Resumo: Você já pensou em como a psicologia junguiana pode ajudar no desenvolvimento de crianças e adolescentes? Neste artigo, exploro a intersecção entre a psicologia analítica de Carl Jung, a educação transformadora de Paulo Freire e o desenvolvimento cognitivo de Piaget, oferecendo uma abordagem única para a terapia de crianças, adolescentes e jovens. Com mais de 30 anos de experiência como educadora, psicopedagoga e agora como analista, compartilho insights sobre como integrar essas perspectivas para promover o autoconhecimento, a autonomia e a transformação social.
Após mais de três décadas em sala de aula, convivendo com crianças, adolescentes, famílias e o complexo mundo da escola, comecei a perceber que o que acontecia ali ia além do que os olhos podiam ver.
Comportamentos repetitivos, desenhos carregados de símbolos, silêncios profundos, explosões de raiva… tudo isso me fazia perguntar: o que mais está sendo dito aqui, por trás do que é visível? Foi quando me aproximei da psicologia de Carl Gustav Jung e encontrei uma linguagem que parecia traduzir aquilo que eu intuía, mas não conseguia nomear.
Jung via o inconsciente não apenas como algo que carregamos por dentro, mas como um campo vivo, cheio de imagens e significados que nos atravessam, mesmo sem sabermos.
Ele afirmava que “o Self é a totalidade da personalidade, que abrange o consciente e o inconsciente; é o centro regulador da psique” (JUNG, 1976, p. 167). Mesmo na infância, esse Self está se desenhando, e as crianças nos mostram isso de formas simbólicas e espontâneas.
Ao longo da minha experiência como educadora e psicopedagoga e, mais recentemente, como analista junguiana, percebo que a jornada de compreender o desenvolvimento de crianças e adolescentes é multifacetada, desafiadora e profundamente transformadora. Durante mais de 30 anos como professora, trabalhei com famílias e jovens de diferentes realidades, observando não apenas as questões acadêmicas, mas também as psicológicas e emocionais que se manifestam de forma evidente ou oculta. Em muitos casos, os desafios enfrentados pelos jovens eram tão profundos quanto suas dificuldades acadêmicas, exigindo mais do que apenas uma abordagem pedagógica convencional.
No contexto da psicologia junguiana, podemos considerar essas questões não resolvidas como símbolos e imagens do inconsciente que, quando trabalhados, podem promover uma integração emocional e psicológica, resultando em um desenvolvimento saudável e equilibrado. Ao integrar a perspectiva junguiana com os pensamentos de Paulo Freire e Piaget, podemos criar uma abordagem terapêutica que favoreça a autonomia, o autoconhecimento e a transformação social de crianças e adolescentes e de suas famílias.
Recordo-me de um aluno que só desenhava labirintos, com linhas complexas e sempre sem saída. Não era apenas distração: era expressão. Como dizia Jung, “as imagens do inconsciente possuem vida própria, e aparecem nos sonhos das crianças de forma viva, direta e transformadora” (JUNG, 2013, p. 41).
Aprendi que, como educadora, eu não precisava interpretar, mas escutar — escutar as imagens, os gestos, os silêncios.
Este texto visa expandir a ideia de como podemos usar o pensamento junguiano para a terapia de crianças e adolescentes, considerando as contribuições do filósofo Paulo Freire e do psicólogo Jean Piaget. A intersecção desses pensadores oferece uma abordagem rica para o desenvolvimento integral também dos adolescentes. Através desta vivência como educadora e terapeuta, observo que essas perspectivas não apenas se complementam, mas oferecem uma base sólida para uma prática terapêutica que respeite o processo de individuação e crescimento das crianças e adolescentes.
Jean Piaget nos ensinou sobre os estágios do desenvolvimento cognitivo da criança e como ela constrói o pensamento através da ação.
Ele dizia: “A criança é um ser que constrói progressivamente suas estruturas cognitivas, através da ação sobre o mundo” (PIAGET, 1975, p. 14). Mas, se Piaget nos ofereceu as bases para entender como a criança pensa, Jung nos ajuda a entender o que ela sente e como expressa isso de forma simbólica.
A psicologia analítica de Carl Gustav Jung oferece uma lente profunda para compreender o inconsciente e os processos de desenvolvimento que ocorrem durante a infância e adolescência. Em sua teoria, Jung (1959) introduziu o conceito de arquétipos, que são imagens primordiais do inconsciente coletivo. Esses arquétipos emergem em sonhos, mitos e histórias culturais, refletindo as experiências universais da humanidade.
Para Jung, a infância é um momento crucial no desenvolvimento da psique, é quando a criança começa a entrar em contato com esses arquétipos e a formar uma base psíquica para seu futuro. Ele sugere que, por meio do processo de individuação, a criança, o jovem e o adulto aprendem a integrar os aspectos inconscientes da psique, o que é essencial para o nosso equilíbrio emocional.
Jung dizia que “o jogo infantil é o trabalho da criança. É por meio do brincar que ela expressa e elabora conteúdos inconscientes” (JUNG, 2000, p. 88).
Muitas vezes, o que vemos no brincar é a tentativa da criança de organizar o caos interno, de ensaiar soluções simbólicas para os conflitos reais que enfrenta.
A utilização da psicologia analítica com crianças e adolescentes é extremamente valiosa, pois possibilita a interpretação simbólica dos conteúdos inconscientes que emergem em seus comportamentos e sonhos. Por exemplo, os sonhos podem ser analisados como manifestações do inconsciente da criança e de sua carga transgeracional, refletindo os medos, desejos e conflitos internos que ela ainda não consegue expressar verbalmente. Jung acreditava que, ao permitir que a criança se conectasse com esses conteúdos simbólicos, a terapia proporcionaria uma oportunidade de transformação emocional e psicodinâmica, ajudando-a a integrar seus aspectos inconscientes de maneira saudável e construtiva.
Além disso, a psicologia junguiana também enfatiza a importância da relação terapêutica como um espaço seguro para o processo de individuação. Quando a criança sente que pode ser autêntica e explorar seus sentimentos sem julgamento, ela começa a entender melhor suas próprias motivações e emoções. Isso é fundamental para o desenvolvimento emocional e psicológico de crianças e adolescentes, que frequentemente se encontram em um momento de busca por identidade, pertencimento e autoconhecimento.
O pedagogo Paulo Freire (1996) é amplamente reconhecido por sua abordagem educacional libertadora, que defende a conscientização e o protagonismo dos educandos no processo de aprendizagem. Para Freire, a educação deve ser um espaço de diálogo e transformação, onde o educador e o educando se tornam sujeitos ativos da construção do conhecimento. Essa perspectiva tem grande relevância na psicoterapia, pois ela reconfigura a relação entre o terapeuta e o paciente, enfatizando a importância da troca e da escuta atenta. Ao adotar a visão de Freire, a psicoterapia junguiana se torna mais do que um processo de interpretação e análise simbólica: ela se transforma em um espaço de liberdade, onde a criança ou o adolescente pode reescrever suas histórias e integrar suas experiências de maneira autêntica e transformadora.
Paulo Freire, em sua profunda defesa da escuta e do diálogo, dizia que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 78). Essa visão do educador como alguém que escuta, acompanha e respeita o tempo e o saber do outro é profundamente compatível com o olhar junguiano.
Quando Freire fala da “palavra como práxis” (FREIRE, 1996, p. 42), penso imediatamente nos símbolos que emergem nas falas das crianças e adolescentes. Não são apenas palavras: são imagens vivas que revelam seu mundo interior. O educador, nesse contexto, não precisa dar respostas, mas sustentar perguntas.
Jung acreditava que o ambiente ao redor da criança influencia diretamente na formação do Self. Ele dizia: “Se o ambiente externo nega a expressão do Self, a criança tende a desenvolver uma persona frágil ou um ego defensivo, prejudicando a integração de sua totalidade” (JUNG,2013, p.121).
A escola, assim como a família, pode ser espelho ou máscara. Pode ajudar a criança a se encontrar ou forçá-la a se esconder. Paulo Freire também alertava para isso: “A opressão nega a vocação ontológica do ser humano para a plenitude” (FREIRE, 1987, p. 33). Precisamos de escolas que acolham o símbolo e a diferença, que escutem o silêncio e permitam o tempo da alma.
Ao longo dos anos, fui fazendo registros de alguns desenhos de crianças, uma espécie de mapa com símbolos que surgiam em sala de aula. Crianças que desenhavam dragões, adolescentes que escreviam poesias sobre abismos, alunos que falavam com pedras como se fossem oráculos e adultos que sonhavam com ondas gigantes e avassaladoras. Não eram apenas brincadeiras: eram manifestações da alma. Jung dizia que “o símbolo é a melhor expressão possível de algo que ainda não pode ser totalmente conhecido ou racionalizado” (JUNG,1976, p.159).
Essas expressões me ensinaram e me ensinam até hoje, mais do que qualquer diagnóstico. Elas exigem sensibilidade e presença, não apenas técnica. A escuta simbólica, o diálogo verdadeiro e o respeito ao tempo da psique são ferramentas essenciais para quem trabalha com crianças e adolescentes. A psicologia junguiana, quando aliada à pedagogia freiriana e aos aportes de Piaget, nos oferece um caminho mais humano, mais profundo e mais integrador. Como educadora, não interpretei imagens, mas caminhei com elas. Não diagnostiquei, mas acolhi. Não corrigi sonhos, mas os escutei com reverência. É possível, sim, usar o pensamento junguiano para compreender melhor as infâncias e adolescências — e, quem sabe, curar um pouco da nossa própria criança interior.
Freire acredita que a educação deve promover a liberdade, e isso se aplica perfeitamente à psicoterapia, onde o terapeuta deve criar um ambiente seguro para que o cliente, especialmente uma criança ou adolescente, possa expressar seus sentimentos, pensamentos e experiências sem medo de julgamento.
Essa relação de confiança e liberdade é essencial para o desenvolvimento psíquico saudável, pois permite que o cliente se conecte com os conteúdos inconscientes que precisam ser trabalhados. No contexto junguiano, isso pode ser feito através da exploração de símbolos e imagens que surgem durante a terapia.
A educação transformadora de Freire não se limita às salas de aula. Ela pode ser aplicada também no espaço terapêutico, onde a criança ou adolescente é convidado a se tornar sujeito de seu próprio processo de cura.
Dessa forma, a psicoterapia junguiana, ao incorporar as ideias de Freire, se torna não apenas uma técnica de cura, mas também um ato de empoderamento, onde a criança ou adolescente aprende a lidar com seus conflitos internos e externos de maneira construtiva.
A teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget (1976) é fundamental para compreender como as crianças constroem sua percepção do mundo ao seu redor.
Piaget propôs que as crianças passassem pelos estágios de desenvolvimento cognitivo, cada um caracterizado por diferentes formas de pensar e entender o mundo. Esses estágios – sensório-motor, pré-operacional, operações concretas e operações formais – influenciam como as crianças processam informações e resolvem problemas, o que tem implicações diretas para a psicoterapia.
Ao integrar a teoria de Piaget com a psicologia analítica de Jung, podemos ver como o desenvolvimento cognitivo das crianças e adolescentes pode impactar o processo terapêutico.
Durante o estágio pré-operacional, por exemplo, a criança tende a pensar de forma egocêntrica e simbólica. A terapia junguiana pode ser particularmente eficaz nesse estágio, ajudando a criança a entender e integrar esses símbolos, permitindo-lhe desenvolver uma maior compreensão de si mesma e do mundo.
À medida que a criança avança para os estágios de operações concretas e formais, ela começa a construir raciocínios mais lógicos e abstratos. A psicoterapia junguiana, nesse caso, pode ser usada para explorar as questões mais complexas que surgem com o desenvolvimento da consciência e da identidade. Adolescentes, por exemplo, muitas vezes, enfrentam conflitos internos sobre quem são, qual é o seu papel na sociedade e como se relacionam com os outros. A terapia junguiana pode ajudar a explorar esses temas de maneira profunda, utilizando metáforas e símbolos para facilitar a compreensão e a aceitação de si mesmos, uma boa opção é o uso da Arteterapia e expressões criativas.
Minha experiência como educadora e psicopedagoga, juntamente com minha formação em psicologia analítica, me permitiu observar de perto os processos de desenvolvimento e os desafios enfrentados por crianças e adolescentes.
Muitas vezes, percebi que os desafios emocionais e psicológicos de meus alunos estavam diretamente relacionados à sua capacidade de integrar suas experiências e diferentes identidades. Quando esses jovens se deparavam com dificuldades, como dificuldades de relacionamento, de aprendizagem, conflitos familiares ou problemas de autoestima, suas emoções se manifestavam de formas que nem sempre eram compreendidas ou respeitadas.
Agora, como analista, posso perceber claramente o valor de integrar a psicologia analítica na terapia de jovens. A minha prática terapêutica, fundamentada na escuta ativa, na interpretação simbólica e na valorização da autonomia do indivíduo, reflete muito do que Paulo Freire propôs no campo da educação. A liberdade de ser quem se é, a capacidade de transformar-se e de encontrar significado nos próprios desafios são componentes essenciais do processo terapêutico, tanto na educação quanto na terapia.
Essa integração da psicologia analítica com os conceitos educacionais de Freire e Piaget me permite oferecer uma abordagem integral, que respeita o ritmo e as necessidades emocionais e cognitivas de cada criança e adolescente.
Cada símbolo, cada arquétipo que emerge no processo terapêutico é visto não apenas como uma manifestação do inconsciente, mas como uma ferramenta para o autoconhecimento e a transformação pessoal.
Integrar a psicologia analítica com os pensamentos de Paulo Freire e Jean Piaget cria um caminho rico e dinâmico para a terapia de crianças e adolescentes.
O processo de individuação proposto por Jung, aliado à abordagem libertadora de Freire e à compreensão do desenvolvimento cognitivo de Piaget, oferece uma base sólida para a terapia que respeita a individualidade de cada jovem e sua jornada de crescimento. A experiência de ser educadora, psicopedagoga e analista me permite afirmar que essa abordagem integrada é profundamente eficaz no tratamento das questões emocionais e psicológicas que surgem no processo de desenvolvimento das novas gerações.
Elaine Cristina Bedin – Analista em Formação IJEP
Simone Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1959.
JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 2000.
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1976.
PIAGET, Jean. A psicologia da criança. Trad. Francisco R. Bordini. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1976.
PIAGET, Jean. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

Matrículas abertas: www.ijep.com.br
Acesse nosso Canal no YouTube: +700 vídeos de conteúdo Junguiano!