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Fotografias da Alma

“As fotos criam o belo e – ao longo de gerações de fotógrafos – o esgotam”  Susan Sontag

Uma foto, um instante, uma situação de experiência que envolve toda uma família, um indivíduo, um evento. O que revela uma foto? Revela o que é visível: todo o ambiente fotografado, incluindo pessoas, coisas, animais, elementos de um tempo que ali se eterniza quase como um documento ou registro histórico. Mas também desvela o não visível: as ausências, os humores, padrões de repetições, objetos não percebidos, aspectos não considerados, elementos que só podem ser constatados quando o tempo, generosamente, nos dá a distância necessária para que a experiência possa oferecer uma nova forma de compreender a situação.

A foto artística, jornalística, como documento, como registro, é sempre uma foto de um instante que captura a imagem de um momento vivido. É a expressão de uma imagem que na foto se materializa pelas mãos do fotógrafo. Amador ou profissional, este fotógrafo permite que essa imagem capturada converse com aquele que vê a foto no tempo e, a partir disso, abre-se a possibilidade de   que imagem e sujeito se reencontrarem, ampliando não só a experiência vivida, mas diante da memória ali resgatada, o novo se descortina.

As pessoas por trás de uma foto tem alma. E, essa alma, pode falar através do tempo. A imagem ativa a memória, permite o diálogo, lembrando o passado, tornando o sujeito consciente de quem foi, de quem é, mas principalmente, o coloca diante do agora, e o torna consciente do passar do tempo; aquele que vê uma foto é afetado por ela e acaba também por afetar o que nela se revela. A imagem capturada possui potencial de revelação que, aos poucos, no diálogo com tudo que ela evoca, possibilita que ao ver a foto, o sujeito se descubra diferente do que acreditava ser.

Na clínica, quando pedimos uma seleção de fotos, não quero conhecer a família do sujeito em análise, não pretendo saber quem é quem no jogo da estrutura familiar. Quero saber como o sujeito encara seus laços mais básicos; como que ele me contará, a partir do que lhe é estimulado pela imagem, sua história, seus amores e desamores, suas lembranças misturadas com fragmentos de imagens ali capturadas pela câmera, sob olhar de um fotógrafo que, consciente ou inconsciente, flagrou um instante de seu mundo que é aparentemente conhecido. Mas submetido ao olhar da análise, esse mesmo mundo se revela estranho e surpreendente: a imagem da foto é colocada diante de um observador que indaga o que nunca antes foi permitido indagar, ou mesmo apenas submetido ao olhar curioso de quem busca conhecer o que antes não era possível absorver. Desse modo, cliente e terapeuta iniciam uma viagem por entre imagens e lembranças, retratos de instantes que se perderam no tempo e guardam, com ajuda da foto, tesouros das conexões submersas  nas escuras águas de nossa psique. Ambos, cliente e analista,  são conduzidos pela complexidade da subjetividade humana, que dispõe de fragmentos de uma vida cuja costura só a força do inconsciente é capaz de realizar. A consciência se amplia na medida em que, olhando para dentro de si mesmo, o confronto com o que em mim se esconde recebe a permissão de  oferecer uma nova percepção sobre minha história. Percepções, aliás, que se estendem ao infinito, dado que imagem e sujeito em diálogo revelam conexões que, até então, não eram percebidas como tais, mas possuíam força e energia suficientes para garantir autonomia e influência em sua vida psíquica.

Quem somos e porque somos, e, principalmente, para que somos como somos, parece guardar uma fonte inesgotável de desconhecimento que determina o conhecido. Diante da imagem de uma foto, o que é observado não é o que foi visto antes, mas se estabelece agora como um novo embate, diálogo infinito de mim comigo mesma, e um novo olhar, com novas conexões  se apresentará para o sujeito, até mesmo o levando a pensar que agora sim ele alcançou o saber sobre si, mas que na realidade é apenas mais uma faceta deste enorme desconhecido que é aquilo que sou.

O filósofo Abhram Joshua Heschel, ao falar sobre o sentido descrito na narrativa bíblica sobre nós sermos a imagem e semelhança de Deus, nos alerta para o fato que o lugar onde somos semelhantes a Deus é o lugar que nada sabemos sobre nós mesmos. Talvez aqui, em uma aproximação livre do argumento religioso com a psicologia do ser humano, podemos notar com clareza que para além do desconhecimento dos complexos que nos constitui, há ainda um sentido que me faz não saber quem sou, na mesma medida que me apresento à mim mesmo, com a certeza de saber a quem me refiro quando cito meu nome.

A foto que observo é a imagem que reconheço junto com aquilo que nada sei sobre mim; a fotografia é imagem viva pois é sempre dependente do olhar do observador que ao olhar para foto possibilita que o que está sendo observado possa existir. E não só existe no diálogo, mas também porque, ao confrontar a imagem, permito que a projeção se revele na própria percepção e, diante da foto vejo mais do que o olhar do fotógrafo, sou colocada diante de mim mesma, expressão de minha alma que ali está configurada pelo instante que foi eternizado pelo clic da câmera.

A emoção se une ao ato de fotografar , empresto meu olhar à câmera e registro a arte de criar aquilo que só minha alma enxerga. Mas não fotografo só para fazer arte; a arte de fotografar também faz vida. A vida é, assim, capturada pela câmera e, desse modo, preserva a memória, registra o vivido, se apresenta para as redes sociais, criando ilusão ao mesmo tempo que aponta a solidão. No álbum de família, reúne-se os bons e os maus momentos, mas quando conversamos com as memórias que são evocadas por tais imagens, quando percebemos as intenções por  de trás da câmera, quando observamos as repetições de padrões enquadrados pela lente do fotógrafo, quando a escolha das fotos torna-se o retrato de nossa situação psíquica atual, temos um álbum de constelações de complexos familiares que reivindicam um confronto com a imagem como expressão atual, tanto do consciente como do inconsciente . E, como observa Jung, “não se pode, pois, interpretar seu sentido só a partir da consciência ou só do inconsciente, mas apenas a partir de sua relação recíproca.” (Jung, 1921/1991, p. 418)

A fotografia é o acaso e como acaso ela nos coloca diante do desconhecido, mas que como todo acaso, insiste em aparecer só para aquele que o vê. Ao ver, o acaso se torna uma coincidência significativa, uma sincronicidade une , então, o sujeito e o objeto. Torna-se um evento, que me fala aos sentidos e que me revela uma nova conexão: eu deixo de procurar na foto o que conheço e aceito o convite que ela me faz: de conhecer o desconhecido em mim, a parte que ela revela um outro eu, ousadamente, um pedaço de mim que há muito foi guardado escondido entre poses, expressões, permissões, ausências, sorrisos, olhares, detalhes que insistem em se repetir em minha frente, sendo que minutos antes nem mesmo os via como parte de quem sou. A fotografia tem a honra de me apresentar a mim mesma, me convidando a entrar entres os detalhes da imagem, transformando em uma imagem criativa que emerge do encontro entre conhecido e desconhecido, consciente e inconsciente .

Gravamos em nossa memória, com mais facilidade, os eventos traumáticos, tristes, difíceis; construímos histórias a partir de nossas fotos, pois elas são imagens que nos remetem a fragmentos de nossa existência, com os quais podemos nos divertir, retocar, rasgar, criar rituais de despedida, de celebração, emoldurando, colocando em porta-retratos ou em álbuns. As fotos nos contam de pedaços de nossa existência, de uma forma específica, pois ela se dá pelo olhar do fotógrafo, que registra validando e atestando o vivido, assim como pelo fotografado – ambiente e as pessoas envolvidas nesse ambiente  – que se dispõe de modo a mostrar sua participação, a tornar-se personagem naquele enquadramento.

O tempo, sucessão de eventos, consegue ser salvo e eternizado pela foto. A imagem ali capturada, torna-se representante da realidade, validando, mas só o faz pois se torna uma imagem simbólica que, como tal, possui o que se evidencia, mas carrega com ela principalmente o desconhecido, o que se oculta. A experiência de fotografar é uma experiência estética, que no mundo contemporâneo tornou-se uma experiência de consumo, dado que em qualquer momento ou em qualquer situação um instante é capturado, sem necessariamente implicar em um evento, mas, talvez, apenas uma constatação de que existo; um modo da foto garantir minha presença em um mundo poluído de imagens. Entre elas, com a foto, garanto meu lugar e reafirmo o meu existir, atribuo importância ao meu ser, confiro valor ao meu agir e, dessa forma, combato a banalidade que me espreita e me retira do reconhecimento.

A compulsão pelos selfies e registros que me validam nesse mundo, me coloca na massa humana universal que sorri e se encontra em sua melhor performance. E, sob a sombra, estão todas as frustrações, solidão , infelicidades, fracassos; um outro mundo que não reconheço como próprio, é estrangeiro a mim, mas que parece nos visitar nas sensações depressivas que carrego quando sou convidado a olhar para dentro de mim mesma e não me encontro com aquele que ali na massa é enaltecido. Nesse ponto, a foto passa a convidar para uma escolha ética, isto é, devo ao estranho em mim, o devido valor e espaço para que ela tenha voz para falar do que sente minha alma.

O material inconsciente é confrontado a partir da relação que tenho com o que desconheço e, como aponta Jung, devemos adotar uma perspectiva fenomenológica em relação aos conteúdos inconscientes: o fenômeno se mostra e, o que desconheço, entra em diálogo com o que sei de mim. Nesse momento, as imagens das fotografias não escondem, revelam a alma, pois não representam, mas se apresentam com alteridades à consciência.

A imagem, considerada como realidade, submete a própria realidade , a concretude da existência, a sombra. Ao contemplar o tempo passado, vemos a foto antiga em um novo contexto, um novo diálogo com os mortos – um instante que passou, pessoas que já não estão mais conosco, com os mortos, com o que fomos e permitimos ser, com aqueles que conosco interagiam e que conhecíamos como eram, mas que agora se mostram de outro modo, pois reconhecemos o que o tempo nos ensinou e buscamos através da consciência a diferenciação do que fomos diante daquilo que nos formou. Somos tomados por complexos que são ativados pela imagem e que constelam a mesma situação que tem nos enquadrado há muito tempo. Parafraseando a epígrafe deste texto, a foto revela o belo, esperado por todo fotógrafo, mas por meio dele, com ajuda do tempo, de outras fotos e do trabalho de confronto com nós mesmos, acabará por mostrar seu esgotamento como demanda. A foto acaba se tornando um instrumento que revela a alma.

Maria Cristina Mariante Guarnieri – 17/07/2019

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