa. Ao enfrentar desafios, podemos descobrir novas perspectivas, e desenvolver uma maior compreensão de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.
Não se pode esquecer que a jornada é única para cada indivíduo.
A dialética que acontece no processo analítico, citada por Jung e já comentada anteriormente, é uma conversa que gera transformação e movimento nas duas psiques presentes no encontro. Ele ressalta que a personalidade do terapeuta, a forma como este cuida do seu próprio processo de desenvolvimento e de autoconhecimento, é de importância fundamental para o processo terapêutico.
Na obra A Prática da Psicoterapia (2013b), ao discutir sobre métodos e atitude profissional, ele ressalta – aliás em toda obra – a importância do fator humano neste processo. Técnicas, teorias e visões de mundo são auxiliares e não o objetivo do processo.
O grande fator de cura, na psicoterapia é a personalidade do médico – esta não é dada a priori; conquista-se com muito esforço, mas não é um esquema doutrinário. As teorias são inevitáveis, mas não passam de meios auxiliares. Assim que se transformam em dogmas, isso significa que uma dúvida interna está sendo abafada.
É necessário um grande número de pontos de vista teóricos para produzir, ainda que aproximadamente, uma imagem da multiplicidade da alma.
Por isso é que se comete um grande erro quando se acusa a psicoterapia de não ser capaz de unificar suas próprias teorias. (JUNG, 2013b, § 198)
Para concluir, como visão de cura para o sofrimento, entende-se que na prática da psicoterapia junguiana o caminho está na busca de ser quem de fato se é, o mais livre que se possa estar de projeções, de manifestações inconscientes sem sentido com sua vida, aceitando que determinadas questões às vezes não serão totalmente suprimidas ou retiradas.
Teremos sempre complexos, sombras, paradoxos, mas estes não necessariamente precisam ser inimigos ou geradores de grandes sofrimentos para nós e para os demais. Jung nos diz que a felicidade está em nossa capacidade de suportar com firmeza e paciência filosóficas o sofrimento. Enquanto isso não acontece a realização da totalidade e da plenitude da vida estará comprometida. É disso que trata, entre tantas coisas mais, o processo de individuação.
Gilmara Marques Fadim Alves – Analista em formação IJEP
Maria Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP
Referências:
JUNG, C. G. – A prática da Psicoterapia. Ed. Digital. Vol. XVI/1. Petrópolis: Vozes, 2013a.
__________ – A vida Simbólica. 7ª ed. Vol. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 2013b.
__________ – Resposta a Jó. 3ª ed. Vol. XI/4. Petrópolis: Vozes, 1990.
__________ – Símbolos da Transformação. Ed. Digital. Vol. V. Petrópolis: Vozes, 2016.
[1] in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/sofrimento–felicidade/15793 [consultado em 01-05-2024]
[2] Doutrina cristã, onde o mal é entendido como ausência do bem.
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