É fato que questões relacionadas com o peso são, em maior ou menor grau, uma preocupação presente na vida da maioria das pessoas, e, muito provavelmente, em uma consulta informal em qualquer grupo de pessoas, uma boa parte terá ressalvas quanto ao próprio peso. Considerando a situação do Brasil, uma pesquisa online de 2012 feita com 25 mil pessoas da América Latina, aponta que os brasileiros são o povo mais insatisfeito com o próprio peso, além de se destacarem também por um uso maior de remédios de emagrecimento:”
Brasil | América Latina | |
Um pouco acima do peso | 43% | 35% |
Acima do peso | 16% | 28% |
Satisfeito com o próprio peso | 30% | 37% |
Uso de emagrecedores | 12% | 8% |
O peso corporal é um indicador importante de saúde, seu excesso é um fator de risco para várias doenças graves, além de ter impactos físicos mais diretos, principalmente relacionados a uma sobrecarga para os ossos. De forma mais subjetiva ele está relacionado também a autoimagem desejada, imposta pelos padrões vigentes de “beleza perfeita”, pois não podemos nos esquecer que o padrão de beleza mudou muito ao longo da história e já houve época em que corpos mais robustos eram os belos e os corpos esquálidos buscados hoje seriam o oposto.
Considerando a relevância, que o tema tem na vida das pessoas, não é de se estranhar a frequência com que ele aparece nos atendimentos terapêuticos, abrangendo tanto questões relacionadas à saúde, quanto à insatisfação com a autoimagem e a busca, muitas vezes obsessiva, por um corpo ideal.
Nesse artigo vou apresentar uma perspectiva sobre o excesso de peso no universo feminino, que vai além de um saldo positivo entre as calorias ingeridas e consumidas que se transforma em gordura. Essa perspectiva está baseada no livro “A coruja era filha do padeiro” de Marion Woodman, onde a autora amplia nosso entendimento sobre a dinâmica do ganho de peso falando sobre seus aspectos fisiológicos e psicológicos, partindo de um estudo feito com mulheres que estavam acima do peso.
Estar acima do peso desejado é um fator de grande angústia e sofrimento para as mulheres, mesmo estando conscientes de que existe um padrão vigente que impõe modelos de magreza que desconsideram características individuais porém dada a enxurrada de imagens de “corpos magros e belos” que inundam as redes sociais, é uma tarefa hercúlea se colocar na frente de um espelho e se sentir bem quando a imagem ali refletida não se parece com as imagens estampadas nas capas de revista há algum tempo atrás e, nos dias de hoje, postadas nas redes sociais.
Mesmo em casos em que as mulheres percebem que a comida não é utilizada apenas para se nutrir, que muitas vezes ela acaba assumindo um papel emocional, o mais comum é elas se agarrarem à ideia de que conseguir atingir o peso desejado é somente uma questão objetiva matemática de calorias ingeridas e gastas, porém existem vários fatos que contrariam essa linha de raciocínio. Pessoas que se alimentam de forma bem parecida, mas uma delas ganha mais peso que a outra, pessoas que conseguem eliminar peso às custas de muita disciplina tanto na dieta quanto nos exercícios que eliminam peso, mas que acabam voltando à situação anterior mesmo mantendo a duras penas boa parte do rigor na dieta e nos exercícios.
E por que isso acontece? Existiria uma variável oculta na equação que resulta no peso final de uma pessoa?
Em seu livro, Mary Woodman traz uma perspectiva enriquecedora sobre o tema, por um lado uma visão fisiológica sobre como as células de gordura podem se constituir de duas formas diferentes e como elas influenciam de formas distintas a dinâmica de ganho/perda de peso, e por outro, uma perspectiva da psicologia junguiana que tira da sombra uma variável oculta, o feminino reprimido.
Com relação aos tipos de obesidade, Woodman apresenta duas possibilidades, a obesidade primária e a secundária. A obesidade primária é aquela em que a gordura é constituída por um maior número de células do que a média das pessoas não obesas, e a secundária tem uma quantidade de células de gordura dentro do padrão, porém de maior tamanho.
Estudos já mostraram que uma perda sustentável do peso, ou seja, em que não se recupere os quilos eliminados, é mais provável no segundo tipo de obesidade, quando um peso menor é atingindo pela diminuição do tamanho das células de gordura. No primeiro caso, há uma diminuição da quantidade de células de gordura, porém o corpo vai tentar recuperar as células perdidas assim que a força de vontade da pessoa não for mais tão firme quanto antes.
Conforme citado pela autora, quando a obesidade surge na infância, ela é caracterizada pelo maior número de células de gordura, explicando porque é tão difícil para pessoas que estão acima do peso desde a infância perderem peso e manter o resultado obtido. Se o aumento de peso acontece só na vida adulta, temos a obesidade secundária, o que aumenta consideravelmente as chances de não se recuperar os quilos perdidos. Assim podemos entender porque pessoas que foram crianças obesas tendem a ter muito mais dificuldade em ter e manter um peso considerado normal, o que já agrega uma nova variável à contabilidade do peso. Para trazer alguma luz para a razão pela qual as células se constituem de forma diferente nas duas fases da vida, coloco a seguir uma citação de Jung feita por de Marie-Louise von Franz que encontrei no livro sobre tipos psicológicos, ou seja, dentro de um contexto totalmente diferente do tema abordado aqui, que pode ser um paralelo biológico interessante:
Ele assinala, por exemplo, as duas maneiras pelas quais as espécies animais se adaptam à realidade: ou reproduzindo-se tremendamente e tendo um mecanismo inferior de defesa, como as pulgas, os piolhos, e os coelhos, ou procriando muito pouco e construindo fortíssimos mecanismos de defesa, como o porco espinho e o elefante. (von Franz & Hillman, 2020)
Por esse paralelo, podemos considerar que o ego da criança ainda tem muito a aprender, seu sistema de defesa com relação ao mundo ainda está sendo construído, então quando as células de gordura são produzidas vão se comportar como as pulgas, procriando muito e quando isso vem a acontecer na vida adulta elas se reproduzem pouco mas ficam robustas, mais fortes como o elefante, sendo que no primeiro caso como o padrão não muda na vida adulta, parece que ele fica estacionado no estágio anterior de desenvolvimento.
Considerando o aspecto psíquico do tema a partir da visão junguiana, em que o corpo é um canal de expressão dos complexos, Goodman fez um experimento de associação de palavra e obesidade com vinte mulheres obesas e vinte no grupo controle e, uma análise mais profunda em três casos de estudo, identificou o feminino reprimido como um complexo manifestado em seus corpos como o excesso de peso.
Foi a partir de seu experimento de associação de palavras que Jung percebeu que as pessoas tinham reações físicas involuntárias muito sutis quando determinadas palavras eram ouvidas. Ao buscar a origem dessas reações “Jung terminaria por concluir que os vários sintomas corporais eram mensagens da própria psique. Em consequência, era possível atribuir-lhes significado simbólico” (Woodman, 2020, p. 104).
A partir do seu experimento de associação de palavras e do estudo de casos, a autora percebeu a relação de cinco complexos com a obesidade, complexo paterno, materno, alimentar, sexual e religioso, e analisando seus aspectos simbólicos percebeu um ponto em comum entre todos eles, a perda do feminino.
Neste artigo vou trazer alguns aspectos que mostram a relação destes complexos com a perda do feminino e com a obesidade
O complexo paterno pode se manifestar quando se tem a imagem de um pai perfeito, idealizado que provoca na filha o desejo de estar à altura dessa perfeição, levando-a a renegar seu lado sombrio, seus demônios. Ela faz de tudo para criar uma boa imagem para seu pai e ao fazer isso não pode se tornar uma mulher completa com limitações e imperfeições. Essa rigidez com que se cobra perfeição faz com que ela perca um aspecto essencial do feminino,
a sua devoção à ordem apolínea de vida, conjugada com o medo do demônio, leva-a buscar o controle do ego por meio da atividade do animus. Todavia, ao ignorar o seu lado puella, ela está perdendo o seu vínculo com Dionísio, o que leva à perda do componente essencial da natureza feminina. (Woodman, 2020, p. 165)
O complexo materno tem um papel mais importante no que diz respeito a desordens alimentares do que o complexo paterno e, tudo pode começar desde muito cedo com uma mãe que não sabe diferenciar os tipos de choros da criança e que assume que todos eles são de fome e atende a todos os chamados do bebê com comida, o que faz com que ele tenha dificuldade em diferenciar suas percepções corporais, pois tudo foi tratado da mesma forma, sendo alimentado, o que está fortemente associado à desordens alimentares.
Ao focar em seu peso, a mulher obesa desvia a atenção do enfrentamento que precisa acontecer para que haja o resgate do seu lado feminino mais instintivo, que foi renegado a favor de uma falsa sensação do controle do ego, pois se deixar levar por um ritmo mais espontâneo da vida é extremamente assustador e, como sua mãe também vive apartada desse ritmo, não consegue passar para a filha a segurança de que ela estará presente para acolhê-la nesse momento difícil.
Curvar-se à Grande Deusa é aceitar a vida tal como é: hoje inverno, amanhã primavera; a crueldade combinada com a beleza; a solidão seguindo o amor. Só é possível submeter-se quando sabe que os braços da mãe amorosa – ou, talvez, as asas estendidas do Espírito Santo – estarão abertas para acolher a criança que cai. (Woodman, 2020)
A manifestação dos outros três complexos podem ser observados na mulher obesa quando ela, por temer o contato com sua natureza feminina mais instintiva, passa o dia submetida a uma vigilância rígida para não ser levada pelos seus anseios de todos os tipos de fome, espiritual, sexual e de uma vida plena, mas à noite sucumbe às investidas desse lado sombrio inconsciente e vai tentar saciar todas as fomes de forma literal com o alimento proibido.
“A ligação intima entre o alimento físico e o alimento religioso é evidente. Elas anseiam pelo seu “pão de cada dia”, mas encaram o símbolo em termos concretos. (…) comer até que o ego caia no inconsciente torna- se uma paródia do orgasmo “ (Woodman, 2020, pp. 175, 176)
Aqui novamente o caminho é tornar o ego forte para que ele suporte a integração do feminino que está apartado, o que é uma tarefa árdua em uma cultura que se afastou da vida simbólica e por isso sacia a fome espiritual e sexual com o alimento na sua forma literal. Resgatar a capacidade de simbolizar os sintomas é o caminho para realizar a difícil tarefa, que pode contar com a ajuda dos sonhos e da imaginação ativa com o próprio corpo.
Com todas as considerações feitas é difícil se manter preso à ideia de que o peso corporal é apenas o resultado de uma operação aritmética, existem outras variáveis tanto fisiológicas quanto psíquicas que entram nessa conta, mas que não podem ser controladas como a quantidade de calorias ingeridas, até mesmo a obesidade primária pode significar uma eterna luta contra o excesso peso, em que as calorias consumidas não são a principal componente do resultado. E o mais importante de tudo é algo que deve ser considerado muito além da obesidade, a relação da psique com o corpo, a partir da perspectiva de que um sintoma é uma mensagem da psique, um complexo, que está manifestado de forma simbólica no corpo.
Dulce Ayako Kurauti
Membro analista em formação pelo IJEP
Dra E. Simone Magaldi Membro didata do IJEP
Bibliografia
von Franz, M.-L., & Hillman, J. (2020). A tipologia de Jung – Ensaios sobre psicologia analística.
Woodman, M. (2020). A coruja era filha do padeiro. Cultrix.