Resumo: Não é apenas com ideias que se recria uma vida. Transformar padrões psíquicos requer o enfretamento de sombras e complexos, a exposição das vulnerabilidades, o risco de se experimentar novas experiências para que, no tempo das coisas, uma nova atitude em vida possa emergir. Neste artigo, cenas interpretadas no cinema, narradas em consultório e mitológicas buscam inspirar processos terapêuticos.
A vida, esse tempo entre mistérios, é – na perspectiva junguiana – uma experiência psíquica. Isso significa que para cada indivíduo, a vida acontece nas dimensões das ideias, das emoções, das sensações, das intuições, de forma singular, integrada e em diferentes intensidades. Acontece em movimentos de interesse para fora e para dentro, sempre conduzida de forma invisível pela alma, imoral (Bonder, 1998).
Nessa experiência vivida multidimensionalmente, “a palavra fracassa”, como disse Nise da Silveira. A vida precisa ser experimentada e expressada, com as palavras e para além delas.
Deitado em uma maca, na qual vive em decorrência da poliomielite que se estendeu ao tronco desde os seis anos de idade, o poeta americano Mark O’brien confessa ao padre da cidade seu desejo de experimentar a sexualidade e pergunta se isso estaria errado. Depois de pensar alguns minutos em frente ao altar, o padre responde que não, afinal, conclui ele, as pessoas costumam exclamar “oh my God” no clímax sexual.
Minutos depois de conhecer o profissional do sexo, Leo Grande, Nancy Stokes, uma professora de histórico conservador, que acaba de se aposentar, confessa que, apesar de ter sido casada por décadas, nunca experimentou o prazer sexual. O que era para ser um encontro único com Leo, tornam-se sessões guiadas por uma lista de experiências sexuais inéditas para ela, entre conversas e danças, nas quais, ambos deixam vazar suas vulnerabilidades.
Casada há décadas com um cara aparentemente gente boa, mãe de dois adolescentes comuns, a super CEO controladora Romy encontra-se de quatro num quarto de hotel vulgar, tomando leite em uma gamela colocada no chão pelo estagiário da companhia que comanda e com o qual vive encontros sexuais de dominação que colocam sua família e carreira em risco.
Pelas redes sociais, as investidas de um cara casado, que começou com emojis dúbios, convida uma mulher para a criação em dupla de cenas eróticas, nas quais sentimentos singelos descritos percorrem os corpos arrepiados pelas fantasias reveladas pelas palavras. Desde o início das trocas, nunca se encontraram pessoalmente, mas sabem que, pela ficção que inventaram, conhecem intimamente aspectos um do outro.
Universal
Em Eros e Psiquê, a jovem bela, desenganada do amor e perseguida pela inveja de Afrodite, é sacrificada pelos pais no alto de um rochedo. Por conta de um vento muito forte, Psiquê é jogada ao vale, onde cai e dorme exausta. Ao acordar, encontra-se num castelo e percebe a presença de seu novo e desconhecido marido que, apesar de ser extremamente carinhoso, colocou a ela uma única condição: jamais poderia vê-lo.
Com o passar do tempo, apesar da satisfação que vivia no casamento, começou a sentir falta de sua família e pediu ao marido permissão para visitá-la. Ao revelar às irmãs Inveja e Discórdia sua felicidade, foi inundada por questionamentos e dúvidas sobre a identidade do cônjuge e encorajada a descumprir o acordo matrimonial e encará-lo.
De volta à casa, Psiquê aguarda o sono profundo de seu amante e, com a luz de uma lamparina, vê a perfeição de Eros revelada. O encantamento é tamanho que ela não percebe a gota de óleo que cai sobre o peito do marido, que acorda assustado, encarando a traição, o que o faz desistir do casamento. Ambos seguem vagando perdidos e tristes pelo mundo, quando Eros suplica a redenção de Zeus, que depois de cumprir quatro diferentes tarefas, faz da mortal Psiquê uma imortal e, assim, passam a viver eternamente juntos no Olímpo.
Seja no mito, sejam nas histórias fictícias ou nas narrativas dos consultórios, em cada uma dessas cenas pulsa o desejo erótico de ultrapassar a própria borda, de encontrar o desconhecido, de fundir-se ao que é incontornável da existência humana. Longe das regras e do que se pode esperar dos personagens descritos e de seus contextos. A alma é imoral e busca realizar-se.
O corpo como caminho
Atrás do medo pode estar escondido o que se deseja experimentar em vida. É preciso investir energia e agir com coragem para se servir do que está colocado à mesa da existência humana. A tarefa passa também pelo corpo, pela experiência sensorial que não deve ser subvalorizada em detrimento da razão ou da espiritualidade. Assim como também não precisa ser supervalorizada, com os excessos dopaminérgicos contemporâneos.
A prática da ioga ensina que é por meio da repetição dos asanas (as posturas da ioga) que se pode conhecer-se a si e, eventualmente, alcançar o Todo. É possível a analogia com o processo analítico. Em A psicologia da ioga kundalini, Jung afirma:
“Hoje, em vez de mar ou de leviatã, nós falamos em ‘análise’, que é igualmente perigosa. A pessoa mergulha na água, se familiariza o leviatã que ali habita e isso se transforma em fonte de regeneração ou de destruição”.
(Jung, 2022, p. 99)
No processo analítico aspectos são regenerados enquanto outros, de fato, destruídos.
Em Ab-reação, análise dos sonhos e transferência, Jung reflete sobre a vida instintual, aspecto intimamente ligado à dimensão corpórea:
“O instinto não é coisa isolada, nem pode ser isolado na prática. Ele sempre traz consigo conteúdos arquetípicos de caráter espiritual que, por um lado, o fundamentam e, por outro, o limitam. Em outras palavras, o instinto se apresenta sempre e inevitavelmente junto com uma espécie de visão de mundo, por mais arcaica, imprecisa e crepuscular que ela seja. O instinto nos dá o que pensar, e se não pensarmos nele livremente, então surgirá um pensamento compulsório, pois os dois pólos da alma, o fisiológico e o espiritual, estão ligados um ao outro, indissoluvelmente. Por isso, não existe uma liberação unilateral do instinto, da mesma forma que o espírito, desligado da esfera instintual, está condenado ao ponto morto. Não se deve imaginar, contudo, que a sua ligação com a esfera instintual seja necessariamente harmoniosa. Muito pelo contrário, ela é cheia de conflitos e significa sofrimento. Eis por que o objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade, mas sim possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento. A totalidade, a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e alegria.”
(OC 16/1 § 185)
Bhagwan Sherr Rajneesh, o controverso guru indiano Osho, diz em Tantra: sexo e espiritualidade, que sentimos muito medo de duas coisas: do sexo e da morte.
“Ambos são básicos. Aquele que se propõe a encarar a religião com seriedade irá ao encontro dos dois. Experimentará o sexo para saber de que se trata, pois conhecer o sexo é conhecer a vida. E gostará também de saber o que é a morte, pois a menos que se saiba o que ela é, não se poderá saber o que é vida eterna”.
Na busca pela experiência sexual, de vida, Mark morreu, assim como morreram Nacy, Leo, Romy, o estagiário, o homem casado, a amiga dele. Morreram Eros e Psiquê. De forma simbólica, todos aceitaram a morte de aspectos psíquicos para poderem experimentar novos aspectos da vida na carne e além dela.
Além do corpo
Não aconteceria algo simbolicamente semelhante a tudo isso também na prática da psicoterapia? Analista e analisando encontrando-se, revelando-se, confessando-se, saltando em locais misteriosos, integrando-se, fazendo morrer aspectos para que novos possam nascer e se relevar? Talvez a prática da entrega na clínica (como analista e analisando) possa ser um bom treino para novas entregas na vida, sem disfarces.
Afinal, enxergar, confessar, se relacionar com um padrão psíquico e depois disso distanciar-se dele por meio de uma nova atitude na vida é o grande desafio de um processo terapêutico.
Além da coragem para render-se à alma imoral é preciso tempo e prática.
Mark, Nacy, Leo, Romy, o estagiário, o homem, a mulher, Eros, Psiquê, analista, analisando, todos vivem, encontro a encontro, a persistência e a espera do tempo certo para que as mortes simbólicas aconteçam. Para que novas vidas possam se revelar. “La petite mort”. Não é apenas o gozo e é o gozo também.
No best-seller e blockbuster “Comer, Rezar e Amar” fomos apresentados à música e ao conceito de Attraversiamo.
Em italiano, Attraversiamo é uma expressão que indica um chamado para se aventurar, deixar a zona de conforto, enfrentar o medo e os desafios. A escritora Elizabeth Gilbert, autora dessa autoficção, precisou repetir várias vezes a palavra para aprender a falá-la sem sotaque e, mais ainda, para compreendê-la. Não há pílula mágica para quem deseja pegar a vida com as próprias mãos. É preciso atravessá-la à despeito de tudo e de todos.
No funeral de Mark O’brien, a terapeuta sexual Cheryl Cohen Greene lê o poema escrito por ele e entregue anonimamente após suas sessões e fim do processo terapêutico. Chama-se o “Poema de amor para ninguém em especial”:
Deixe-me tocá-la com minhas palavras
Pois minhas mãos inertes pendem
como luvas vazias
Deixe minhas palavras acariciarem seu cabelo
deslizar tuas costas abaixo
e brincar em teu ventre
pois minhas mãos,
de voo leve e livre como tijolos
ignoram meus desejos
e teimosamente se recusam a tornar realidade
minhas intenções mais silenciosas
Deixe minhas palavras entrarem em você
carregando lanternas
aceite-as voluntariamente em seu ser
para que possam te acariciar devagarinho
por dentro.
Por falta de palavras diante de tamanha beleza, roubo aqui as dos compositores Lô Borges e Márcio Borges, que Milton Nascimento eternizou com sua voz de Deus: “será que isso quer dizer amor, a estrada de fazer, o sonho acontecer?”. O amor, por si mesmo, pelo outro, pelo mundo. O amor destemido que busca expandir a existência, por meio das experiências que a vida faz acontecer.
Em um dos shows de sua turnê de despedida dos palcos, encarando seu próprio fim, Gilberto Gil afirmou: “A morte não é difícil. Difícil é aprender a amar”, que o caminho simbólico da análise possa nos ensinar a viver o amor na prática.
Luciana Branco – Analista em Formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
BONDER, Nilton. A Alma Imoral. São Paulo: Rocco,1989.
LEWIN, Ben. As Sessões. 2012.
HYDE, Sophie. Boa Sorte, Leo Grande. 2022.
REIJN, Halina. Babygirl. 2024.
JUNG, C.G. A psicologia da ioga kundalini. 1ª edição. Petrópolis: Vozes, 2022.
______ Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 18ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2022.
RAJNEESH, Bhagwan Sherr. Tantra: sexo e espiritualidade. São Paulo: Ágora, sem data.
MURPHY, Ryan. Comer, Rezar, Amar. 2010.

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