“Tudo aquilo que quisermos mudar nas crianças, devemos primeiro examinar se não é algo que é melhor mudar em nós mesmos.” C. G. Jung, fundador da psicologia analítica.
Ao receber uma criança no consultório, esta nos chega com uma queixa específica e narrada por seus pais ou cuidadores. Pode ser algum medo, questões de cunho comportamental, dificuldades de aprendizagem, questões de relacionamento e interatividade social, entre outras. Os pais narram as dificuldades destes pequenos de acordo com o que veem e percebem em seus filhos. Às vezes são queixas pautadas nas narrativas escolares proveniente das observações de professores e coordenadores pedagógicos, como também, podem estar orientados por outros profissionais da área de saúde. Às vezes, os pais podem associar estas condições às suas próprias dificuldades e estilos pessoais, mas raramente passa disto.
Mas, em nosso papel como analistas, como compreender se aquela queixa é de fato o que aflige a criança, ou se ela mascara ou disfarça algum tipo de questão mais profunda? O quanto este comportamento ou dificuldade apresentado pelos pequenos não são apenas sintomas de questões mais complexas e inacessíveis para seus pais? Diferente do cliente adulto, a criança, que está em processo de desenvolvimento de personalidade e de estrutura de ego, não tem um discurso analítico, racional e fluente para explicar aquilo que vive e que está sentindo. Por este motivo, é importante que se faça uma investigação cuidadosa e detalhada sobre a vida desta criança, para que se possa desenvolver um processo terapêutico que seja efetivo para o atendimento de suas reais questões. É aqui que entra o processo de psicodiagnóstico, que deve preceder ao processo terapêutico.
O processo de psicodiagnóstico tem, de acordo com KRUG, (2016), a seguinte definição:
Compreendemos que o psicodiagnóstico é um procedimento científico de investigação e intervenção clínica, limitado no tempo, que emprega técnicas e/ou testes com o propósito de avaliar uma ou mais características psicológicas, visando um diagnóstico psicológico (descritivo e ou dinâmico), construído a luz de uma orientação teórica que subsidia a compreensão da situação avaliada gerando uma ou mais indicações terapêuticas e encaminhamentos. (KRUG, 2016, pag.18)
Esta definição está em acordo com o que também diz outra teórica da área, OCAMPO (1995), quando afirma que o processo de psicodiagnóstico deve observar e respeitar um tempo limite, onde as partes – analista e cliente – objetivam “conseguir uma descrição e compreensão, o mais profundo e completa possível, da personalidade total do paciente ou do grupo familiar” (OCAMPO, 1995, pag 17). A autora completa a visão, dizendo que o processo “abrange os aspectos passados, presentes e futuros desta personalidade, utilizando para alcançar tais objetivos certas técnicas.” (OCAMPO, 1995, pag 17).
A partir desses pontos, entende-se que o processo de psicodiagnóstico é uma etapa inicial que pode ter grande valia para o trabalho terapêutico com a criança, pois é por meio dele que o analista poderá aprofundar e detalhar quais são as questões que envolvem a criança – a estrutura e ambiente familiar, escolar, social; seu mundo interno de fantasias e de projeções. O psicodiagnóstico é uma construção inicial do caso, que deve ser realizado com muita qualidade e com critérios sérios e éticos. Não se deve utilizar esta etapa do processo para taxar e reduzir a percepção acerca das questões, mas pelo contrário para ampliar e abrir possibilidades de acompanhamento e orientações. A criança, segundo JUNG (1991), “tem uma psique extremamente influenciável e dependente, que se movimenta por completo no âmbito nebuloso da psique dos pais, do qual só relativamente tarde consegue libertar-se.” (JUNG, 1991 §99)
Em sua obra O desenvolvimento da personalidade, Jung é bastante crítico e reticente ao falar do trabalho psicológico com crianças. Ele pontua que essa atividade é muito difícil e que deve ser realizada com muita cautela por parte do analista, pois como a criança é uma personalidade em formação, e como dito anteriormente – extremamente influenciável, se for orientada de modo indevido, pode-se intervir de forma inadequada no processo de aquisição de consciência, que é, segundo Jung a tarefa da infância. “Precisamos lidar com algo de imprevisível, pois não sabemos como e em que sentido se desenvolverá a personalidade em formação”. (JUNG, 1991, §292). O conhecimento, a simplicidade e abertura do analista, como também seu próprio trabalho de autodesenvolvimento é considerado por Jung como crucial para o trabalho com crianças. Isto posto, é importante destacar que Jung deixou escritos importantes sobre a personalidade infantil em desenvolvimento, mas não se aprofundou sobre o tratamento em particular da criança. Autores como Mario Jacoby, Michael Fordham e Erich Neumann, ampliaram o legado de Jung e a visão da psicologia analítica para o tratamento clínico deste público.
FODHAM (2001), corrobora com a visão de Jung a respeito da complexidade e da seriedade necessárias para o trabalho com crianças, e destaca em sua obra A criança como indivíduo a seguinte colocação:
[…] a análise junguiana infantil é uma técnica que exige treinamento especial. A perícia que o analista infantil deve atingir centra-se em: dar início à terapia, já que isso requer a elaboração de um diagnóstico da família, utilizar técnicas lúdicas e estar permanentemente atento às ocasiões em que os pais precisarem de ajuda (FORDHAM 2001, pag. 144).
O princípio básico deixado por Jung e desenvolvido por seus sucessores neste tema, postula que a psicologia infantil deve ser compreendida à luz da psicologia familiar e dos complexos materno e paterno. Para Jung:
A criança tem uma psicologia singular. Assim como o seu corpo, durante a vida embrionária, é uma parte do corpo materno, também sua mente, por muitos anos, constitui parte da atmosfera psíquica dos pais. Este fato esclarece de pronto porque muitas das neuroses infantis são muito mais sintomas das condições psíquicas reinantes entre os pais do que propriamente doença genuína da criança. Apenas em parte a criança tem psicologia própria; em relação à maior parte ainda depende da vida psíquica dos pais. (JUNG, 1991, §143).
A forma e a proporção em que os complexos se constelam no inconsciente das crianças, devem surgir durante o processo psicodiagnóstico e servirá para nortear grande parte do trabalho a ser desenvolvido com a criança, bem como com os pais. Em acordo com a visão de Jung, JACOBY (2010) afirma que:
As disposições e necessidades arquetípicas no indivíduo estão interligadas com o meio de um modo intrincado que apresenta uma influência poderosa, marcante, especialmente na primeira infância. Nesse encontro entre a disposição natural da criança e a reação do ambiente, nós achamos a origem de muitos complexos psíquicos, especialmente quando a criança responde aos vários modos de seus pais se sintonizarem com ele. (JACOBY, 2010, pag. 142).
Ainda sobre a natureza dos complexos e a importância de se considerar sua presença e manifestação nos diagnósticos, JUNG (1987) afirma:
Em psicoterapia, o reconhecimento da doença depende […] muito menos do quadro clínico da enfermidade do que dos complexos nela contidos. O diagnóstico psicológico visa ao diagnóstico dos complexos e, por conseguinte, à formulação de fatos que seriam antes camuflados do que mostrados pelo quadro clínico da doença. (JUNG, 1987 §198).
Ao estruturar um processo de psicodiagnóstico infantil, embasado na psicologia analítica, é importante que dentro deste processo, todas as etapas (apresentadas a seguir) tenham como ideia central esta imagem da criança, como ser em formação, ligada inconscientemente aos seus pais e sob efeito da autonomia dos complexos.
De modo geral o processo de psicodiagnóstico abrange, as seguintes etapas:
Entrevista de anamnese com os pais
Esta entrevista pode se desenvolver em dois ou três encontros e tem como objetivo principal detalhar de forma mais específica possível a história de vida da criança. Isto engloba compreender seu ambiente familiar, desde um olhar sobre a infância de seus pais, a relação conjugal de ambos, condições sob a qual a criança foi concebida. Expectativas atendidas ou frustradas com a chegada da criança na família, histórias de abortos, outros filhos, relações parentais dos pais com seus genitores. JUNG (1991) afirma que “A causa recalcada do sofrimento, além da neurose […] irradia-se de modo misterioso pelo ambiente e afeta também os filhos, caso existam. Deste modo são transmitidos muitas vezes por várias gerações” (JUNG, 1991, § 154).
Uso de teste psicológicos
Os testes psicológicos são uma ferramenta de bastante valor neste processo. Cabe aqui destacar que eles são parte do processo e tem como objetivo ajudar o profissional a conhecer e ampliar a sua visão sobre os pontos que estes tetes se propõe a averiguar. Os testes não detêm a verdade sobre a condição psicológica da criança. Toda criança vive sobre um determinado ambiente e contexto e estes dados devem ser levados em consideração na análise a ser realizada. Eles podem ajudar a reforçar determinadas percepções como também a descartar hipóteses.
É importante destacar que os testes psicológicos são ferramentas de uso exclusivo do psicólogo, mas analistas junguianos e arte terapeutas podem e devem se valer dos conhecimentos das expressões e das representações simbólicas que são produzidas pelas crianças nos seus desenhos, pinturas e histórias. As cores, as formas e mesmo a atitude da criança ao desenhar contém muito sobre seu psiquismo. O processo de simbolização de conteúdos inconscientes é muito presente na expressão infantil. As imagens podem trazer representações de conteúdos arquetípicos, sombrios e dos complexos. Segundo RABELLO (2016), no livro O desenho infantil, ao criar, a criança estabelece uma dialética com a sua produção e ela “transforma a sua imaginação em formas gráficas e deixa registrado o que está sentindo, o que pensa, ou o que desejaria que acontecesse. (RABELLO, 2016, pag. 22). Ainda sobre o uso dos desenhos, FURTH (2004) afirma que “os complexos são descobertos a partir da análise de imagens do inconsciente, expressas nos desenhos, bem como nos sonhos.” (FURTH, 2004, pag. 33)
Hora lúdica
Esta etapa consiste em uma ou duas sessões lúdicas com a criança. Nestas interações o analista precisa estabelecer uma relação com a criança e adotar uma postura de facilitador e observador atento na forma de expressão de seu cliente. Neste momento, o analista poderá se utilizar de recursos diversos para esta interação. A espontaneidade e a criatividade precisam estar presentes de modo genuíno. O brincar tem uma linguagem própria, sendo que neste fazer lúdico, a criança expressa e comunica a sua forma de estar no mundo. Segundo FORDHAM (2001):
[…] a brincadeira é um veículo para a comunicação significativa, um elemento que se revela especialmente útil ao analista. Em vez de falar, a criança irá brincar, exprimindo seus amores e ódios, medos e esperanças, às vezes de forma transparente, mas, em geral, de modo indireto. (FORDHAM, 2001, pag. 26).
Olhar multidisciplinar
O analista poderá contar ainda com relatos e com materiais de outros processos diagnósticos aos quais a criança já tenha sido submetida e que são conduzidos por outros profissionais, como pediatra, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psiquiatra, professores e pedagogos.
Todas estas etapas devem, ao final, serem consolidadas em uma visão global e sistêmica acerca da vida e da dinâmica da criança. Nada deve ser simplesmente descartado. Este conjunto de observações e dados coletados com e sobre a criança, constituem um material muito precioso para o analista junguiano. São recortes, expressões e manifestações genuínas da dinâmica inconsciente da criança, bem como de aspectos de seu drama familiar. Portanto, a análise deste material deve ser muito cuidadosa, para que o analista possa, ao concluir o psicodiagnóstico, estruturar uma devolutiva para os pais de modo que, nesta reunião, estes possam receber as orientações de forma clara sobre a conduta e continuidade do processo com a criança. Vale destacar ainda que, há uma grande chance de, com todo o processo realizado, de surgirem questões que não foram apontadas pelos pais no início do processo, pois segundo o próprio C. Jung (1991)
[…] tanto os pais como os filhos estão inconscientes a respeito do que está acontecendo. Como são contagiantes os complexos dos pais, deduz-se dos efeitos que suas singularidades produzem nos filhos. Mesmo que os pais façam esforços constantes e eficientes para se dominarem, de modo que um adulto nem sequer perceba o mínimo vestígio de um complexo adulto, os filhos, contudo, de qualquer maneira serão afetados por ele. (JUNG, 1991, §106)
Por esta razão é necessário que se trabalhe de forma respeitosa, honesta e transparente, tendo como premissa o processo de desenvolvimento da criança bem como seu bem-estar físico e emocional. Caso haja a necessidade de orientação de terapia para seus pais, visto que a consciência e o ego da criança se encontram em formação e ainda sob forte influência dos complexos familiares, esta orientação precisa ser realizada.
Referências Bibliográficas
FORDHAM, Michael. A criança como indivíduo. 1ª ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
FURTH, Gregg M. O mundo secreto dos desenhos – uma abordagem junguiana da cura pela arte.Coleção Amor e Psique 1ª ed. São Paulo: Paulus, 2004.
HUTZ, Claudio Simon; BANDEIRA, Denise H.; TRENTINI, Clarissa M. & KRUG, Jefferson Silva (organizadores). Psicodiagnóstico. Porto Alegre. Artmed, 2016
JACOBY, Mario. Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporânea com crianças. Coleção Amor e Psique. São Paulo: Paulus, 2010.
JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. [1972] 5ª ed. Vol. XVII. Petrópolis: Vozes, 1991
___________. A prática da psicoterapia. [1971] 3ª ed. Vol. XVI/1. Petrópolis: Vozes, 1987
OCAMPO, Maria Luísa S. de. & colaboradores. O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995
RABELLO, Nancy. O desenho infantil. Entenda como a criança se comunica por meio de traços e cores. 3ª ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2019