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Esquizofrenia, arteterapia e Bispo do Rosário

Esquizofrenia, arteterapia e Bispo do Rosário

Esquizofrenia, arteterapia e Bispo do Rosário

Domingo. Neste dia da semana, fica fechada para carros a Avenida Paulista – provavelmente o maior ícone do poderio de São Paulo, a New York brasileira. E ela se torna a praia do paulistano, que aproveita para caminhar, fazer compras, ver as apresentações a céu aberto, ainda mais num dia ensolarado de inverno. Num certo sentido, é uma oportunidade ímpar de expressão livre e democrática.

Estou me encaminhando para o espaço Itau Cultural para ver a exposição que é um ato de criação libertário que foi exercido por um homem negro, pobre e que sofria de transtornos mentais dentro de um dos sistemas mais opressivos imagináveis: numa cela de manicômio.

A exposição “Bispo do Rosario – eu vim: aparição, impregnação e impacto” é feita em parceria com o Museu Bispo do Rosario, do Rio de Janeiro, reunindo centenas de trabalhos de Arthur Bispo do Rosario (1911-1989). Em paralelo, ainda há peças de outros artistas contemporâneos, nos três andares do prédio ocupados pela exposição. Penso que o próprio nome do protagonista é um paradoxo tão marcado pelo catolicismo quanto sua produção, pois seu sobrenome, “Bispo”, é um cargo eclesiástico e “Rosário” é a padroeira dos negros.

Não quero guardar a cereja do bolo para o final: vou direto para ver o famoso Manto da Apresentação (https://museubispodorosario.com/acervo/manto/). A peça tem 118,5×141,2×7 cm e é feita por meio de costura, bordado e escrita. É pura poesia, pois a prosa não dá conta de descrevê-la. Sem jeito, gravo um videozinho desajeitado na frente dela, para postar no reels do meu instagram (@monicamartinezpsi), daqueles que precisam ter menos de 1 minuto.

E aí fico pensando nos paradoxos daquele homem nascido em 1911 em Sergipe, no Nordeste brasileiro, que se mudou para o Rio de Janeiro, a capital do país, em 1925, poucos anos depois que a cidade começara o processo de reurbanização para se tornar uma Paris sul-americana e, neste processo de gentrificação, expulsara de seu centro os moradores pobres, dando início às favelas.

Na cidade maravilhosa, Bispo do Rosário até que se virou bem. Em 1926, se alistou na Marinha brasileira, aprendeu a lutar boxe e se tornou campeão dos pesos-leves. Foi desligado por indisciplina em 1932. No mesmo ano, empregou-se como lavador de bondes na companhia de energia Light and Power. Em 1936, ele sofreu um acidente, teve o pé esmagado pela roda de um bonde, o que representou o fim do boxe para ele. Um ano depois, foi demitido por descumprimento de ordem e ameaça ao seu chefe.

Por conta do processo que moveu contra a Light, Bispo conheceu o advogado José Maria Leone. E acabou virando um “faz-tudo” na casa da família Leone, onde passou a morar numa edícula no fundo do quintal. A convivência com a família Leone durou, de forma intermitente, de 1937 e 1960.

Assim, estava tudo mais ou menos ajeitado quando, em 22 de dezembro de 1938, teve seu primeiro surto psicótico. Nesta noite, saiu da casa e fez uma espécie de peregrinação, apresentando-se dois dias depois na igreja da Candelária dizendo ter tido uma visão: se via descendo do céu, acompanhado por sete anjos. Disse ainda aos frades que era “aquele que veio julgar os vivos e os mortos”. O manto à minha frente era provavelmente a ideia de como ele queria se apresentar como a divindade que julgava ser: bem vestido. Como até Cristo foi crucificado ao se proclamar o filho d´Ele, o homem pobre e preto foi “naturalmente” dado como louco e encaminhado ao Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha.

Em 26 de dezembro de 1938, descreveu seus delírios místicos ao médico Durval Nicolaes: “Contou-nos o paciente seus sonhos fantásticos. Tem feito viagens através dos Continentes em missão religiosa onde ele aparece como frade”. Foi diagnosticado como portador de esquizofrenia paranoide, transtorno mental que altera a maneira como as pessoas pensam, sentem e percebem o mundo ao seu redor. Segundo o DSM-5, a causa da esquizofrenia “é desconhecida, porém, há fortes evidências de algum componente genético e ambiental” (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 87). Os sintomas geralmente começam na adolescência ou no início da idade adulta. Um ou mais episódios de sintomas devem durar, no mínimo 6 meses antes que o diagnóstico seja feito. O tratamento é feito com fármacos, psicoterapia e reabilitação psicossocial. A detecção e o diagnóstico precoces possibilitam adaptação funcional a longo prazo.

Mas voltemos à história de Bispo do Rosário. Tempos depois, ele foi encaminhado do hospital à Colônia Juliano Moreira, instituição voltada para os então chamados de loucos e outros excluídos. Entre 1940 e 1960, Bispo do Rosário alternou períodos de internação e de moradia em outros lugares, fugiu algumas vezes das internações e, em outras vezes, ao receber alta, tentou se readaptar no mundo. Vivia em conflito com sua condição. Até que, em 1964 – talvez não por acaso o ano do golpe militar no Brasil –, jogou a toalha: voltou para a colônia em definitivo, onde ficou até morrer, um quarto de século depois, em 1989.

E aqui ocorre o fato triste, aliás, que nos propiciou estar na frente desta exposição. Os funcionários da Colônia Juliano Moreira aproveitavam a força física de Bispo do Rosário para conter outros pacientes em surto. Numa das vezes, ao exagerar na dose, ele acabou punido com o isolamento por três meses em uma das celas reservadas aos pacientes mais agressivos e “agitados”. Ao sair, relatou ter ouvido “vozes que lhe diziam que chegara a hora de representar todas as coisas existentes na Terra para a apresentação no dia do juízo final”. 

E começou sua produção. Para tal, trancou-se por vontade própria por sete anos numa das celas, que transformou em seu atelier, e, munido de agulha e linha azul que desfiava dos velhos uniformes dos internos, passou a bordar a escrita de seus estandartes e fragmentos de tecido. Forte e sisudo, o ex-boxeador tornou-se uma espécie de “xerife” do local, o que lhe assegurou privilégios como poder recusar os eletrochoques e as medicações então ministradas (o tratamento com fármacos, terapia e reabilitação psicossocial seguem em pauta). Para ter acesso à sua cela-atelier era necessário desvendar o enigma apresentado por Bispo: responder qual era a cor de sua aura.

O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung dizia que a parede que divide o consciente do inconsciente é mais ou menos porosa, dependendo se a pessoa tem um ego bem estruturado ou não.  Nos esquizofrênicos, a mente é cindida, o que significa que o trânsito de conteúdos é intenso de tal forma que é difícil separar os delírios (crenças fixas) e as alucinações (experiências vívidas semelhantes à percepção que ocorrem sem um estímulo externo, sendo as auditivas as mais comuns nos esquizofrênicos) da realidade.

Como dizia a psiquiatra brasileira Nise da Silveira, a exposição que se descortina à minha frente permite ver um pouco do mundo interno de um esquizofrênico (SILVEIRA, 2015). Como ele reunia de uma forma expressiva os objetos do cotidiano dos residentes, como canecas, colheres, garrafas, sandálias e tênis, além de materiais diversos que ele obtinha em refugos na Colônia (https://museubispodorosario.com/acervo/talheres/). É uma viagem no tempo também, pois podemos ver como os objetos eram então, caso dos prototênis, por assim dizer. Dos mantos às coleções de objetos, há uma potência ímpar que, ao ser contemplada, nos permite perceber, ainda que por momentos fugazes, o universo fragmentado de uma mente esquizofrênica numa tentativa de ordenar seu mundo.

Naquele momento no país havia uma aproximação dos artistas e dos ambientes que acolhiam pessoas com transtorno mental, sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Assim, em 1982, dezoito anos após sua “revelação”, Bispo do Rosário é convidado para expor pela primeira vez quinze estandartes na mostra “Margem da Vida”, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro – despertando o interesse da mídia e de críticos de arte. Foi a única exposição que integrou em vida, pois não aceitava se separar de sua obra. Como Jung, que se deixava atravessar por imaginações ativas que representava em desenhos e esculturas, Bispo do Rosário não se considerava artista. Sua obra, para ele, era a companhia que teria no dia do juízo final. Mas nós que nos julgamos normais olhamos para ela e vemos o que queremos (ou podemos) ver, e muitos certamente acharão estas expressões criativas com a potência de obras de arte. Sobretudo quem não conhece a história toda e vê apenas as peças à sua frente. A intenção pode não ter sido esta, mas o resultado e o assombro que causam não ficam atrás. Saí da exposição pensando o quão frágil é nossa noção de realidade. Porque cada um vê o que precisa ou pode ver, influenciado pela diversidade, universalidade e, ao mesmo tempo, pela peculiaridade e singularidade psíquica: “A única realidade imediata é a realidade psíquica dos conteúdos conscientes, etiquetados com uma origem espiritual ou material, conforme o caso.” (C. G. Jung – OC 9/1 – § 392a)

A exposição do Itaú Cultural em São Paulo é temporária, indo até 2 de outubro. Mas pode-se visitar o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, cuja iniciativa remonta à 1952 para abrigar a produção artística dos ateliês de arteterapia da entidade. O museu está situado no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, centro de saúde mental localizado na Taquara, Zona Oeste do Rio de janeiro. Informações no site https://museubispodorosario.com/museu/

Monica Martinez – Analista em Formação pelo IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Ditada

Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

SILVEIRA, N. DA. Imagens do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

 

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