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Dogville: um ensaio sobre a sombra coletiva

A sombra personifica tudo o que o sujeito não reconhece em si e sempre o importuna…(JUNG, 2000).

Dogville é um filme de 2003, escrito e dirigido pelo dinamarquês Lars von Trier, cineasta conhecido por suas histórias críticas à sociedade ocidental e à indústria cinematográfica carregadas de violência psicológica e física . A produção conta a história de Dogville, uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos, ensimesmada e pouco próspera, onde todos se conhecem. A história se passa nos anos 30, durante a Grande Depressão – cenário de crise financeira e degradação das relações sociais. Tom Jr., morador da cidade e aspirante a escritor e filósofo, busca incentivar a discussão de questões morais da cidade com seus habitantes, como se quisesse fazer com eles um processo terapêutico e filosófico coletivo. Ele deseja que seus concidadãos discutam sobre suas atitudes, sua moral e sua ética, refletindo sobre sua evolução espiritual e dilemas morais e deixando de se preocupar apenas com os afazeres cotidianos. Os demais habitantes de Dogville, no entanto, em sua inércia e pela pacatez da vida que levam, se defendem e rejeitam o apelo de Tom Jr. à reflexão, afinal, a comunidade é unida e todos se sentem cidadãos de bem.

A tranquilidade de Dogville é quebrada por barulhos de tiros na entrada da cidade e a repentina chegada da atormentada e, até então, desconhecida Grace. Desconfiados da fugitiva, os habitantes recusam a acolhê-la; no entanto, após longo debate e por influência e sugestão de Tom, resolvem escondê-la, não sem antes conhecê-la, saber suas reais intenções, sua índole e se está apta à convivência local. Grace acaba ganhando duas semanas para ser conhecida e aprovada pelos moradores ou ser expulsa.

No ímpeto de ajudar a nova moradora, Tom Jr. sugere que Grace se ofereça para auxiliar os moradores de Dogville em seus afazeres para, assim, conquistar seus corações e garantir sua estadia. A essa altura, ele já demonstra seu interesse amoroso por Grace. De início, os moradores não aceitam a ajuda, dizendo que os favores ofertados são desnecessários, mas, aos poucos, ela passa a ajudar a todos, recebendo inclusive um pequeno salário, além de abrigo e esconderijo. Porém, um único morador, chamado Chuck, resiste em aceitar Grace. Descobrimos, posteriormente, que sua rejeição é fruto de uma paixão que nutre secretamente pela estrangeira.

Até esse momento Grace trouxe à consciência de Dogville tarefas que não precisavam ser realizadas, mas que, uma vez feitas, trouxeram mudanças perceptíveis na vida da sociedade, elevando a qualidade de vida das pessoas,  o excedente da colheita local ou encontrando tempo livre para realizar atividades que não conseguiam antes.

A situação parece ser perfeita, Grace colabora com os moradores e eles retribuem e existe muita simpatia no ar. A visitante tolera as manias e os egos dos moradores com muita paciência. Como por exemplo, o morador cego que insiste em provar que não está cego, descrevendo detalhes de objetos e da paisagem ou ainda a provocação e ameaça de um menino que exige que ela o puna com palmadas pela sua malcriação. Ao final de seu prazo fatal de duas semanas, todos aprovam a permanência de Grace, até mesmo Chuck.

A nova rotina transcorre em harmonia até o momento em que a polícia surge a procura de Grace. Nesse momento, os moradores, antes fascinados e tolerantes com Grace, agora se sentem ameaçados e passam a questionar novamente sua índole. Para manterem a cidade como esconderijo para a fugitiva da polícia, os moradores, transtornados, resolvem impor condições: reduzir o salário de Grace e aumentar a carga horária de seus serviços comunitários, com a justificativa que o risco de mantê-la na cidade aumentou.

Dias depois, a polícia então retorna à Dogville e, enquanto os moradores da cidade despistam os patrulheiros, Chuck se aproveita do alvoroço causado pela viatura na cidade e estupra Grace em seu esconderijo. Após esse evento, acuada e fragilizada, Grace conta do ocorrido ao único que parece merecer sua confiança: Tom Jr., que elabora um plano de fuga de Grace com o transportador de mercadorias local. O motorista cobra 10 dólares pelo transporte, que Tom pega com seu pai. No entanto, mesmo após o pagamento, o transportador não cumpre o combinado e, no caminho da fuga, estupra Grace e a leva de volta para Dogville. De volta à vila, além de ser chamada de fugitiva e traidora, Grace ainda é acusada de ter roubado os 10 dólares do pai de Tom, que não assume a responsabilidade pelo feito.

Os moradores então tiram tudo de Grace, apedrejam seu esconderijo e colocam nela dispositivo anti-fuga (criado por um rapaz que ela ajudou nos deveres de matemática), que consiste em uma pesada roda de concreto amarrada ao pescoço. Não bastasse o fardo, nesse novo contexto, Grace ainda é obrigada a ajudar os moradores nas tarefas e passa a ser constantemente estuprada por Chuck, cuja esposa descobre os atos sexuais do marido, mas culpa a forasteira pelo ocorrido.

Grace deixa de ser humana, se tornando um bode expiatório para Dogville. Os atos que cometeu enquanto buscava ser aceita pela cidade tornaram razões para a destruição de sua humanidade: agredir uma criança e corromper um homem casado figuram entre os principais. Em sua vulnerabilidade, ela agora é abusada de várias formas e maneiras pelos moradores e seu amante, Tom Jr., nada faz além de observar, refletir sobre os acontecimentos e tentar em vão fazer amor com ela.

Bodes expiatórios são necessariamente criações da sombra coletiva, que busca desumanizar as  vítimas das projeções de uma sociedade e trazer superioridade a um grupo; grupo esse que ao se considerar justo e bom, coloca no outro o mal que deixa de reconhecer em si mesmo e deseja eliminá-lo (ZWEIG e ABRAHMS, 1994). Grace torna-se o repositório de projeções sombrias da coletividade, mesmo tendo contribuído para a melhoria da qualidade de vida local. Ela representa o que Dogville acredita não possuir em seu convívio social, tudo que os cidadãos de bem rechaçam e que, por isso, se sentem autorizados a abusar dela de maneira bárbara.

Passados os dias, o único que ainda não violenta Grace é Tom Jr., que se mostra passivo diante das atrocidades praticadas rotineiramente contra ela. Dogville poderia muito bem ter expulso Grace da cidade assim que sua tentativa de fuga frustrada foi descoberta ou ainda quando a sua suspeita  periculosidade foi trazida à tona, mas curiosamente não o faz. Ao invés disso, a cidade a obriga a arrastar uma roda de concreto amarrada ao pescoço e executar as tarefas menos dignas que antes ninguém fazia, se tornando então uma escrava, menos humana que aqueles que a escravizam, portanto digna de tal tratamento e ao mesmo tempo vítima da projeção das sombras dos moradores da cidade, sendo para os homens objeto de satisfação sexual e para as mulheres um objeto de projeção de seu lado sombrio.

Mesmo Grace nessa situação, Tom Jr. continua seu cortejo e ela se nega a fazer sexo com ele, dizendo que gostaria que fizessem amor apenas quando forem livres. Tom Jr. insiste e afirma ser o único homem naquela vila com quem ela ainda não transou. Diante da insistência de Tom, Grace diz que ele estava tentando se aproveitar da fragilidade dela, assim como os outros homens da cidade. Com a rejeição, Tom resolve entregar Grace àqueles que a procuram.

Com essa atitude final, Tom se revoltou com Grace por ela lhe apresentar a sua sombra, que ele até então projetava nos outros moradores de Dogville. De fato, Tom não amava Grace, pois permitiu que ela sofresse, jogou sobre ela a responsabilidade de roubar seu pai e ainda a traiu ao entregá-la aos seus algozes. A cada abuso sofrido por Grace, Tom mostrava-se como co-abusador, conivente com as atitudes dos moradores, mas negava para si a existência desse lado sombrio. O que o impedia de estuprá-la não era o tal amor que sentia por ela, mas o fato dele não admitir que fazia parte da sombra que a escravizava, e ao final do dia ele também queria abusar dela. Ao ser confrontado com essa atitude, não conseguiu encarar essa realidade e resolveu, como todos os moradores da cidade, puni-la.

Ao dizer para Tom que desejava fazer amor com ele quando forem livres, Grace coloca à prova as intenções do homem que dizia amá-la, pois se ele realmente a amasse, a saída mais plausível seria libertá-la para que pudessem ser livres juntos, ou ainda, respeitá-la em sua vontade, algo que foi se tornando cada dia mais difícil. Mesmo debilitada e já sem dignidade, perante Tom, Grace ainda mantinha seus valores.

O trabalho artístico de Lars von Trier pode ser visto como um conto de fadas moderno. Grace vem para Dogville e é recebida com desconfiança, mas aos poucos se torna, de fato, uma graça para a cidade, que era inconsciente das coisas que poderiam ser melhoradas. A melhoria na vida das pessoas e a retribuição ao trabalho de Grace acabam quando os moradores são confrontados com o potencial perigo que ela pode representar para o grupo, afinal Grace, apesar de bondosa e prestativa, ainda era uma forasteira desconhecida.

O jogo de projeções em Dogville é complexo e algo a ser observado: Tom projeta sua falha de caráter e permissividade moral nos outros moradores da cidade, querendo que, ao discutir a ética e a moral os cidadãos se conscientizassem do seu lado oculto; no entanto, ele esquece que é morador dali e que fazia parte da sombra de Dogville, dessa forma, precisava antes de tudo refletir sobre si mesmo. Diante dos diversos abusos cometidos contra Grace, e mesmo “apaixonado” por ela, nada fazia para aliviar o sofrimento e as punições às quais ela era submetida, além de se aproveitar da sua fragilidade para receber afeto e uma esperança de sexo.

Os moradores de Dogville projetaram suas frustrações e miséria espiritual, revelando o pior de si. Colocavam a responsabilidade de seus atos em Grace, justificando os abusos e violências ironicamente como resultado da bondade deles ao protegê-la. A coletividade é capaz de tirar do homem as rédeas morais e éticas, tira dele o questionamento moral, fazendo com que as atrocidades sejam cometidas de maneira banal. A sombra coletiva estava constelada de maneira poderosa em Dogville e ninguém se questionava sobre a barbaridade da situação. Em verdade, todos conviviam de maneira tranquila com isso, pois Grace já não era humana ao ponto de levantar questionamentos éticos e morais sobre os atos que cometiam.

Podemos observar que Grace torna-se vítima do inconsciente coletivo e da sombra coletiva de Dogville, mas poderia muito bem ser uma imigrante qualquer que vende seu trabalho de maneira barata em troca de condições mínimas de vida nos dias atuais. Apesar de sua honestidade e paciência, inevitavelmente foi vítima das projeções coletivas, sendo atribuída a ela toda a responsabilidade pelos problemas dos moradores locais. Grace, como refugiados e as minorias sob ataque no mundo de hoje, é vista como indigna de voz ou direitos iguais a uma parte dominante da sociedade. Ainda que conquiste, com muito suor, direitos mínimos na nova terra, é tachada como ingrata, carregando  a pesada roda de concreto amarrada ao pescoço, enquanto a outra parte apenas a explora enquanto acredita estar fazendo um ato de caridade e bondade.

A reviravolta de Dogville ocorre no terceiro ato, quando descobrimos que quem procurava por Grace era, na verdade, seu pai, um bandido poderoso, e não a polícia. Ao encontrá-la naquele estado deplorável, o pai de Grace se revolta e deixa a cargo da filha decidir o destino da cidade. O pai de Grace é sua sombra, um animus arrogante, racional e impiedoso. O embate entre os dois é revelador, pois descobrimos que por trás da subserviência e passividade de Grace existe um ego arrogante que se achava superior aos moradores de Dogville e tinha pena de suas atitudes, mesmo as mais execráveis, sob a visão de que eles faziam o melhor que podiam dadas suas limitações.

Ao ser convencida pelo pai (em linguagem analítica, tomada pelo animus sombrio) e se dar conta de que, na verdade, aquelas pessoas abusaram da sua vulnerabilidade, Grace ordena que os capangas de seu pai eliminem aquele lugar da face da Terra (com requintes de crueldade), assumindo então seu lado sombrio e vingativo.

Dogville é uma história soturna e sombria que pode levar a muitas reflexões sobre a natureza humana. É sombriamente ácida, inclusive na escolha do nome da sua protagonista: Grace (Graça), que ao chegar na cidade era uma ameaça e, por um bom tempo, se tornou, de fato, uma graça. Trouxe à consciência de Dogville que “muitas coisas que não precisavam ser feitas”, na verdade, eram necessárias para que algo se transformasse. No entanto, com a incerteza sobre sua origem e sua índole, os moradores da vila começaram a abusar de sua boa vontade e, com o tempo passaram, a culpá-la dos problemas da cidade como um todo, sendo ela ao invés de acolhida, uma refém dos moradores e de suas sombras opressoras.

Os moradores de Dogville jamais diriam ser capazes de tolerar que uma pessoa fosse escravizada, estuprada, humilhada e abusada na presença deles, ou ainda, que seriam eles capazes de cometerem esses crimes, afinal, acreditavam ser boas pessoas e que a comunidade era um local bom e acolhedor. Apesar disso, a sombra é perniciosa e passa despercebida, principalmente em espaços coletivos, onde o inconsciente constela e encontra eco nos vários indivíduos. O final de Dogville é literal, no sentido de que a sombra levou a cidadela ao seu fim. Simbolicamente, a constelação da sombra coletiva destrói o tecido social podendo levar a catástrofes sociais e humanitárias (ZWEIG e ABRAHANS, 1994).

Grace trouxe consciência a Dogville, mas esta não soube lidar com isso. Para lidar com a sombra não basta encará-la, mas aceitá-la e a partir daí conhecê-la e evitar que seu governo se aposse da consciência, seja individual ou coletiva. Não foi isso o que aconteceu em Dogville. A crítica de Lars von Trier é também uma crítica à sociedade e um alerta sobre a banalidade do mal e a astúcia da sombra, que se disfarça de boas ações enquanto massacra vidas. O final catártico é também sombrio, pois, mesmo justificada, a vingança de Grace não promove a transcendência no embate com Dogville e ao contrário do que ela fez no início da história ao trazer melhorias na vida dos moradores, ela acabou com eles, manifestando a sua mais profunda sombra.

Mauro Angelo Soave Junior

Membro analista em formação pelo IJEP

Brasília DF e-mail maurosohan@gmail.com

Referências Bibliográficas

JUNG, C. G. Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, Petrópolis, 2000.

ZWEIG, C. e ABRAMS (Orgs.). Ao Encontro da Sombra. Cultrix, São Paulo, 1994.

Mauro Angelo Soave Junior – 18/03/2020

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