Cada vez mais tem-se falado sobre propósito, no contexto organizacional e mesmo pessoal. Pesquisas mostram que aumenta a percentagem de consumidores que se fidelizam a marcas que atuam para o bem da sociedade e do planeta, e de trabalhadores que buscam empresas com senso de propósito. Mas, afinal: trata-se de uma necessidade humana ou de estratégia de mercado?
O objetivo deste artigo é, sob a ótica da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, discutir essa questão que se situa em um longo espectro entre o anseio humano ligado à sede de sentido e o aproveitamento que o mercado faz dele. No meio desta faixa ou intervalo, encontra-se a cultura que vem forçando as empresas a escolher abraçar uma causa ou desaparecer.
Algumas descobrem que visar apenas ao lucro a partir do trabalho de quem troca horas por dinheiro é uma fórmula ultrapassada e fadada ao fracasso. Por isso, passam por uma verdadeira transformação, que inclui a descoberta de um propósito. E esse propósito muitas vezes empresta sentido a quem ali trabalha e ainda não encontrou um chamado pessoal, ou reforça o daqueles cujo chamado está ligado à causa da organização.
Outras utilizam a plasticidade típica do capitalismo, cuja lógica de mercado vai engolindo os movimentos culturais e os transformando em mercadoria. Efetuam mudanças ao ritmo da moda, fortalecendo suas marcas, que se tornam desejos de consumo, podendo inclusive cobrar mais por seus produtos e manter-se na competitividade.
Só por aí é possível ver que o debate é longo e talvez não encontre uma única resposta. No entanto, aprofundar no que está por trás desse tal de propósito é algo rico, atual e necessário. E a Psicologia Analítica tem muito a contribuir com este aprofundamento.
O propósito e a ciranda indivíduo-empresa-indivíduo
O estudo “Marcas significativas” (Meaningful brands) do grupo francês Havas de consultoria de comunicação, publicado em janeiro de 2024, entrevistou cerca de 161 mil pessoas nos cinco continentes a respeito de mais de 2200 marcas de 47 categorias diferentes. O objetivo era examinar o impacto da marca a partir da percepção dos consumidores de seus benefícios pessoais, funcionais e coletivos.
Os resultados revelaram que fazer bem para o planeta e a sociedade é mais importante agora do que nunca, e mais esperado. A crise climática é o principal acontecimento global que a humanidade enfrenta, segundo a pesquisa — 78% das pessoas pensam que estamos vivendo uma crise ambiental, e 70% acreditam que o mundo vai na direção errada neste assunto. As pessoas sentem os efeitos das crises em suas vidas diárias, nesta ordem: crise econômica, de saúde, social, ambiental e política.
Os respondentes da pesquisa dizem tentar agir eles mesmos para mudar a situação. Por isso, acreditam que as marcas deveriam atuar com seu poder de influência para causar mudanças positivas. É o que mostram estes índices:
– 73% dos consumidores acreditam que as marcas deveriam fazer algo para o bem da sociedade e do planeta — comunicação não é o suficiente;
– 72% estão cansados de marcas que fingem ajudar a sociedade enquanto apenas buscam lucrar;
– 68% pensam que as empresas/marcas têm o poder de ajudar a resolver alguns dos problemas mundiais.
As empresas que não respondem a esta expectativa por propósito acabam sendo pouco significativas, ao ponto de as pessoas dizerem não se importar se 75% das marcas desaparecessem. Isso acontece no mercado consumidor.
E no trabalho, a demanda por propósito também tem se feito presente?
A consultoria KPMG (2017) levantou alguns dados sobre o tipo de empresa em que a geração Y ou Millennials (pessoas nascidas entre 1985 e 1999) gostariam de trabalhar por toda a sua carreira. Este foi o resultado:
– 79% gostariam de trabalhar em empresas que tenham um forte senso de propósito;
– 89%, em empresas que façam a diferença no mundo;
– 90%, naquelas em que haja um alinhamento entre valores pessoais e corporativos;
– 92%, em empresas com uma visão de futuro empolgante.
É curioso que este movimento em direção à busca pelo propósito parte das pessoas em relação às empresas, sejam aquelas das quais compram, sejam aquelas nas quais trabalham. É em primeiro lugar um anseio do indivíduo em relação ao coletivo, pressionando-o, o que está alinhado com o que Jung já dizia na década de 1940:
Este anseio está ligado ao movimento próprio da psique, que busca totalidade. “Ela tende à realização total e, no que concerne ao homem, à tomada de consciência total. A tomada de consciência é cultura no sentido mais vasto do termo” (JUNG, 2016, p. 387). O nível de consciência se eleva, como ensina o próprio Jung, a partir do choque dos contrários. No tema aqui debatido, por exemplo, quando alguém, diante das catástrofes climáticas, questiona se com seus hábitos de consumo contribui para frear ou acelerar a devastação, percebendo ambas as tendências e optando (sem querer abafar a autocrítica) por comprar menos e de marcas que fazem algo pelo planeta.
A vida nos questiona, e nós questionamos o mundo e a ele devemos responder.
Se para Jung “o conhecimento de si mesmo é a essência e o coração deste processo” (p. 387), pode-se dizer que a dificuldade de interiorização e profundidade típica do momento atual compromete a busca pelo propósito pessoal; muitas vezes projeta-se as próprias inquietações e vazios na exterioridade, desconhecendo-se o fato de poder residir no fundo do incômodo um chamado pessoal. E, nesta direção, ligar-se através do trabalho a uma empresa com propósito pode emprestar sentido temporariamente a muitas pessoas, pode ser a fagulha que faltava para acender o caminho do autoconhecimento. Afinal, é no fato da vida que reside o sentido da existência, como ensinava também Jung.
Mas que sede de sentido é esta, tantas vezes declarada, tantas outras escondida ou descoberta por acaso nessas brechas de oportunidade?
O profundo anseio da vida
Psyche é a palavra grega para alma, a essência mais profunda e íntima do humano. Dela vem a sede e a busca, hoje em dia muitas vezes projetada em coisas e pessoas, quando se perde o movimento que leva a “galgar além de”, a transcendência. A atualidade vive “uma perda da transcendência como perda de sentido, como crise espiritual” (DORST, 2015, p. 15).
Foram essas as questões com as quais Jung se ocupou, a ponto de considerar aspecto decisivo da vida humana ter ou não o transcendente como ponto de referência.
Curioso que existe uma escolha nessa afirmação, não se usa a conjunção “e”, mas “ou”. Tomar decisões também é algo do qual se foge ultimamente, em um mundo que apresenta inúmeras possibilidades. Ter tudo ao mesmo tempo, conciliar, manter todas — ou pelo menos várias — janelas abertas sem fazer renúncias é algo tentador. Mas a natureza não aguenta isto, nem a que sucumbe fora, diante dos nossos excessos, nem a que sucumbe dentro — e será que não são, senão a mesma, intimamente ligadas? Jung continua com clareza:
Essa afirmação já coloca uma questão ao consumismo, mola propulsora do capitalismo, fazendo pensar se realmente é possível empresas com propósito, ou isso seria, em última análise, uma facada no coração do sistema, daí ele só mascarar o de sempre com belos discursos que amenizam consciências.
Será que diante da pressão e clamor pode ter sido iniciada uma transformação verdadeira, mesmo que em pequena parcela dos negócios?
Nos indivíduos, a escolha apresentada por Jung passa, paradoxalmente, pela conscientização dos próprios limites. Finito e infinito são conscientizados ao mesmo tempo, e isso ocorre ao longo do processo de individuação, do ir se tornando quem se é de fato, descobrindo a sua unicidade — combinação única dos fatores universais. Isso gera comunhão com o outro e com a natureza e o mundo, não somente porque leva a sair do novelo dos interesses egoístas, mas também porque faz a pessoa se perceber cada vez mais como uma minúscula porém essencial parte do todo, com a necessidade de se conectar às demais pela vida deste todo. Esse processo é a descoberta do chamado da alma ou do propósito pessoal.
Para a Psicologia Analítica, “a meta da vida não é a felicidade, e sim o significado” (HOLLIS, 1999, p. 9), até porque aquela é muito efêmera, enquanto este nos sustenta em grande parte da nossa jornada. E ele é descoberto no profundo, onde muitas vezes só se vai pelo sofrimento. É neste lugar interior que “a alma é fabricada e forjada, onde encontramos não apenas o gravitas da vida, como também seu propósito, sua dignidade e seu mais profundo significado.” (p. 11)
A descoberta da alma e de sua busca por sentido se dá na profundidade, o que normalmente exige atitude contemplativa e de interiorização. No entanto, este processo de dentro pode começar fora — até porque dentro e fora são só dois lados do mesmo. Como dito anteriormente, um propósito organizacional pode emprestar sentido e desencadear a referência ao infinito.
Qual a dificuldade, então? A ilusão.
Se tudo é vivido apenas para fora, virando ativismo, e não se busca nem se recebe ajuda ou incentivo para o autoconhecimento, a ampliação da consciência da unicidade, que é limitação (ou vice-versa), não se pode perceber o ilimitado ou infinito. Acaba-se por absolutizar o finito, seja a empresa ou a fundação, identificando-o ilusoriamente com o ilimitado, “que se manifesta na embriaguez dos grandes números e na reivindicação sem limites dos poderes políticos” e econômicos (JUNG, 2016, p. 388). Daí o risco da idolatria tão presente no sistema capitalista.
Compromisso ou engano?
Questão difícil de responder. E talvez seja mais válida a pergunta do que as respostas, pois ela leva a manter a análise, a reflexão e o senso crítico. Por um lado, o mercado é plástico, flexível, e transforma as demandas humanas para atrair ao consumo e ao lucro. Neste sentido, é possível afirmar com Magaldi:
Nesse cenário, só é possível um mínimo de cuidado com as relações humanas e de fraternidade, porém, sempre em função dos próprios interesses do mercado que, livremente, arbitra regras e normas éticas para manter o seu próprio negócio, ‘coisificando’ o humano, estabelecendo apenas um respeito aparente suficiente para preservar as possibilidades futuras de troca proveitosa, pois a lealdade última é devotada tão somente ao dinheiro. (MAGALDI, 2014, p. 196)
Por outro lado, que bom que a mudança da cultura vai forçando as empresas a certas tomadas de posição, seja na sustentabilidade, seja na definição de um propósito! O limite é se o olhar da real intenção está posto no finito ou no infinito. Há negócios, certamente a exceção, que já se percebem como uma obra em construção a serviço da Grande Obra.
A maioria, porém, tem a lança da ganância material traduzida como acumulação financeira de poucos, escondida na bela plumagem de discursos encantadores. A sedução que eles exercem não dura muito, no entanto, pois o que está em jogo aqui é a interseção — ou não — com o chamado da alma de cada pessoa, e a alma detecta a mentira. Cada vez mais, só a coerência com o propósito declarado fará as empresas sobreviverem.
Mais válidas que os discursos são as ações.
Se os negócios criam ações que promovem a vida, que contribuem de fato com o entorno social e ambiental, são mais capazes de se tornarem possibilidades de realização de sentido para muitos parceiros envolvidos, mesmo que algum com maior consciência crítica possa questionar seu fundo. Enquanto não se está na linha de evolução que já toma como referência o infinito, unindo palavra e ação, parece ser mais válido fazer algo concreto no aqui e agora do que propagandear belas frases.
Como as verdadeiras transformações são as que acontecem a partir dos indivíduos, a entrega pela dádiva ou gratuidade gera a autorrealização, a vida com sentido e significado. E somente ela poderá pressionar o coletivo a também se colocar a serviço da vida. Concordando com Magaldi (2014, p. 286), isso significa que fazer simplesmente pelo gosto e pelo amor do fazer é a saída para quebrar esse hábito diabólico do lucro. Para quem conquista essa ‘dádiva’, o fazer deixa de ser imediatamente pelo dinheiro e passa a ser pelo amor ao próprio amor. Essa é a condição de servir com alegria para celebrar todas as expressões evolutivas da vida.
Tania Pulier — Analista em formação/IJEP
Lilian Wurzba — Analista Didata/IJEP
Referências:
DORST, Brigitte. Introdução. In: JUNG, Carl Gustav. Espiritualidade e transcendência. Petrópolis: Vozes, 2015.
HAVAS. Meaningful Brands 2023 (updated) Global Report: Where new cultural and societal forces are changing what it means to be meaningful, jan. 2024. Disponível em: https://meaningful-brands.com/reports/2023report/. Acesso em: 22 ago. 2024.
HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus, 1999.
JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. Vol. 18/2. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
___. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
KPMG. Meet the millennials, jun. 2017. Disponível em: https://assets.kpmg.com/content/dam/kpmg/uk/pdf/2017/04/Meet-the-Millennials-Secured.pdf. Acesso em: 16 set. 2024.
MAGALDI, Waldemar. Dinheiro, Saúde e Sagrado: interfaces culturais, econômicas e religiosas à luz da Psicologia Analítica. 2.ed. São Paulo: Eleva Cultural, 2014.
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