Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu, não é ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
(PESSOA,1977, p. 546)
As noções do que se entende por “Eu” ou o complexo do Ego e o que seria um sujeito podem ser aprofundadas a partir das narrativas no texto junguiano. Neste a centralidade da consciência é frequentemente questionada e a unilateralidade aparece como efeito da função de julgamento e dos efeitos da atividade objetivante da consciência. A unidade da consciência seria uma mera ilusão que não acontece, nem nunca aconteceu.
O Complexo do Ego seria um entre os múltiplos – o Eu como um dos outros na psique em cada um. Jung destaca que o complexo do Ego seria formado pela percepção geral do corpo, existência e pelos registros da memória. “O ego é um aglomerado de conteúdos altamente dotados de energia e, assim, quase não há diferença ao falarmos de complexos e do complexo do ego. ” (JUNG, 1983, p.67).
Quando Jung fala do complexo do “Eu” diz que “(…) devido à sua ligação direta com as sensações corporais é o mais estável e rico em associações. (…) perigo gera medo: este é um afeto e por conseguinte é seguido de estados corporais, (…) tensões musculares e excitação do sistema nervoso simpático. ” (JUNG, 1999, §86).
Se os hábitos produziriam marcas, traços unificados em complexos e o Eu é um dos complexos então, pode-se pensar que o hábito que produziria o Eu através de sínteses passivas de associação seria o hábito de dizer Eu. Ou como aponta Deleuze, através de Hume: “nós somos hábitos, nada mais que hábitos, o hábito de dizer Eu (…) Talvez não exista resposta mais surpreendente para o problema do Eu” (SAFATLE, 2012).
Haveria uma fantasia dominante, apoiada na perspectiva histórica, de que sujeito é, necessariamente, sujeito do conhecimento, da identidade, substância ou mesmo forma transcendental e lógica que unifica o diverso da intuição sensível ou todos os eventos que dariam sustentação a forma indivíduo. Esta fantasia dá realidade ao homem natural e à forma indivíduo que pode condensar nele os atributos do que foi descrito como sujeito moderno desde Descartes (unidade, autonomia e autenticidade etc.).
Jung dará ao “fator psíquico” um sentido diferenciado. Psíquico é o nome dado por ele para os elementos que aparecem como perturbação de um modo de proceder empírico das ciências naturais; ou seja psíquico é aquilo que aparece perturbando a determinação da velocidade e da média das reações e de suas qualidades – “(…) descobri os complexos de tonalidade afetiva que anteriormente eram registrados sempre como falhas de reação. ” (JUNG, 1984, §196). Jung transforma as “falhas” no elemento fundamental que orienta o reconhecimento do que está agindo sem que a consciência perceba – inconscientemente. E, mesmo não podendo ver, tocar ou medir isto que produz este efeito é através deste efeito que é possível alguma aproximação do que seriam os complexos. Por isso o caminho é errante seguindo atalhos ásperos e sinuosos que frequentemente se perdem.
Jung distancia-se da posição identitária, substancialista, literal e propõe uma noção de sujeito que pode ser entendida como posição de indeterminação em relação ao que parece determinado pelas configurações dos complexos seguindo padrões arquetípicos. Sujeito, para Jung, refere-se não a uma substância com identidade ou uma instância unificadora central que acompanha todas as experiências, mas como o que surge como perturbação e obstáculo continuidade da vivência consciente do objeto:
Entendo por sujeito, convêm dizer desde já, todos aqueles estímulos, sentimentos, pensamentos, e sensações vagos e obscurosque não é possível demonstrar que promanem da continuidade da vivência consciente do objeto, mas que pelo contrário, surgem como perturbação e obstáculo, (…). (JUNG, 1981a, §756)
Se os termos unidade, autonomia e autenticidade etc. não forem problematizados, a fantasia do homem natural realiza-se na forma Indivíduo, que é visto, literalmente, como algo natural e necessário. E, os atributos nele condensados serão a referência para o polo saudável em relação ao qual será configurada a psicopatologia atual.
Autor: Ajax Perez Salvador
Referências
ADORNO, Theodoro e MAX Horkheime. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Vols. VIII-2. Petrópolis: Vozes, 1984.
-. Fundamentos de Psicologia Analítica. Vol. Vol. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 1983.
-. Psicogênese das doenças mentais. Vol. III. Petrópolis: Vozes, 1999.
-. Tipos Psicológicos. Rio de Janeiro: Zahar, 1981a.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S A, 1977.
SAFATLE, Vladimir. “Curso Patologias do indivíduo.” Anotações de Aula do Curso na Fac. filosofia da USP. São Paulo, 2011.
-. “Introdução á experiência intelectual de Gilles Deleuze.” Aula do curso de Filosofia da USP. São Paulo, 2012.
“Tudo isso se explica pelo fato de a chamada unidade da consciência ser mera ilusão. É realmente um sonho de desejo. Gostamos de pensar que somos unificados; mas isso não acontece nem nunca aconteceu. Realmente não somos senhores dentro de nossa própria casa. E agradável pensar no poder de nossa vontade, em nossa energia e no que podemos fazer. Mas na hora H descobrimos que podemos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalhados por esses pequenos demônios, os complexos. Eles são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção. ” (Jung, 1983, p. 67).
“Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. (…) A humanidade teve que se submeter a terríveis provações até que se formasse o eu, o caráter idêntico, (…)” (Adorno, 1985.) p.18
O eu que, após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais como algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora da ação. (…) (Adorno, 1985.) p.16
“O psíquico aparece, por conseguinte, como uma perturbação de um provável modo de proceder exigido pelos respectivos métodos. ” (JUNG, 1984, §194)
A psique não apenas produziria interferências, dissolveria e indeterminaria tudo que parece determinado, mas também cria. A atividade mito poética da psique é performativa e produz. Assim como quando um padre na igreja em meio a um ritual, cria aquele determinado marido e aquela esposa ao declará-los marido e mulher; estes esposos não existiam antes da declaração. A psique cria configurando complexos associativos que não são propriedades dos indivíduos mas que os constituem e agem através destes e nas formas como vivem, se relacionam social, histórica e culturalmente.
Unidade pressupõe a elevação do princípio de identidade e não contradição a condição de postulados ontológicos e não apenas premissas lógicas. Autonomia pressupõe a crença em constituição transcendental de objetos da experiência. Autenticidadepressupõe a realidade de termos singulares. (SAFATLE,2011)
A palavra indivíduo carrega ainda hoje o sentido daquilo que não pode ser dividido (SAFATLE, 2011). Indivíduo associa alguns atributos básicos como:
1. Autonomia individual da vontade e das condutas; serem legisladores de si próprios e assim poderem se auto-determinar, deliberando racionalmente em sua interioridade (tribunal mental onde são julgados os atos).
2. A autenticidade, como expressão da individualidade autônoma permaneceu ligada à mimese (capacidade da imitação perfeita), até o romantismo com noção romântica de gênio e a ideia de expressão indicando a manifestação intencional dos sentimentos do artista.
3. Esta unidade reflexiva teria a função de assegurar a auto-identidade que garantiriam que as representações mentais que aparecem em mim “são minhas”. Cada movimento seria desdobramento da mesma identidade e esta unidade permitiria ver os sintomas, automatismos etc. como não meus. Esta unidade está também na base da noção de personalidade como “capacidade de narrar sua própria vida na primeira pessoa através de uma unidade coerente”
Autonomia, autenticidade, unidade e seus conceitos derivados como imputabilidade, auto-determinação, individualidade, estilo, interioridade, auto-identidade são atributos fundamentais do que se entende por humanidade do homem. A noção de indivíduo pode sustentar, também, a noção de estado que daria a garantia de que estes poderão agir como associações entre indivíduos, sob a forma contratualista, em defesa de seus sistemas particulares e egoístas de interesses.
“O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e a outra vida, o temor da morte e da destruição, está irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaçava a cada instante a civilização. ” (Adorno, 1985.) p.19