Resumo: O texto aborda a solidão como uma experiência essencial da condição humana, que se expressa de formas distintas conforme o contexto histórico e cultural. No mundo contemporâneo, marcado pela hiperconectividade e pelo culto à produtividade, a solidão se revela paradoxalmente presente, ainda que estejamos constantemente “conectados”. A análise destaca a diferença entre a solidão fértil — que propicia mergulho interior para uma travessia necessária e transformadora — e a solidão estéril dos tempos atuais, marcada pelo isolamento e pela superficialidade das relações.
A solidão é uma experiência humana fundamental. Transpassa os contextos históricos e culturais mostrando-se constante na alma humana.
Ora se expressa pela necessidade de recolhimento e nos visita para integrar e buscar um sentido na existência, ora aparece inesperadamente mesmo em comemorações ou momentos de celebração. Fato é que esta solidão que faz parte de nós também é vivenciada em um Espírito do Tempo. Marcado pela hiperconectividade digital, o mundo contemporâneo mostra faces paradoxais no que diz respeito a presença e solidão: estamos constantemente em rede, mas frequentemente desconectados de nós mesmos e dos outros.
Redes sociais, mensagens instantâneas e uma infinidade de canais de comunicação estão disponíveis 24 horas por dia, criando a ilusão de que nunca estivemos tão acompanhados.
Mas existe de fato uma comunicação real, uma troca verdadeira?
Ou estamos tão inundados de dados, fatos, vídeos, fotos, opiniões, que nadamos em uma superfície demasiado rasa de intercâmbio? Ao lado da alta conectividade virtual, paradoxalmente, a solidão e o vazio existencial crescem como sintomas sociais.
Muito embora a conexão ultraveloz por diversos meios, como indivíduos vivemos ilhados e afastados.
Em um passado não distante, grande parte da população vivia em áreas rurais, com mais espaço e maior distanciamento geográfico uns dos outros. Agora vivemos em espaços reduzidos, apartamentos apertados, uns sobre as cabeças dos outros… Entre taxas altíssimas de densidade populacional e uma interconexão tecnológica crescente, existe uma queixa comum do sentimento de solidão e de isolamento.
Se estamos cada vez mais juntos, se a comunicação não encontra barreiras tecnológicas e a conexão virtual é constante, como essa solidão se apresenta?
Byung-Chul Han afirma que vivemos uma crise: a crise de ressonância. Em uma sociedade marcada pela ênfase na performance, eficiência e produtividade, as pessoas perderam a capacidade de “ressoar” com o outro e com o mundo. Ressonância no sentido de se envolver de maneira autêntica e reflexiva com o que nos circunda, em contraste com a comunicação superficial e impessoal.
Em contraponto, como é próprio da vida, o isolamento apresenta várias faces. Existe um recolhimento interior necessário ao conhecimento da alma. No mergulho dentro de si, um silêncio dos ruídos externo é buscado, na tentativa de escuta dos movimentos internos. Esse processo é marcado por um natural afastamento, uma procura individual, uma solidão que ensina. Aguçar os ouvidos para os sons no mundo interno requer uma pausa, um tempo, um distanciamento. Tal movimento por vezes é marcado pela experiência solitária. Por mais que existam guias, livros, terapeutas, incursionar as águas profundas do mundo interno é um labor feito sozinho, mas com a companhia dos múltiplos habitantes da psique, nossos complexos. É preciso silenciar fora, para distinguir as vozes de dentro com maior consciência.
A solidão, dentro desse caminho de experiência psíquica, se torna um chamado ao conhecimento e integração do ser, um momento de recolhimento necessário para a escuta de aspectos inconscientes, como Jung nos traz neste trecho de “Memórias, Sonhos e Reflexões”:
A solidão não vem de não ter pessoas por perto, mas de ser incapaz de comunicar as coisas que parecem importantes, ou de manter certos pontos de vista que os outros consideram inadmissíveis.” (JUNG, 2000, p. 356)
Este isolamento não é um afastamento social patológico, mas sim uma retirada simbólica do mundo exterior para que o indivíduo possa reencontrar-se internamente.
Mesmo nos contos de fadas e narrativas mitológicas, observa-se um momento de isolamento necessário em que o herói, heroína ou protagonista da peripécia realiza uma transformação simbólica através de um recolhimento ou exílio. Seja o refugio na floresta, como em a Branca de Neve ou a descida ao Hades com Perséfone, o encontro com um potencial, aspecto ou sombra é feito em um lugar a parte, que requer uma travessia solitária. O verdadeiro crescimento se opera quando o indivíduo se defronta com seu próprio ser e com lugares antes desconhecidos em si mesmo. Processo esse que pede distanciamento da opinião externa já estruturada na consciência egóica.
Para Jung, a solidão está profundamente ligada ao processo de individuação e oferta um espaço simbólico de metamorfose. Ele afirma que “a individuação requer solidão, porque sem ela o indivíduo não pode tornar-se consciente de sua totalidade e de sua verdadeira natureza” (JUNG, 2011, §74).
O isolamento vivido como salutar distanciamento do mundo externo ou como solitária prisão nos habita de tempos em tempos. Como um vento que penetra nosso ser, o espírito da solidão faz parte da experiência humana. Por vezes com tonalidades de incompreensão e abandono, outras acompanhadas de desamor e crenças de não merecimento, o sentimento de solidão transpassa a alma e se faz presente.
O choque de sofrimento talvez se dê pela ideia de que não devemos ser sós, de que isso é errado, prejudicial e desagradável. Logo surge um impulso de querer retirar a solidão e vê-la como indesejável.
Para nos livrar desses momentos, temos filosofias que os explicam e fármacos que os negam. As filosofias dizem que a vida desenraizada e corrida da cidade grande e o trabalho impessoal criaram uma condição social de anomia. O sistema econômico industrial nos isola. Passamos a ser meros números. Vivemos o consumismo em vez de a comunidade. A solidão é um sintoma da vitimização. Somos vítimas de um modo de viver errado. Não devemos ser solitários. Mude o sistema — viva numa cooperativa ou numa comuna; trabalhe em equipe. Ou crie relacionamentos: “Se ligue, apenas se ligue.” Socialize-se, participe de grupos de recuperação, envolva-se. Pegue o telefone. Ou peça a seu médico uma receita de Prozac (HILLMAN, 1993, p. 27).
Ao mesmo tempo em que existe uma norma social implícita de positividade. Sorria; seja feliz; seja bem-sucedido; dê certo na vida; ache o seu propósito e seja autêntico, independente e especial; tenha uma vida produtiva; seja comunicativo; esteja atualizado, ligado, conectado com as novidades; esteja informado, por dentro, sempre ligado.
Nessa tônica, tudo depende de você. Faça e aconteça. Você pode se moldar, se construir, achar sua melhor versão.
Então, não surpreendentemente, aparecem a depressão, o isolamento, o afastamento e a sensação de estar sozinho no mundo. Claro, tudo depende de você, só de você. O peso sobre os ombros de cada indivíduo cresce, se torna insuportavelmente pesado. Uma vez que ‘querer é poder’, seria só você querer, só você fazer. Tudo está excessivamente centrado no ideal narcísico de realização, produção e satisfação. Não se pode ficar por fora, improdutivo, sem entregar resultados.
No panorama social contemporâneo, existe uma valorização exacerbada da extroversão, que entra em choque com esse impulso de recolhimento. Podemos conjecturar: não ser a toa que a depressão nos visita tão massivamente e insistentemente. Quando os valores sociais pedem ânimo, disposição, produtividade, autonomia, o que cresce como sintoma é um chamado depressivo que inviabiliza essa entrega unilateral de performance.
Byung-Chul Han argumenta que a solidão hoje é diferente da solidão do passado.
Antigamente, a solidão podia ser frutífera, ligada à contemplação, à criatividade e à liberdade interior. Hoje, ela é vivida como abandono, vazio e até sofrimento. Resultado de uma sociedade excessivamente conectada, em que todos estão presentes digitalmente o tempo todo, mas de modo superficial. A solidão atual se coloca assim como diferente da solidão fértil e meditativa do passado, passando ela a ser estéril, marcada pela falta de encontro real com o outro e por uma hiperexposição que, paradoxalmente, isola. Atualmente, não decorre necessariamente da ausência de convivência física com outras pessoas, mas sim da crescente dificuldade em criar vínculos profundos e significativos. Vivemos cercados por conexões constantes no meio digital, muito embora essas interações muitas vezes carecem de profundidade e presença real. É nesse vazio relacional, em que predominam contatos superficiais e a lógica da performance, que a experiência de estar só se intensifica e se torna mais dolorosa.
Isolamento que (co)rompe vem não como sintoma pontual, mas como onda coletiva da vivência da solidão.
Este é vivido como fruto da fragmentação das conexões. Muito embora a solidão seja uma vivência arquetípica que atravessa a história da humanidade e habita o imaginário coletivo com múltiplas faces — ora como angústia, ora como passo para transformação, no contexto contemporâneo, essa solidão toma a tonalidade de isolamento mais acentuado. Não se apresenta apenas como um sintoma individual, mas como uma onda coletiva, fruto da fragmentação das conexões e do esvaziamento dos vínculos autênticos. A solidão que emerge nesse cenário nasce também da incompreensão — de nos sentirmos incompreendidos pelo outro, mas sobretudo por nós mesmos. A ausência de ressonância com o mundo externo reflete, muitas vezes, um desconhecimento profundo deste nosso mundo interno.
Sob a ótica junguiana, no entanto, essa solidão não deve ser tratada como um mal a ser erradicado, mas como um espaço psíquico legítimo e necessário para escuta, integração e amadurecimento.
O vazio interior, longe de ser negado ou anestesiado, pode ser compreendido como terreno fértil para o processo de individuação.
O isolamento, portanto, não é patológico em si — ele pode ser uma condição propícia ao crescimento simbólico e à reconstrução de uma relação mais profunda consigo mesmo e com o outro.
Lorena de Sousa Oliveira – Analista em formação IJEP
Simone Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências bibliográficas:
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2024.
______. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Petrópolis: Vozes, 2020.
HILLMAN, James. O suicídio e a alma. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1993.
JUNG, Carl Gustav. A psicologia e a alquimia (Psychology and Alchemy). Obras completas, v. 12. Petrópolis: Vozes, 1980.
______. Memórias, sonhos, reflexões. 13. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Obras completas, v. 9, parte I. Petrópolis: Vozes, 2000.

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