Barbies, ursos, pocs, twinkies, twunks, lontras, discretos, pintosas e mais. A profusão de tribos que a comunidade gay (aqui só o G do LGBTQIA+ mesmo) usa para se classificar pode ser um tanto estranha para quem a observa de fora. Trata-se de uma tipologia que varia, tanto geograficamente quanto com o tempo, mas que sempre marca a diferença entre corpos e comportamentos. Mas o que há por traz desse afã classificatório? Esse artigo busca entender, a luz da psicologia junguiana, porque esse sistema de tribos existe na comunidade gay e como isso repercute na psique desses homens.
Primeiramente, é necessário dizer que essa tipologia não é de forma alguma universal. Como dito anteriormente, ela é variável, tal qual as gírias, dependem do local e mudam com o tempo. Nesse sentido se assemelham muito com as tribos adolescentes. Mas enquanto as tribos adolescentes se organizam em torno, geralmente, de interesses comuns como músicas e hobbies, a tipologia gay é marcadamente focada em corpos e comportamentos. Há título de exemplo podemos falar de algumas classificações comuns nesse mundo: barbies são gays com corpos malhados, podendo ser mais ou menos masculinos, ursos são gays geralmente gordos e peludos e mais masculinos, lontras são peludos como ursos mas magros, discretos evitam transparecer qualquer traço de feminilidade enquanto uma pintosa será tudo menos masculina. Há também as classificações que marcam diferenças socioeconômicas e etárias, mas essas surgem dentro de um contexto de chacota e dificilmente alguém quer ser entendido como uma bicha pão-com-ovo (de baixa renda) ou uma cacura (um gay mais velho).
Para quem não está familiarizado com esses termos essa taxonomia pode muito bem causar um bocado de estranhamento, mas talvez o estranhamento seja uma abordagem interessante para o fenômeno, afinal, por que seria interessante classificar pessoas dessa maneira? Afinal, é estranho que um grupo que já é marginalizado queira entre seus pares gerar mais categorias e eventual (re)marginalização. Também é estranho porque entre heterossexuais não existe de maneira tão patente esse fenômeno. É interessante notar aqui que também existe tal fenômeno entre mulheres lésbicas, mas em menor grau.
A primeira explicação possível para tal fenômeno seria sociológica. Essa classificação faz parte de um jogo de desejo, valor e pertencimento. O que faz bastante sentido, mas não parece bastar, afinal, esses jogos não são exclusividade da comunidade gay. Deve haver algo específico nas vivências gays que favoreçam o surgimento dessas classificações
Talvez a primeira pista resida na natureza dessas classificações: são iminentemente superficiais, focadas em aspectos visuais e padrões de comportamento, e são, obviamente, coletivas como qualquer classificação social seria. Podemos imaginar então que essas classificações se ordenam dentro do reino da persona. Mas seria razoável imaginar essas categorias como personas?
Em Os Arquétipos do Inconsciente Coletivo Jung diz que “Exagerando um pouco, poderíamos até dizer que a persona é o que não se é realmente, mas sim aquilo que os outros e a própria pessoa acham que se é.” (JUNG, 2014, §221) Nesse sentido, as classificações das tribos gays funcionam como personas, estando pautadas essencialmente naquilo que pode ser visto pelos outros, o corpo e uma postura mais masculina ou feminina. Em outro trecho Jung diz que “A persona é uma aparência, uma realidade bidimensional, como se poderia designá-la ironicamente.” (JUNG, 2015, §246). Considerando a natureza quase caricata de uma classificação como barbie ou urso, poderíamos dizer que essas classificações se aproximam do conceito de persona.
Mas observemos outra definição para persona, dessa vez do livro Tipos Psicológicos: “A persona é, pois, um complexo funcional que surgiu por razões de adaptação ou de necessária comodidade, mas que não é idêntico à individualidade.” (JUNG, 2013, §735). Podemos dizer que as classificações das quais estamos tratando se enquadram nessa definição? Afinal tais classificações adaptam alguém a sociedade? A sociedade em geral com certeza não, mas definitivamente podem servir para se navegar dentro da comunidade gay. Obviamente, uma persona só faz sentido dentre aqueles que reconhecem aquele “personagem”, então apenas entre quem entende o que é um twink, fara sentido ser ou não ser um twink.
É talvez seja esse o ponto central desse artigo: tais classificações, por pior que sejam, estão de alguma maneira servindo para que indivíduos transitem dentro da comunidade gay. Esses personagens estão na realidade pautando maneiras de se ser gay, dando imagens a vivências múltiplas do que é ser um homossexual masculino. Obviamente categorias não possuem a complexidade nem a potência de personas mais antigas e elaboradas como personas profissionais, por exemplo, nem tão pouco costumam ser de tamanha importância para o indivíduo quanto essas. Mas não deixam de pautar as subjetividades e ordenar vivências. Contudo o leitor há de perguntar, não são essas classificações muito pobres e superficiais? E uma resposta sincera seria sim, são. Mas há uma razão para essa superficialidade: a escassez de narrativas de vida homossexuais nas quais se pautar. Poderíamos até dizer, uma escassez de mitologia que dê conta dessas subjetividades.
E aqui entra o segundo ponto desse artigo: de onde homens homossexuais estão retirando material para entender a própria vivência relacional? Primeiramente a maioria dos homossexuais adultos de hoje não teve contato com histórias de vida de outros homossexuais enquanto cresciam, já deixando um vácuo de referências do que é ser gay. Já na mídia até pouco tempo era quase inexistente na mídia de amplo alcance narrativas sobre personagens homossexuais (sejam homens ou mulheres). Os poucos personagens homossexuais que surgiam costumavam ser vilões ou estar em algum tipo de papel cômico, geralmente jocoso. Havia poucas representações saudáveis possíveis para um homem gay nessas narrativas. Mesmo em produções que tratavam de questões LGBTQIA+ as narrativas não costumavam ser mais favoráveis, visto que, por muito tempo, quase todas tratavam mais dos aspectos trágicos dessas condições, e, por melhor que o filme seja, é difícil imaginar uma vida a dois feliz com O Segredo de Brokeback Mountain como horizonte. E se nessas duas instâncias o material já é pobre, não há nem o que se dizer em relação a disponibilidade de material mitológico e literário acerca do tema.
Essa aridez narrativa pode ter sido uma das forças motrizes para o surgimento dessas classificações. Na ausência de boas histórias com bons personagens, foi surgindo uma plêiade de estereótipos mais ou menos caricatos para tentar dar conta de subjetividades que não se encontravam representadas facilmente. Obviamente, isso tem um custo psíquico para os indivíduos que passam a se identificar com esses papéis, como lembra Jung:
“Essas identificações com o papel social são fontes abundantes de neuroses. O homem jamais conseguirá desembaraçar-se de si mesmo, em benefício de uma personalidade artificial. A simples tentativa de fazê- lo desencadeia, em todos os casos habituais, reações inconscientes: caprichos, afetos, angústias, ideias obsessivas, fraquezas, vícios etc. O “homem forte” no contexto social é, frequentemente, uma criança na “vida particular”, no tocante a seus estados de espírito. Sua disciplina pública (particularmente exigida dos outros) fraqueja lamentavelmente no lar e a “alegria profissional” que ostenta mostra em casa um rosto melancólico. Quanto à sua moral pública “sem mácula”, tem um aspecto estranho atrás da máscara – e não falemos de atos, mas só de fantasias: suas mulheres teriam muitas coisas para contar. Quanto ao seu abnegado altruísmo, a opinião dos filhos é outra.” (JUNG, 2015, §307)
Que poderíamos então imaginar de um homem gay que chegue na análise identificado com um desses personagens? Que neuroses estariam ocultas por trás dos esforços para ser uma barbie? O que ocultaria um orgulho exagerado em ser um urso? A que custos ocorre a performance necessária para ser entendido como discreto? Certamente, cada caso precisa de atenção própria e estender generalizações talvez só nos leve de volta para a superficialidade que essas classificações trazem a princípio. De qualquer forma, uma das funções da análise nesses casos seria alargar os horizontes imaginais da experiência do que é ser um homem gay. Para além dos estereótipos postos, quem é o indivíduo por trás da máscara? A pessoa que existe por trás de um desses personagens bidimensionais necessariamente será muito mais interessante do que qualquer classificação da conta, mas talvez ela não tenha boas maneiras de contar a sua história para si própria.
Para esses indivíduos a análise talvez possa ser um lugar para reverter essa aridez de narrativas. Mesmo que não tenhamos uma ampla disponibilidade de narrativas mitológicas sobre homossexualidade masculina elas existem. E para muitos casos será útil valer-se desses mitos para encontrar formas mais interessantes de se imaginar gay. Talvez a parceria entre Gilgamesh e Enkidu possa ensejar uma discussão sobre dinâmicas de casal. Ou talvez o caso de Ossaim seduzindo Oxóssi possa ajudar numa discussão sobre as consequências de se mudar para a casa do namorado. Certamente, o rapto de Ganimedes por Zeus também poderá dizer algo sobre a condição de homens gays. As incursões amorosas de Apolo com seus parceiros masculinos, no entanto, provavelmente só renderão ampliações para cenários menos favoráveis.
Mas se na mitologia não encontrarmos algo que nos seja interessante a produção cultural dos últimos tem proporcionado novos personagens (agora mais complexos e menos abjetos) que também podem ajudar num processo de se reinventar gay. Recentemente, a série Heartstopper, adaptada do quadrinho de mesmo nome, traz o retrato de um amor adolescente entre dois rapazes, algo impensável há uma década num programa de TV. O filme Me Chame Pelo Seu Nome trata do tema do primeiro amor (e da primeira decepção amorosa). Filmes como De Repente Califórnia e Delicada Atração mostram casais gays que se formam, mesmo perante adversidades. Weekend relata o relacionamento efêmero, mas intenso entre dois homens ao longo de um fim de semana. E mesmo numa série humor, o relacionamento de Mitchell e Cameron de Modern Family talvez ajude alguém a se entender como parte de um casal. Obviamente os filmes de abordagem mais trágica e de crítica social como Brokeback Mountain, Filadélfia, Garotos de Programa e Maurice também podem ser muito interessantes no contexto da análise, mas é sem dúvida um alívio que não tenhamos apenas filmes tristes.
Certamente há muito mais nesse curioso hábito classificatório do que esse artigo da conta. Mas espero que esse possa ajudar analistas, analisandos e curiosos a expandir um pouco suas visões sobre a questão das identidades gays. A verdade é que não existe um jeito só de se ser homossexual (como não existe um jeito só de se ser heterossexual) e é necessário abandonar classificações e papéis que absorvemos em nossa trajetória, tenham elas vindo de uma sociedade heteronormativa ou de dentro da própria comunidade LGBTQIA+. Tais classificações, afinal, acabam por limitar as experiências e subjetividades do indivíduo. As temáticas LGBTQIA+ praticamente inexistem na obra junguiana, e nem poderia ser diferente, seria absolutamente anacrônico esperar o contrário. Mas isso não significa de maneira alguma que a clínica junguiana não tenha muito a oferecer aos homossexuais. Na análise podemos buscar formas de existir que sejam não só mais saudáveis, mas que também estejam em maior consonância com o Self e o processo de individuação da pessoa.
Gabriel Andrade – Analista em Formação pelo IJEP
Waldemar Magali – Analista Didata
Bibliografia
JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. 27.ed. Petrópolis, Vozes, 2015
______. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 11.ed. Petrópolis, Vozes, 2014
______. Tipos Psicológicos. 7.ed. Petrópolis, Vozes, 2013