As “Madona” do Renascimento possuem aura. A Madona do mundo musical também possui sua aura. Qual a diferença entre as auras dessas Madonas?
Em primeiro lugar, para se compreender a relação da aura com as obras de arte, devemos esclarecer os conceitos dos termos que iremos trabalhar e relacionar:
Arte significa que são produções decorrentes de certas manifestações da atividade humana diante das quais ficamos admirados e as privilegiamos através de nossos incentivos. Existe dentro das obras de arte valores em ordem de excelência, ou seja, hierarquizamos as obras de arte de acordo com os valores que lhes atribuímos por sua originalidade, autenticidade e papel histórico.
Aura, para Walter Benjamin, está relacionada, principalmente, ao objeto natural ou artístico, trazendo para a nossa proximidade, aquilo que estava distante, mas que é único e representativo de seu lugar e seu tempo e que é, sobretudo, autêntico, algo que nos leva a contemplação.
Vemos, portanto, como nos dias atuais, deparar-se com a aura de uma obra de arte se torna praticamente impossível. Podemos até admirar a obra de arte mas, não chegamos mais a contemplá-la.
Por que?
Porque as obras de arte, através do desenvolvimento tecnológico, através das sucessivas mudanças de proprietários, perdendo seu “altar”, ou seja, o espaço para o qual foram criadas especificamente e, através de suas contínuas reproduções, dissolveram suas auras num “continuum” histórico.
As técnicas de reprodução “massificaram” muitas obras de arte. Não me refiro aqui as reproduções mais antigas, as cópias, mas as reproduções em série, que ao longo de seu trajeto e visando o lucro e/ou a divulgação da arte, acabam por destruir-lhe completamente a aura.
Quem não viu um calendário trazendo em estampa a reprodução da “Mona Lisa”, ou em alguma revista a estampa de “A Virgem dos Rochedos”?
Como, através dessas reproduções em massa, editadas em papéis, que podem ser afixados numa oficina mecânica suja, ou folheados num trem da Central, encontrar a aura que somente um Leonardo da Vinci seria capaz de criar?
Leonardo usava o método sfumato; sombreado de contornos e fundos em oposição às áreas de luz interna, esse jogo expressivo de luz e sombra criava uma atmosfera muito especial, a meio caminho entre o sonho e a realidade, por isso suas pinturas tem muito de mágico, apesar da perfeição das formas e cores, ao presenciarmos seus quadros, o que passa ao nosso espírito está muito além do que os olhos vêem; é a nossa percepção da aura, criada por um gênio em determinado período histórico, onde suas obras nos impelem a uma série de especulações: “o por que do sorriso enigmático e expressão profunda de Mona Lisa?”, “o por que de nosso temor e deslumbramento frente à Virgem dos Rochedos?”. Esse maravilhamento traz para nosso presente um momento único criado por volta de 1500.
O que percebemos é que, para Benjamin, no momento que dissociamos a obra de arte de sua atmosfera religiosa e aristocrática, ou seja, para ser admirada por poucos privilegiados, e as reproduzimos em massa, ou as colocamos ao lado de várias outras, de técnicas e períodos diferentes, em museus ou galerias, tiramos lhe o status de raridade, fazemos com que perca sua condição de objeto de culto e a consequência disso é que a dissolução de sua aura atinge dimensões sociais, na medida que essas são o resultado das transformações técnicas da sociedade em relação as modificações de percepção estética.
Se as “Madona” do Renascimento tem aura, cada vez torna-se mais difícil o nosso contato com essa aura. Porque que elas tiveram é certo e indiscutível, mas se ainda hoje a possuem fica mais difícil a constatação, devido ao processo histórico a que foram submetidas.
Já a Madona do mundo musical, possui uma aura diferenciada da aura da obra de arte, enquanto objeto único.
Ela, Madona, é o objeto. Ela se faz deslumbrante, única, rara, original e autêntica. É resultado de uma produção visando projeção e consumo.
Num curso que fiz em 1993, o professor George Bacart equiparou Madona a Nietzsche, no sentido de que ambos chocaram seus contemporâneos, derrubaram valores e contestaram o tempo presente. É óbvio que a equiparação acaba aí.
Enquanto a proposta do filósofo era uma transformação do homem, a da Madona é a transformação do seu status socioeconômico e, quiçá, aumentar a consciência das mulheres.
As “Madona” do Renascimento foram criadas para o ritual sacro, o culto, a contemplação. A Madona é criada e recriada, vemos isso por suas performances sempre em constante transformação, para ser, também, cultuada.
Porém, se ao contemplarmos as “Madona” elevamos nosso pensamento à mãe de Deus e buscamos consolo em nosso espírito; ao contemplarmos (os fãs, é claro) a Madona cantora, nosso pensamento é encaminhado à luxúria.
São cultos diferentes, mas não se pode negar o culto que os fãs fazem a seus ídolos, por isso mesmo é que são idolatrados, como é o caso da Madona.
Sua aura é consequência de sua produção, que a faz parecer: autêntica, única.
Lembremos que a Madona não é somente a “pop star”, cantora, bailarina. Ela também é atriz e seus filmes possuem forte apelo às massas de consumo. Embora o cinema exija o uso de toda personalidade viva do ator, nesse caso atriz, esta priva-se de sua aura.
A Madona do cinema não tem a aura daquela que superlota os shows e leva os fãs ao êxtase. Pois, para Benjamin, a natureza vista pelos olhos difere da natureza vista pela câmera.
Apesar de tudo, Benjamin acredita que, apesar das técnicas de reprodução das obras de arte provocarem a destruição da aura, há aí um aspecto positivo na medida em que existe a possibilidade de relacionamento das massas com a arte. O cinema, por exemplo, seria um instrumento eficaz de renovação das estruturas.
Cabe a pergunta: qual Madona te encanta?
Dra E. Simone Magaldi
Fundadora do IJEP