Ao iniciar esse texto, três filmes vem à minha cabeça: Nossas Noites, protagonizados por Jane Fonda e Robert Redford, A Substância, dirigido belamente por Coralie Fargeat e estrelado por Demi Moore. A diretora francesa dirigiu outro filme que me chamou atenção, Vingança, que mostra, assim como no filme A Substância, como o mundo pode ser violento com as mulheres. O vermelho, o horrendo é ressaltando, tudo ali é dor e violência. Num filme, uma mulher jovem vinga a violência que sofreu, no outro, uma mulher mais velha se mutila. Em Nossas Noites, a maravilhosa e deslumbrante Jane Fonda convida o vizinho para dormir com ela, literalmente dormir. O terceiro filme será dirigido pela atriz e diretora Bárbara Paz. O filme gira em torno do personagem do carismático Willem Dafoe, um “profissional do afeto”, alguém que oferece conforto platônico a pessoas solitárias.
Esses filmes falam de solidão e da sensação de abandono. Viver é dor, o sofrimento faz parte da vida humana, mas existem dores que parecem que doem mais, pois elas são as dores da alma.
Essas dores podem deixar marcas no corpo. Elas mutilam a alma e mutilam o corpo, quando não tratadas ou olhadas com profundidade, independente do medo. Esses filmes abordam a solidão, a dor de ser esquecida e as tentativas de lidar com elas. No filme A Substância há uma contradição dos opostos, de uma forma gritante e sufocante, entre a juventude desejada e a velhice, que se aproxima sem dó e sem piedade, anunciando o caminho para o fim. Esses dois estágios da vida só podem conviver juntos de modo simbólico e ressignificado.
Qualquer tentativa de unir os dois, de modo concreto literal, só irá causar mais danos à Psique. Quando o otimismo da juventude, com a garra de conquistar o mundo, junto com a ideia de que há um futuro pela frente, cessa com a velhice, tudo isso somado à consciência da realidade da morte, pode ser uma experiência sufocante.
Nas palavra de Carl Jung:
O otimismo com que julgamos a juventude fracassa nessa hora. Temos, naturalmente, um repertório de conceitos apropriados a respeito da vida, que ocasionalmente ministramos aos outros, tais como: “Todo mundo um dia vai morrer”, “ninguém é eterno” etc., mas quando estamos sozinhos e é noite, e a escuridão e o silêncio são tão densos, que não escutamos e não vemos senão os pensamentos que somam e subtraem os anos da vida, e a longa série daqueles fatos desagradáveis que impiedosamente nos mostram até onde os ponteiros do relógio já chegaram, e a aproximação lenta e irresistível do muro de trevas que finalmente tragarão tudo o que eu amo, desejo, possuo, espero e procuro; então toda a nossa sabedoria de vida se esgueirará para um esconderijo impossível de descobrir, e o medo envolverá o insone como um cobertor sufocante.
C. G. Jung. OC 8_2 – A Natureza da psique – § 796
No filme A Substância essa oposição é exposta de um modo muito doloroso. Para uma existir, a outra precisa sair de cena. Elas não podem conviver no mesmo espaço. Uma dá lugar a outra, mas não sem dor. Existe inveja, raiva, competição. A consciência não consegue unir os opostos, ou se é jovem ou velha e o filme mostra muito bem isso. Nenhuma das duas consegue ceder e doar nada a outra, sabedoria, jovialidade, tempo, vontade de viver.
Quem assistiu o filme A Substância, sabe como essa história termina. Quando a alma não se prepara para esse momento não há como unir o que Cronos separou. Será que é possível essa preparação? Talvez seja necessária muita criatividade e o cultivo da espiritualidade para que todas as fases da vida sejam bem-vindas, acolhidas como ciclos da natureza. No entanto, deixamos de ser natureza há muito tempo. O mundo ocidental não tolera o velho, o fraco, o declínio.
Talvez seja por causa desse racionalismo utilitarista, que só valoriza algo para um determinado fim, que as mulheres com mais de 50 anos se tornam invisíveis.
Somos invisíveis para o mercado de trabalho e para o “mercado” de relacionamentos. “A mulher tem data de validade”, muitos usam essa frase. O perigo é quando acreditamos nela. A personagem de Demi Moore deixou de ser atraente para seus empregadores, assim como muitas mulheres deixam de receber os olhares nas ruas, deixando de ser “paqueradas”, no sentido de um olhar de brilho. Muitas mulheres moram sozinhas, sem a presença dos filhos, de amigas ou de parceiros sexuais e afetivos. É aí que tudo termina, iniciando ou uma corrida para recuperar a juventude perdida ou uma reclusão solitária, sem que haja um olhar atento para novos modelos de vida.
A solidão das mulheres pode ser gerada por uma fala silenciosa que diz: “fica em casa com a sua velhice ou pareça jovem”. Isso fica visível no filme de Carolie Fargeat, a personagem de Demi Moore fica em casa se entupindo de comida e de programas fúteis na televisão, e a jovem, vive experiências sem vida, sem sentido, numa corrida desesperada por novas emoções. Duas atitudes opostas que não se entrelaçam. Talvez a aceitação para o envelhecimento e a realidade da finitude, seja a consciência de que nem a juventude e nem a velhice tragam tudo o que precisamos para ter uma vida mais consciente. É necessário encarar os medos, da vida e da morte, além de sentir que envelhecer é um privilégio de quem viveu e esse momento pode significar a plenitude da vida, de uma fase mais madura, com inteireza e aceitação.
Tenho observado que aqueles que mais temem a vida quando jovens, são justamente os que mais têm medo da morte quando envelhecem.
C. G. Jung. OC 8/2, A Natureza da psique, §797
O medo é paralisante, petrifica. A consciência é dualista, excludente, é isso ou aquilo, não há espaço para dualidades e sim para dualismos, dicotomias, abismos e separações.
A natureza da consciência é de concentrar-se em poucos conteúdos, seletivamente, elevando-os a um máximo grau de clareza. A consciência tem como consequência necessária e condição prévia a exclusão de outros conteúdos igualmente passíveis de conscientização. Esta exclusão causa inevitavelmente uma certa unilateralidade dos conteúdos conscientes.
C. G. Jung, OC 9/1, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, §276
O medo da vida esconde o medo da morte e vice e versa, um medo exclui a consciência do outro, estamos diante da face de uma mesma moeda.
No entanto, o Self é criativo, une realidades, permitindo a função transcendente, o símbolo que une, que transforma a realidade excludente. Por isso, é possível que haja muitas mortes na juventude e muita vida na velhice.
“A vida é teleológica par excellence, é a própria persecução de um determinado fim, e o organismo nada mais é do que um sistema de objetivos prefixados que se procura alcançar. O termo de cada processo é o seu objetivo.”
C. G. Jung, OC 8/2, A Natureza da psique, §798
Todas as etapas de uma vida estão contidas em outras. Neste sentido, a juventude nada mais é do que um estágio intermediário para a maturidade. O medo da vida, de assumir riscos, de sofrer, será o prenúncio do medo da morte. Só os vivos podem morrer. Quem na juventude vive, avança etapas, dá passos na vida, mesmo experienciando momentos de muitas dores, decepções, torna-se apto a uma velhice com mais criatividade e sabedoria.
O filme Nossas Noites sugere uma saída criativa para a solidão dos personagens. Os atores Jane Fonda e Robert Redford tinham quase 80 anos no lançamento do filme em 2017. Dois velhos, que moram sozinhos. Assim como, que eu também, moro sozinha e tenho muitas amigas que moram sós e poucos amigos na mesma condição. Existem mais mulheres em instituições de longa permanência e isso só reforça o problema da solidão das mulheres. Talvez uma forma de lidar com esta questão esteja mais em outro filme protagonizado também por Jane Fonda, E Se Vivêssemos todos juntos? Ou na série Grace and Frankie.
O interessante aqui é a forma inusitada trazida pelo filme Nossas Noites, com temas sobre a solidão e a sexualidade de quase octogenários. No fundo, o filme Nossas Noites não trata somente de relacionamentos amorosos, mas de amizade, de busca de afeto e de companheirismo. Ao invés de se sentir infeliz, remoendo escolhas, ressentida com uma juventude que se foi, a personagem de Jane Fonda sai do seu lugar e bate à porta.
Mas o impulso teleológico da vida não cessa quando se atinge o amadurecimento e o zênite da vida biológica. A vida desce agora montanha abaixo, com a mesma intensidade e a mesma irresistibilidade com que a subia antes da meia idade, porque a meta não está no cume, mas no vale, onde a subida começou. A curva da vida é como a parábola de um projétil que retorna ao estado de repouso, depois de ter sido perturbado no seu estado de repouso inicial.
C. G. Jung. OC 8/2, A Natureza da psique, §798
Aceitar a descida na curva da vida, na meia idade não é uma tarefa fácil, mas é libertadora.
A vida que eu vivi até aqui foi uma preparação para esse momento. Costumo dizer, que depois dos 50 anos tudo deve ser mais lento, saboreado, há menos tempo pela frente. Se eu for mais rápido, mais rápido eu chego ao destino final. No entanto, há uma pseudo contradição nessa fala, ao mesmo tempo que a vida pede calma, ela pede urgência para tomar algumas decisões. Em Nossas Noites, a personagem de Jane Fonda não perde tempo, bate à porta e convida o vizinho para partilhar suas noites, sua cama. Uma solução criativa para algo que a incomodava profundamente. Essa atitude está longe do convencional, não houve uma aproximação com o intuito de formar um relacionamento, mas algo direto, firme, inovador.
Do meio da vida em diante, só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade, porque na hora secreta do meio-dia da vida se inverte a parábola e nasce a morte. A segunda metade da vida não significa subida, expansão, crescimento, exuberância, mas morte, porque o seu alvo é o seu término. A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim. Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver. E não querer viver é sinônimo de não querer morrer. A ascensão e o declínio formam uma só curva.
C. G. Jung, OC 8/2, A Natureza da psique, §800
Não sei qual será a abordagem do filme da Bárbara Paz, protagonizado por Willem Dafoe, mas o fato de falar de um “profissional do afeto”, é bem interessante. Cerca de 31% dos divorcios ocorrem entre mulheres com mais de 50 anos, sem contar com as que se divorciaram antes disso, sendo assim, teremos um número grande de mulheres sozinhas. Os “profissionais do afeto” seriam a solução para a solidão das mulheres? Creio que não. Carl Jung fala de aceitação para ter mais vitalidade. Será que é possível ter uma vida com vitalidade sozinha? Acredito que não.
Viver sozinha não diz respeito a relacionamentos amorosos ou a idade, mas estar disposta a se expor, a abrir a vida para o novo, para novas relações, para construção de boas amizades. É sobre ter novos projetos. Aceitar a morte, e o declínio é abraçar a vida com toda força, com tudo o que ela traz. Somente as mulheres que aceitam sua idade, sua nova condição de vida, terão a vitalidade, a força, e a criatividade para inventar novas formas de viver.
Silvana Venâncio – Membro Analista em formação IJEP
*Jornalista, licenciada em Filosofia, Arteterapeuta, Doutora em Teologia e Analista Junguiana em Formação
Ana Paula Maluf – Membro Analista Didata IJEP
Bibliografia:
C. G. Jung. OC 9/1 – Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2017.
__________ OC 8/2 – A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 2013.