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Cobra Kai além dos tatames: uma análise junguiana dos complexos

Cobra Kai e o Complexo Paterno Negativo

Cobra Kai e o Complexo Paterno Negativo

Quando Jung diz que “o significado social da obra de Arte é trabalhar continuamente na educação do Espírito da Época[1] ele nos traz a reflexão sobre a importância que uma manifestação artística tem quando ganha repercussão pública, e quão é importante pensar quais são as imagens arquetípicas que reverberam no inconsciente coletivo. 

Um olhar mais atento perceberá que Cobra Kai caiu no gosto popular. Em seu Twitter oficial, a NetFlix informa que se juntarem todas as temporadas, por volta de 73 milhões de lares terão assistido a pelo menos um episódio da franquia[2].

A série é uma espécie de continuação de Karatê Kid, símbolo da cultura pop dos anos 80. Os principais personagens do filme – Daniel LaRusso; Johnny Lawrence e John Kreese – fazem parte da trama, mesclando a nostalgia com a dinâmica jovial da nova geração.

Cobra Kai tem uma narrativa simples e seu roteiro é um tanto clichê, mas traz uma série de situações psicológicas que espelham nossa atualidade. 

A intenção deste texto é convidar o leitor a olhar além do óbvio, a compreender a dinâmica psicológica dos personagens e perceber as possíveis projeções coletivas que recaem sobre eles. 

Complexo Paterno

Em Karatê Kid, os personagens principais – Daniel San e Johnny Lawrence – não fazem referência aos seus pais biológicos, ambos têm pais ausentes

No filme, Daniel era um garoto franzino de Nova Jersey que se muda com a mãe para o subúrbio de Los Angeles. Ele não foi aceito pelo grupo social e sofria bulling na escola dos valentões do karatê. Tinha baixa autoestima, era inseguro e se sentia deslocado. Ao conhecer o Sr. Myagi, recebeu uma paternagem acolhedora e amorosa, aprendeu a ter disciplina, auto confiança e a lutar por seus propósitos. 

Cobra Kai mostra que o complexo paterno positivo do Daniel ajudou no direcionamento da sua vida, melhorou sua autoestima, o impulsionou a construir uma bela família, a ter facilidade no trânsito social, a trabalhar com o que gosta e a ser próspero. 

Já o Johnny Lawrence teve um complexo paterno negativo, pois seu padrasto o desprezava e era emocionalmente abusivo com ele. Quando adolescente, Johnny se expressava através da violência, ridicularizava as pessoas e era abusivo em suas relações. Ele buscou paternagem no sensei Reese, um homem com provável transtorno de personalidade antissocial. Devido ao seu complexo paterno negativo, ao virar adulto, Johnny se transformou em um homem violento, de baixa autoestima, promovendo desordens sociais, não respeitando autoridades, era instável nos empregos e relacionamentos e tinha tendência ao alcoolismo.  Além disso, não conseguiu exercer o papel de pai com seu filho Robby, o abandonando desde muito jovem (reproduzindo inconscientemente seu complexo paterno negativo e de abandono). Sua tentativa de resgate paterno foi com o Miguel e não com seu próprio filho.

Importante lembrar que a consciência patriarcal viabiliza a organização normativa que diz respeito ao dever, a honra, ao controle, a hierarquia, a austeridade. Quando positivo, o arquétipo do pai também é responsável pela diferenciação do eu e do outro. As atitudes do pai para com a família e a sociedade de um modo geral deixam marcas na criança, levando-a a diferenciar entre o que é certo/aceitável e o que não é.

“Um filho não reconhecido pelo pai se sente desenraizado do Si-mesmo comunitário do qual o pai é representante. Sente-se também indigno de ser respaldado pelo Si-mesmo masculino que deseja compartilhar com o pai, um representante maiúsculo de seu gênero.”

(FILHO, Alberto Pereira Lima – O Pai e a Psique)

Percebam como cada um dos alunos tem suas projeções paternas nesses senseis conforme suas situações de vida. 

Conforme o site do Instituto de Psicologia da USP[3], até agosto de 2019 aproximadamente 5,5 milhões de brasileiros não possuíam registro paterno na certidão de nascimento e quase 12 milhões de famílias são formadas por mães solo. Sem contar as imensuráveis agressões físicas, verbais e emocionais que crianças e adolescentes sofrem de seus pais.

Essa gritante realidade do abandono afetivo paterno escancara uma profunda ferida sombria em nossa sociedade: a invisibilidade de filhos vivos.

Ser abandonado ou rejeitado pelo pai pode causar traumas e, inconscientemente, a pessoa pode vir desenvolver complexos negativos que acarretarão eventuais bloqueios emocionais, sentimento de culpa, baixa autoestima, agressividade, depressão e até mesmo o suicídio.

Como o arquétipo paterno desenvolve o conceito de autoridade na consciência, quando o abandono acontece no período da infância a criança pode desenvolver problemas de ansiedade, insegurança e desobediência. Já na adolescência, o jovem tende a buscar de forma projetiva a referência paterna num terceiro, que pode ser um professor, avô, Deus, sensei, etc.

Com seus personagens Cobra Kai nos aproxima dessa realidade e descortina essa sombra coletiva, fazendo referência a uma grave situação social.

Persona e Sombra Pessoal

A sombra pessoal tem um importante papel em Cobra Kai e ela é fortemente evidenciada nos papeis dos rivais: Daniel x Johnny; Samantha x Tory; Miguel x Robby; Demetri x Hawk…

Muito além da dualidade bom/mal, certo/errado, rico/pobre, a projeção da sombra desperta verdadeiras reações violentas e desejo de destruição do outro. Este outro é uma ameaça inconsciente e constante, onde a simples presença pode ser a fagulha que leva à literalidade da guerra.

Em Cobra Kai os personagens têm uma persona estereotipada, uma espécie de “máscara” social que oculta seus conflitos internos e as problemáticas de vida. No Hawk[4] ela é tão vívida que, para esconder sua baixa autoestima, ele transforma sua persona com um enorme moicano e tatuagem de falcão nas costas; sua personalidade adquire força, violência e agressão. Em outras palavras, Hawk se identifica com a persona de um predador.

Ao estarmos aderentes à persona, acreditamos ser apenas aquilo que elegemos e ocultamos tudo que é indesejado e entendido como tabu ou ameaça.  Sendo assim, a consciência tende a reprimir ou não reconhecer estes conteúdos “proibidos”, deixando-os no inconsciente ocasionando a sombra.

Quanto mais notória for a persona, maior sua contraposição inconsciente, e a sombra é ativada em forma de projeção para compensar o desequilíbrio.

“A Sombra encarna tudo aquilo que nos perturba, isto é, tudo aquilo que é diferente de nosso ego ideal, contrário do que desejamos pensar de nós mesmos – ou que ameaça desestabilizar o senso de consciência de nós mesmos.”

(HOLLIS, James – A sombra interior – por que pessoas boas fazem coisas ruins?”, P. 27)

Daniel LaRusso é um homem rico, bem sucedido, tem uma linda mulher, família estruturada, sua técnica do karatê é a de defesa. Johnny Lawrence é o típico feio, sujo e malvado; acumula fracassos profissionais, seus relacionamentos amorosos são um fiasco e tem péssima relação com o filho. Sua técnica do karatê é a de ataque. 

Um é a sombra do outro, por isso não se suportam. Quando se encontram, veem projetado aquilo que não toleram em si.

Essa projeção não é intencional, mas invariavelmente a energia psíquica dentro de nós e que está fora do alcance da consciência se manifesta por meio de uma dinâmica que o ego não pode conter.

Por isso a rivalidade em Cobra Kai nos convida a olhar para nossos próprios rivais: o que não suporto no outro pode ser reflexo do que não suporto em mim.

Sombra Coletiva

Muito além da competitividade entre Daniel e Johnny, Cobra Kai também traz a disputa dos jovens que participam de cada dojo. Como dito, ambos personagens têm uma diferente forma de enxergar as situações da vida, que são espelhadas em suas técnicas marciais. Porém, os alunos são lentamente envolvidos na sombra de seus senseis, formando gangues e brigando de forma muito violenta. Em Cobra Kai não há diálogo, tudo é resolvido no soco.

No livro “Mal – o lado sombrio da realidade” Stanford diz que “a sombra individual e coletiva da nossa cultura e tempo tornam-se inevitavelmente interligadas” (p.79).

A sombra individual é única a cada um de nós, porém dividimos muitas características com o nosso entorno. A sombra coletiva é a tendência mais sombria da cultura. Cada um de nós carrega uma sombra pessoal e cada um de nós participa de uma sombra coletiva, elas estão interligadas.

A sombra coletiva de um grupo pode invocar a ocorrência de fenômenos de massa. Movimentos assim partem da identificação do grupo com uma ideologia ou um líder que projeta sua sombra sobre indivíduos ou grupos minoritários.

Dito isso, os integrantes do dojo Cobra Kai alimentam a sombra do grupo e são retroalimentados por ela. O dilema “STRIKE FIRST; STRIKE HARD; NO MERCY” é a explicitação da sombra grupal, onde os jovens não precisam de motivos para brigas pois entendem ser demonstração de força e coragem.

O dojo Miyagi-Do prega a paz interior, o foco e o equilíbrio. Porém Daniel LaRusso é vaidoso, convencido e tem uma atitude arrogante perante o Johnny, tentando desqualificá-lo sempre que possível. Seus alunos parecem bonzinhos, mas também se agrupam e brigam de forma violenta.

“A sombra coletiva, agregada e institucional sempre contém a sombra não examinada de cada um de nós. Aquilo do qual somos inconscientes, ou não desejamos enfrentar, contribuirá para nossa sombra coletiva e institucional.”

(HOLLIS, James – A Sombra Interior – Por que pessoas boas fazem coisas ruins? p. 138)

Uma curiosidade é que na 3ª temporada, Robby está na cadeia lendo o livro “O Senhor das Moscas”. Este livro fala sobre um bando de jovens que, após um acidente, ficam presos numa ilha deserta. Longe dos códigos morais dos adultos, esses jovens terão de reinventar uma nova comunidade mas, ao passar dos dias, o bando vai progressivamente cedendo à vida dos instintos, regredindo às pulsões de violência e de morte. A disputa pelo poder traga os meninos à irracionalidade, à violência, ao egoísmo, à selvageria. 

O livro faz referências claras aos acontecimentos dos alunos de ambos dojos que, numa disputa sombria pelo poder, são tragados pelo vértice da violência e ao risco de morte.

Nossa atualidade atravessa um período de agressividade coletiva uma vez que enxergamos o outro-discordante com uma ameaça. As redes sociais vivaram um palco de violência, xingamentos, mentiras e difamações pois, aos nos agruparmos em nossas gangues, atacamos sem misericórdia. 

Além disso quantas situações sociais não são resolvidas no tapa, na bala, nas humilhações? Os dizeres “STRIKE FIRST; STRIKE HARD; NO MERCY” são aplicados aos nossos inimigos virtuais, onde não temos piedade em estraçalhá-los, ganhando uma medalha de “lacradores”.

Repetição dos complexos

Para Jung, os complexos são organizados de uma forma dinâmica através da experiência pessoal. Tudo que desencadeia emoções forma registros, sinapses, memórias, que são armazenadas em “diretórios”. É como se os complexos fossem “arquivos” que giram em torno de um núcleo arquetípico. Eles são formados de forma consciente e inconsciente, que vão se acumulando de afetos e potencializados de energia.

Cobra Kai traz à luz que, quando não analisamos e ressignificamos as situações negativas, elas ganham força e potência energética. Além disso, como um ciclo de repetição, elas podem se reapresentar, como por exemplo:

Quantos traumas, situações difíceis e embaraçosas, quantas dificuldades não passamos pela vida e tentamos varrer para baixo do tapete do inconsciente? Quantas vezes nos pegamos errando os mesmos erros e não sabemos o porquê?

A miopia de si é um preço muito alto que pagamos nos entrepostos da vida.

A projeção da Anima e o Eros redentor

Por mais curioso que seja assistir a essa rivalidade, é interessante perceber quão importante são as mulheres na vida de Daniel e Johnny.

Amanda LaRusso é uma mulher sensata, conciliadora, vê as coisas em perspectiva, tem graça e integridade. Comanda a concessionária enquanto o marido devaneia, lida com os conflitos familiares de forma amorosa, enxerga com muita clareza o ridículo que é a rivalidade entre Daniel e Johnny. Amanda ancora Daniel na realidade da vida.

Carmem Dias é uma mulher linda e forte, que criou seu filho Miguel sozinha. É equilibrada, íntegra, trabalhadora, tem personalidade e presença de espírito. Uma mulher de pulso que sabe segurar e equilibrar os impulsos de Johnny.

Amanda e Carmem são projeções de anima de Daniel e Johnny. 

“A mulher, com sua psicologia tão diversa da psicologia masculina, é e sempre foi uma fonte de informação sobre as coisas que o homem nem mesmo vê. É capaz de inspirá-lo e sua capacidade intuitiva, muitas vezes superior à do homem, pode adverti-lo convenientemente. Seu sentimento, orientado para as coisas pessoais, é apto para indicar-lhe caminhos; sem essa orientação, o sentimento masculino, menos orientado para o elemento pessoal, não os descobriria.”

(JUNG, p.78 §296)

Quando os casais se encontram acidentalmente num restaurante, a conexão feita entre Amanda e Carmem quebram a animosidade e desinflam o sentimento de ameaça. Graças as mulheres, eles percebem que é possível se divertir um em companhia do outro.

Mas a grande redenção foi no resgate de Eros, ou seja, quando Ali Mills reencontra os ex-namorados: como a própria Afrodite, Ali os convida a perceber que ambos estão presos na adolescência e que não conseguiram crescer emocionalmente. No jantar de Natal eles conversam de forma leve e bem humorada sobre as dores do passado, e a participação madura da Amanda sacramentou esse momento importante. Na despedida, Ali diz para Daniel e Johnny: “A verdade é que vocês são mais parecidos do que querem admitir. Talvez vejam partes de si mesmos no outro e acabam não gostando do que veem” (T3E10).

Como Eros, Ali mostrou que é importante resgatar o passado para entender o futuro mas que é patológico manter-se preso a ele.

O núcleo adulto feminino da trama mostra que o amor transcende o tempo, que o respeito também é uma forma de amor, que é preciso aceitar o convite de Eros para acender à luz da consciência pois no amor nos melhoramos para o outro.

Quando o amor se faz presente, a vida se transforma.

Daniela Euzebio – analista em formação pelo IJEP – (11) 99623-5529 SP-SP

BIBLIOGRAFIA

FILHO, Alberto Pereira Lima – O Pai e a Psique. São Paulo – Paulus, 2002

HOLLIS, James – A Sombra Interior – Por que pessoas boas fazem coisas ruins? São Paulo – Novo Século, 2010

JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2016d (Obras completas de C.G.Jung, v. 7/2). 

JUNG, Carl Gustav. O Espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985 (Obras completas de C.G.Jung, v. 15).

SANFORD, John A. MAL – O Lado Sombrio da Realidade. São Paulo: Paulinas, 1988

Instituto de Psicologia da USP: 


[1] O Espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985 (Obras completas de C.G.Jung, v. 15).

[2] Fonte: https://twitter.com/netflix/status/1349053533841068033

[3] https://www.ip.usp.br/site/noticia/o-abandono-afetivo-paterno-alem-das-estatisticas/#:~:text=Aproximadamente%205%2C5%20milh%C3%B5es%20de,s%C3%A3o%20formadas%20por%20m%C3%A3es%20solo.

[4] Hawk = Falcão (tradução do inglês)

Daniela Euzébio 

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