A arteterapia ainda é pouco conhecida do público. Apesar da sonoridade de seu nome levar a um lugar familiar, muitas vezes acaba se confundindo sua finalidade. Para além de produzir obras de arte, a função da arteterapia é levar o cliente a um contato consigo mesmo através das expressões criativas.
Quando comento com as pessoas que sou formado em arteterapia, quase sempre vejo as imagens sobre meu trabalho se construindo na mente delas. Já me chamaram de artista, sendo que não sou, ou ainda me imaginam dando um pincel com godê a meus clientes num ateliê belissimamente sujo de várias cores de tinta, enquanto enrolo meu fino bigode entre os dedos. Não as julgo. A arteterapia também era pouco conhecida por mim até o momento em que ingressei nos estudos psicológicos e terapêuticos.
Antes mesmo de decidir ser arteterapeuta, uma colega de trabalho me disse que tinha iniciado esse tipo de terapia e que estava sendo muito bom. Confesso que na época também imaginei a cena que descrevi no primeiro parágrafo. Essa colega hoje trabalha também com a arte, pois se descobriu nesse lugar do artista durante sua terapia, mas não sem um aviso da sua arteterapeuta à época: “Cuidado para não transformar um o processo da arte em trabalho e acabar com o encanto e prazer de fazê-lo”, ou algo nessa linha.
O que é arteterapia?
A arteterapia tem muitas potencialidades e vieses, de acordo com a visão do terapeuta que a aplica. Ela pode ser uma “terapia artística”, onde a arte ou o manuseio dos materiais tem uma função de simples relaxamento, ocupação da mente e contato com o lúdico. Na clínica junguiana usamos a arte como mediador de um diálogo entre consciência e inconsciência, e não com o intuito de treinar habilidades artísticas para expressão. Para Jung:
Ainda que ocasionalmente os meus pacientes produzam obras de grande beleza, boas para serem expostas em mostras de “arte” moderna, eu as considero totalmente desprovidas de valor artístico, quando medidas pelos padrões da arte verdadeira. É essencial até que não tenham valor, pois, do contrário, meus pacientes poderiam considerar-se artistas, e isso seria fugir totalmente à finalidade do exercício […] trata-se da eficácia da vida sobre o próprio paciente (Jung, 2013) §104
A arteterapia usa a arte como meio de expressão pessoal para comunicar sentimentos, ao invés de ter como objetivo produtos esteticamente agradáveis a serem julgados segundo padrões externos (LIEBMANN, 2000 p. 18). […] É um processo terapêutico que decorre da utilização de diversas modalidades expressivas, considerando todas as suas possibilidades, características, história, que expressarão níveis inconscientes da psique, permitindo o diálogo, a nível de consciência, com esses conteúdos e níveis, propiciando na transformação do indivíduo (CHENDO, 2013, p. 62).
Não estou dizendo que do setting arteterapêutico não podem sair obras de arte, mas que lá não é o lugar em que se tem esse objetivo. A arte universal, aquela que nos arrebata, é fruto do mesmo inconsciente que a produção do setting, no entanto, tem outro tipo de tratamento. O artista profissional conhece as técnicas, as ferramentas e tem em si um aparato de tentativas e erro cujo objetivo é produzir uma obra de arte.
Jung relata, em A Natureza da Psique (O.C. 8/1), como percebeu esse papel da arte como ferramenta terapêutica. Foram anos observando pacientes angustiados com seus sonhos, sem compreendê-los, e sentindo essa pressão interior aumentar. Jung pediu para que elaborassem ou desenvolvessem essas imagens oníricas de acordo com suas capacidades e habilidades. Mesmo sem compreender, por muito tempo, o que eram essas materializações, ele percebeu que de alguma forma elas diminuíam essa pressão interior inexplicável (Cf. Jung, 2014, §400).
Uma viagem sem destino certo
Nesse sentido, o convite a apreciar a viagem da arteterapia se dá na proposta de instigar o cliente a observar-se diante do material apresentado: como se sente, como reage, que emoções vêm, dificuldades, prazeres etc. ao manusear ou executar o trabalho e então, após essa reflexão, observar como o inconsciente guiou aquela produção e então, por meio da imaginação dirigida, imaginação ativa e das provocações do terapeuta confrontar seus conteúdos.
Pode-se expressar o distúrbio emocional, não intelectualmente, mas conferindo-lhe uma forma visível. Os pacientes que tenham talento para a pintura ou o desenho podem expressar seus afetos por meio de imagens. Importa menos uma descrição tecnicamente ou esteticamente satisfatória, do que deixar campo livre à fantasia, e que tudo se faça ao melhor modo possível. […] Aqui também se tem um produto que foi influenciado tanto pela consciência como pelo inconsciente, produto que corporifica o anseio de luz, por parte do inconsciente, e de substância, por parte da consciência (Jung, 2014, §168).
Aí nós, terapeutas e clientes, temos que nos abrir para o mistério e o inesperado. A produção arteterapêutica pode conter grande carga de energia psíquica, que estava ligada aos complexos, e muitas vezes revelar mais do que o cliente gostaria. Já tive clientes que me pediram para que eu nunca mostre suas produções, pois ela os desnuda de uma maneira que não imaginavam.
É claro que se não fosse possível identificar traços, patologias e outras características humanas nos desenhos, estes não seriam usados nos testes psicológicos, no entanto, na arteterapia o papel da expressão não é diagnóstico, como um teste e sim, dialógico, buscando fazer com que o paciente encontre a si mesmo no objeto que produziu.
A atenção afetiva do arteterapeuta é dirigida sobre a relação que cada sujeito estabelece com a manipulação do material, dos instrumentos e dos movimentos eficazes. Além do resultado propriamente plástico, é interessante constatar o prazer ou desprazer do contato sensorial do sujeito com o material, a manifestação dos seus gestos, o prazer da apropriação progressiva da técnica (Païn, et al., 1996).
Os conteúdos inconscientes querem, antes de tudo, aparecer claramente, o que só é possível quando lhes é dada uma formulação adequada, e só podemos julgá-los quando todas as coisas que eles nos dizem são claramente perceptíveis. Muitas vezes impõe-se a necessidade de esclarecer conteúdos obscuros, imprimindo-lhes uma forma visível. Pode-se fazer isto desenhando-os, pintando-os ou modelando-os. Muitas vezes as mãos sabem resolver enigmas que o intelecto em vão lutou por compreender. Quando se consegue formular o conteúdo inconsciente e entender o sentido da formulação, surge a questão de saber como o ego se comporta diante desta situação. Tem, assim, início a confrontação entre o ego e o inconsciente. (Jung, 2014, § 179 a §181).
Por meio da materialidade dos símbolos manifestados, compreender-se-á melhor o que se passa no mundo interno, levando à possibilidade da compreensão e maior aceitação de sua atual condição, de uma maneira mais harmoniosa, contribuindo, desta forma, com o processo de individuação (CHENDO, 2013, p. 62). A produção artística ou criativa consegue imprimir no material conteúdos que não estão sob o domínio do ego, pois o inconsciente consegue se esgueirar por meio das mãos para a produção criativa, permitindo então a esses conteúdos inconscientes, desejosos por atenção, serem observados.
Processo idêntico ocorre com a mão que guia o creiom ou o pincel, com o pé que executa os passos da dança, com a vista e o ouvido, com a palavra e com o pensamento: é um impulso obscuro que decide, em última análise, quanto à configuração que deve surgir; é um a priori inconsciente que nos leva a criar formas, e ninguém fez a mínima ideia de que a consciência do outro é guiada pelos mesmos fatores, embora, em tais momentos, tenhamos a impressão de que nos achamos à mercê de uma casualidade subjetiva e sem limites. Por sobre todo o processo parece que paira uma precognição obscura, não só daquilo que vai tomando forma, mas também de sua significação (Jung, 2014, §402).
A produção imagética é consequência de processos primários de elaboração psíquica, tendo assim, na maioria das vezes, a possibilidade de não passar pelo crivo da consciência e controle egóico. Posteriormente, ao ser confrontada através da sua materialidade, poderá começar gradualmente a oferecer alguns, dentre seus múltiplos significados à consciência. (Philippini, 2018, p.16).
A expressão como símbolo
A produção arteterapêutica só tem significado para quem a produz, pois é fruto dos complexos inconscientes e questões que precisam vir à tona e serem tocadas pela consciência. (Silveira, 1981) diz que percebeu que na verdade os pacientes expressavam secretamente sua verdade nos desenhos, e a subjetividade se cria a cada instante: “Na abstração, o indivíduo contempla a si mesmo no objeto que o estarrece (Silveira, 1981)”. Eu traduziria esse pensamento que a expressão arteterapêutica se torna símbolo somente ao cliente. Ele tem a chave para essa fechadura. Numa linguagem moderna, a expressão artística arteterapêutica é um recado criptografado do inconsciente, cujo código-chave só pertence a quem a elabora.
A questão é que a produção arteterapêutica fala somente com quem a produziu ou com quem tem algum tipo de treinamento e conhecimento para entender o que está ali materializado. O que quero dizer com isso é que a produção arteterapêutica funciona como uma chave única para uma fechadura particular. Caso eu resolva mostrar uma dessas produções arteterapêuticas reveladoras a um leigo, um desconhecido desses clientes ou até mesmo a outro cliente, talvez ele veja apenas um desenho, uma escultura ou uma escrita sem grande significado.
Na transferência, a expressão se torna mensagem (Païn, et al., 1996) o paciente trabalha sob o olhar do terapeuta ou o ignorando, a relação dele com os materiais oferecidos (e os sentimentos do arteterapeuta diante disso) não é uma relação inventada, mas um comportamento do qual o cliente espera uma resposta ou reação e diante da qual o terapeuta tem que ficar atento se não está reforçando os traços neuróticos. A linguagem poética e expressiva permite ao indivíduo redescobrir a si mesmo, e com tal descoberta, renovar-se na relação com o mundo (CHENDO, 2013, p. 62).
Cada símbolo produzido no setting arteterapêutico poderá ser compreendido simultaneamente em relação ao seu criador, nas suas ressonâncias subjetivas e biográficas, e, paralelamente, também em seus aspectos universais e arquetípicos (Philippini, 2018, p. 17)
Uma fala de Nise da Silveira (1981) traduz bem essa proposta é a seguinte: “Mas eu não examinava as pinturas dos doentes que frequentavam nosso ateliê no meu gabinete. Eu os via pintar. Via suas faces crispadas e via o ímpeto que movia suas mãos. A impressão que eu tinha era de estarem eles vivenciando “estados do ser inumeráveis e cada vez mais perigosos”.
Nesse sentido chego ao ponto que queria com este artigo. Não que o produto da expressão criativa não seja importante, mas a presença na sua elaboração também é muito reveladora. Que sentimentos, pensamentos, imagens e sensações passam pelo cliente enquanto toca o material, enquanto o transforma? Que angústia o toma quando vê que seu produto não é o que tinha imaginado? Como se sente ao ver-se diante de um desafio?
Como esse passageiro se comportou durante a viagem, não somente quando chegou ao destino?
Muitas vezes o processo arteterapêutico é uma viagem sem destino certo, pois nos colocamos à disposição dos conteúdos inconscientes e, por serem inconscientes, muitas vezes nos levam para o inesperado. Essa surpresa também é um material importante de trabalho. O próprio Jung diz que não aconselha a definição de metas muito estritas na psicoterapia: “considero até aconselhável que o médico não tenha objetivos demasiado precisos, pois dificilmente ele vai saber mais do que a própria natureza ou a vontade de viver do paciente” (Jung, 2013, §81).
[…]somente quando a consciência é confrontada com os produtos do inconsciente é que se produz uma reação provisória, a qual, entretanto, determina todo o processo subsequente. Só a experiência prática é capaz de dizer alguma coisa sobre o que aconteceu (Jung, 2014, §172).
Dessa forma, hoje, após concluir a minha especialização no IJEP, porém continuando a estudar a arteterapia, vejo que muitas vezes a angústia em compreender a materialização nos impede de observar seu processo de execução. O atendimento online é um desafio nesse sentido, no entanto, também é uma viagem pela qual estamos passando e precisamos entender como afeta nossos atendimentos. Cito com um exemplo interessante este artigo que escrevi. Durante a sua escrita me fez refletir muito sobre o trabalho que venho desenvolvendo e me senti convidado a apreciar com mais atenção e presença o processo de elaboração do que o produto final, já que ele é fruto de um processo grande de reflexão, no entanto, diz respeito ao momento em que o escrevo. Não seria o mesmo de o escrevesse há dois anos, ou daqui a dois anos.
Mauro Angelo Soave Junior – Membro analista em formação
E. Simone Magaldi – Analista didata
Referências
CHENDO, Isabel C. P. 2013. Iluminar para revelar, colorir para transformar. [A. do livro] Angela Philippini. Arteterapia: Método, Projetos e Processos. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013, pp. 61-70.
Jung, C. G. 2014. A natureza da psique/ O. C. 8/1. Petrópolis: Vozes, 2014.
Jung, Carl G. 2013. A prática da psicoterapia/ O.C. 16/1. [trad.] Maria Luiza Appy. 16. Petrópolis: Vozes, 2013. ISBN 978-85-326-0634-1.
LIEBMANN, Marian. 2000. Exercícios de arte para grupos: um manual de temas, jogos e exercícios. São Paulo: Summus, 2000.
Païn, Sara e Jarreau, Gladys. 1996. Teoria e técnica de arte-terapia: a compreensão do sujeito. [trad.] Rosana Severino Di Leone. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. ISBN 85-7307-157-5.
Philippini, Angela (org.). 2013. Arteterapia: métodos, projetos e processos. 3ª. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013. ISBN 978-85-88081-68-0.
Philippini, Angela. 2018. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. 2ª. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2018.
Silveira, Nise da. 1981. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.