Prateleiras de super-mercados abarrotadas. Vastas áreas em reluzentes shopping centers lançando apelos ao consumo… Consumo e mais consumo, sempre acenado como viabilizado por sorridentes anunciantes de cartões de crédito. Autonomia. O mundo da fartura sem compromisso com a origem dos produtos, com a remuneração de quem os fabricou, transportou, de quem os está vendendo. Nem com os resíduos produzidos no processo. Engajamento total na compra de uma imagem. A construção de uma persona de aparência feliz e integrada ao mundo hiperdigital em que vivemos. E tudo tão fácil, tão aparentemente ao alcance das mãos, de um gesto. De um clique. As dívidas e dúvidas… Ficam para amanhã. Vamos a qualquer lugar com um piscar de olhos, com um telefonema, com a consulta a um site na internet.
Uma greve de caminhoneiros. Aqueles infindáveis e multicoloridos produtos começam a faltar nas prateleiras. Incrível a surpresa… Eles não surgem do nada, por geração espontânea, ali das prateleiras mesmo. Eles são produzidos em algum outro lugar do planeta, do país. São transportados por rodovias em nosso país. Pessoas estão envolvidas em seu transporte. E fazem greve. E protestam contra os custos dos combustíveis. E outros protestos, mandos e desmandos em outras esferas da sociedade, com severas repercussões, reverberam pelo país. Mazelas cotidianas são atribuídas à greve… Muitas delas já existiam e apenas não eram vistas.
Vamos aonde? Não há combustível para ir. Incrível, dependemos de combustívels, água, energia elétrica, comida! Somos bichos de carne e osso! Precisamos uns dos outros para existir nessa tão complexa e intrincada sociedade em que vivemos. E tão frágil, quão frágil, está finalmente ficando evidente serem nossos arranjos para esse nosso modo urbano industrial de viver!!
E é isso, a greve dos caminhoneiros está entre outras coisas, tornando evidente em nosso país, a intensa interdependência da vida humana, uns dos outros e do ambiente não humano… E está mostrando sua fragilidade, a tremenda ilusão que é nossa mágica de sermos “ótimos”, “excelentes”, bastando para isso comprar mais um produto ou viajar para um lugar a mais, talvez assistir a mais um filme ou ler mais um livro, ou frequentar mais um bar ou restaurante da moda…
Maturana e Verden-Zoller (2004) enfatizam que somos filhos do cuidado. Nossa intensa interdependência é uma marca evolutiva humana. Nossa extrema fragilidade parece ter sido necessária à evolução de um sistema nervoso com com a capacidade de dar suporte à simbolização. Fomos selecionados para a empatia e o cuidado recíproco, porque disso precisávamos e isso nos permitiu e exigiu evoluir para a inteligência social, afetiva, além da racional-cognitiva. Dependemos uns dos outros continuamente e em geral não temos consciência disso. Onde fica nossa consciência dessa rede de inter-relações de que dependemos cotidianamente?
Para Jung, furtar-se ao aprofundamento da existência, ao amadurecimento como pessoa, ao enfrentamento das questões éticas implica em estancar conflitos, detendo o fluxo da vida. O modo de viver identificado apenas com o ego envolve uma inflação deste com perspectivas de neurose, de estagnação da energia da vida (JUNG, 1987, p. 5). No entanto, hoje vemos disseminada a identificação limitante do ego com o herói que tudo pode. Esta ganha semelhanças com crenças de onipotência irracionais às quais o ethos do momento contemporâneo apoia ao assumir o humano como centro do universo, capaz de tudo resolver por meio da ciência e tecnologia. A grande crença coletiva na suficiência do consumo como proposta de vida e do humano como capaz de tudo resolver pela ciência e tecnologia leva de um lado à identificação com a persona de herói onipotente, como parte de um ego e uma consciência extremamente alienados sequer das causas e condições para a continuidade da vida material, quanto mais da psíquica. Por outro lado, submerge-se na psique coletiva, ao assumir as crenças do consciente coletivo sem a necessária reflexão ética, pessoal e intransferível. Obviamente, para o desenvolvimento saudável da vida, há que ocorrer certo grau de identificação com a psique coletiva, sem o qual “valores vitais inerentes à psique coletiva” seriam perdidos. Em contrapartida, somente a existência humana particular, conscientemente assumida “é capaz de oferecer a possibilidade de uma vida suportável e satisfatória” (ibid, p. 142-3). Jung ressalta também que o individual “é justamente a instância que jamais pode desfazer-se no coletivo, não podendo identificar-se com ele. Por isso uma identificação com o coletivo ou uma voluntária ruptura com este último significa doença” e acrescenta: “a individualidade espiritual baseia-se no corpo e jamais poderá realizar-se se os direitos do corpo não forem reconhecidos. Inversamente, o corpo também não pode desenvolver-se se a singularidade espiritual não for reconhecida” (ibid., p. 144).
Desse modo, um viver materialista e consumista não poderá atender às necessidades interiores da psique humana. E, na situação contemporânea, furtar-se à reflexão mais profunda, apoiando-se na identificação coletiva com o herói que a tudo pode resolver também implica numa perda da possibilidade de individuação. Cabe lembrar que Jung (ibid., p. 144), em face de impasses, de conflitos semelhantes, questiona: em casos assim, o que pode surgir como um progresso à altura da vida? E propõe o reconhecimento da vida psicológica “que se expande da cooperação natural do consciente e do inconsciente, por um lado, e do individual e coletivo, por outro”. Ressalta, entretanto, que tanto o inconsciente como o consciente são apenas, cada um, um dos aspectos da psique, ambos necessários a esse processo cooperativo.
A favor desse processo Jung vê a análise. Considera-a como “uma arte, uma técnica ou uma ciência da vida psicológica” a ser cultivada mesmo após o término de um tratamento dado ser essencial que o indivíduo continue em contato com o inconsciente. Para Jung, “a verdadeira meta da análise é atingida quando o paciente adquire um conhecimento suficiente dos métodos, mediante os quais poderá ficar em contato com o inconsciente e um saber psicológico satisfatório, que lhe permita compreender razoavelmente o desenvolvimento do seu traçado vital” (ibid., p. 148). Isso para que o consciente do paciente possa acompanhar os movimentos de sua própria energia psíquica e apoiar a individualidade resultante.
Dado que, segundo o próprio Jung, a análise, seja ela individual ou em grupo, não se destina às massas e estamos diante de um fenômeno de grande necessidade de consciência vivido pelas massas… O que propõe Jung? Atuarmos mais pelo exemplo da própria vida em que se empenhe na ampliação de consciência, na busca da cooperação entre consciente e inconsciente, do que através de “discursos pomposos e de propaganda missionária” (idem). Enfatiza que “Só com a assimilação do inconsciente a individualidade emerge e se evidencia através daquele fenômeno psicológico de ligação entre o eu e o não-eu” (ibid., p. 150). Acrescenta ser esse o modo de se alcançar uma posição não mais típica (coletiva), mas a autêntica posição individual.
Jung refletiu em vários momentos sobre a psicologia das massas, como também, sobre que a vida traz desafios que estimulam mudanças e crescimento. Obviamente há muitos níveis de ação na atitude heroica do consumismo comentada no início do presente trabalho. Mas, se o que reconhecemos como não-eu deve ser integrado, se estamos engajados em um processo de individuação, trabalhar esse não-eu talvez seja de extrema necessidade e importância nesse momento. Fica então um desafio: até que ponto posso conhecer e transformar minha própria alienação como cidadão, como humano do século XXI? Quem sabe engajados nesse trabalho, possamos avivar melhor no consciente coletivo contemporâneo o reconhecimento da profunda interdependência entre os humanos e entre nós e as demais formas de vida em nosso planeta – e respeitando a essa nossa condição, possamos criar melhores condições à vida para todos.
BIBLIOGRAFIA
JUNG, C.G. O eu e o inconsciente. 6ª Ed. [tradução: Dora Ferreira da Silva]. Petrópolis: Vozes. 1987. 166 p.
MATURANA, H.; VERDEN-ZOLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. [tradução: Humberto Mariotti e Lia Diskin]. São Paulo: Palas Athena. 2004, 363 p.
Silvia Molina email: silvia.maria@gmail.com; Especialista em Psicologia Junguiana e Analista em Formação pelo IJEP.