Resumo: O presente artigo amplia o estudo do conto João de Ferro a partir de reflexões pessoais para um aspecto coletivo, que é a sombra do controle que pode capturar as mulheres na vivência da maternagem e o confronto com ela quando o filho se torna adolescente. Reconhecer que a sombra do controle pode represar e limitar a vida e que seu reconhecimento pode trazer mais leveza e favorecer ao encontro do Si-mesmo é o meu convite nessa leitura.
O Conto João de Ferro narra a história de um jovem príncipe que na busca de si precisa se separar da mãe.
No conto o jovem brinca de bola próximo à jaula de um prisioneiro do castelo, o João de Ferro, e sua bola cai dentro da jaula. Para ter sua bola de volta o prisioneiro exige que o rapaz consiga a chave da jaula e que o liberte, mas sabendo que a chave se encontra embaixo do travesseiro da mãe e que ele não poderá pedir a ela, ele precisa roubar a chave para libertar o prisioneiro e assim ter a sua bola de volta.
Ao libertar o prisioneiro o jovem príncipe entende que não poderá mais ficar no castelo, afinal, traiu a confiança de sua mãe e então segue com João de Ferro para a floresta onde passa por diversas aventuras simbólicas e transformadoras, até que o jovem em um determinado momento passa a seguir sua jornada sem o João de Ferro, uma vez que interiorizou a força necessária e que agora se sente forte o suficiente para seguir sua jornada pessoal sozinho.
O conto tem aspectos simbólicos extremamente tocantes, o livro de Robert Bly “João de Ferro – um livro sobre homens” amplia o conto falando sobre todos os aspectos relacionados a psique do homem, a necessidade de se afastar da mãe na busca de sua própria jornada, a importância das referências de força e iniciação do masculino para que possa ser arrastado para fora do complexo materno e assim vencer a força regressiva da psique que busca o aconchego e a proteção tão arquetípica desse complexo e, mais ainda mostra o quão importante é a assimilação do referencial masculino para que o jovem possa ter a coragem necessária para viver a vida com integridade.
Mas, como mãe eu fui tocada pelo conto de outra forma e é sobre isso que quero falar nesse artigo
E foi interessante como esse processo se desenrolou em mim… li a primeira vez e emocionalmente ele me passou batido, participei da aula sobre ele e as ampliações propostas começaram a se conectar comigo e a fazer sentido, mas ainda estavam fora de mim… achei interessante e importantíssimas todas as correlações sobre a psique masculina que, inclusive no livro de Bly citado anteriormente e no de James Hollis (Sob a Sombra de Saturno) são maravilhosamente também expostas.
E eis que o terceiro momento foi crucial, levo meu filho ao caratê e carrego comigo lápis de cor e folhas sulfite e enquanto o aguardo no carro resolvo desenhar minhas impressões sobre o conto e o que me invade é a dor da mãe. A princípio compreendo essa dor como a dor da mãe que acha que precisa entregar a chave, mas que sofre e que não o quer fazer. Concluo o desenho que ilustra esse artigo em meio a lágrimas e resolvo me aprofundar nessa dor através de reflexões, do processo de escrita e de meu processo analítico.
Muito se fala sobre o poder do complexo materno (HOLLIS, 2008, p.52), sobre seu aspecto dual, a força arquetípica que ao mesmo tempo em que dá a vida procura tomá-la de volta. Sobre o papel da mãe como mediadora da experiência do feminino dos homens e de seu relacionamento com sua própria anima (HOLLIS, 2008, p.56). E que uma das maiores tarefas evolutivas do homem é alcançar a separação saudável do vínculo com sua mãe pessoal (HOLLIS, 2008, p.64).
Hollis (2008, p.68) ainda cita que “para se tornar um adulto consciente o homem precisa lutar com vigor contra seu complexo materno, reconhecendo que a batalha é interior”.
Isso tudo para que não o projete em outras mulheres. O autor cita que o poder do complexo materno é observado nas projeções quando o homem sucumbe às orientações das mulheres ou quando procura dominá-las e que o medo e ao mesmo tempo anseio mais profundo é o da aniquilação mãe.
Jung (2020, p.64) cita que o adolescente está destinado para o mundo e que pais que persistem em considerar os filhos sempre como crianças. Assim o fazem por não quererem envelhecer ou por não quererem renunciar à autoridade e ao poder de pais. Exercem sobre os filhos uma influência que pode tirar-lhes a responsabilidade individual, produzir pessoas sem independência própria ou indivíduos que forçam a conquista da própria independência por caminhos escusos.
A princípio transitei pela certeza de que como mãe caberia a mim não apenas compreender a importância desse processo, mas, para além disso, promovê-lo e facilitá-lo. E eis que então uma outra compreensão se estabelece: Comecei a compreender que talvez a dor venha do aspecto apontado por Jung no parágrafo logo acima, que fala sobre não querer renunciar à autoridade e ao poder que se exerce sobre os filhos. Afinal, a mãe gesta, cuida, nutre e na ilusão materna controla o tempo, a comida, a roupa que vai vestir, o entorno, o medo, as incertezas…
De forma que a transgressão do filho soa como uma traição, um abandono e o fim da ilusão das certezas de controle.
Acredito que caiba aqui a reflexão de que o papel da mãe não seja favorecer ou realizar esse processo de separação. Afinal, arquetipicamente, é tarefa do filho frente ao aprisionamento trair a mãe. Separar-se, roubar a chave para que efetivamente seu processo de amadurecimento possa se concretizar. Porque caso isso seja feito pela própria mãe não terá valor e estruturação do ponto de vista psíquico.
Então, cabe a mãe frente à dor dessa traição. Ao invés de favorecer o processo do filho, compreender por qual razão é tão difícil renunciar à autoridade e ao poder materno. E o que me atravessa é a necessidade de controle. E, ao ampliar essa dor pessoal, percebo que ela tem um significativo aspecto coletivo. Uma vez que a sombra do controle é uma vivência extremamente comum dentro dos consultórios que traz angústia e sofrimento para muitas mulheres e a presente ampliação pode trazer algumas reflexões.
Ao se tornar mãe uma mulher pode ser facilmente capturada pela sombra do controle.
Afinal, ao dar a vida a uma criança ela se dá por conta de que depende dela aquela vida que acaba de nascer, em alguns casos às vezes até mesmo deixando o pai à mercê de meus caprichos, a mãe decide e controla como, quando, de que forma, estabelece os limites, os horários, a escola, a rotina e, assim, talvez seus medos e suas angústias fiquem da mesma forma controlados. Mas, um filho precisa de muito mais do que esses aspectos. Ele precisa crescer, se desenvolver, sentir e experienciar a vida. Descobrir seus limites e aquilo que ele precisa controlar, e isso já começa no controle dos esfíncteres ainda em tenra idade.
O controle como sombra, através da autoridade e do poder materno, quando os filhos entram na adolescência precisa ser olhado e ressignificado. Afinal, é nesse momento que a mãe se percebe totalmente desnecessária e sem controle. E então, talvez seja necessário se questionar a serviço de que a sombra do controle, poder e autoridade estiveram presentes? Para cumprir um papel arquetípico materno, mas ao que mais? Afinal, viver uma vida na crença de que se pode controlar tudo é uma absoluta ilusão do ego.
Talvez a perda do controle represente uma ameaça à vida. E como mecanismo de defesa tentamos controlar o ambiente, eventos futuros, nossas reações e emoções e até mesmo a dos outros!
Mas, será que na verdade não estamos tentando controlar o medo e a insegurança que são projetados em diferentes situações?
Podemos considerar que o controle alivia a ansiedade, aprisiona o medo e assim ele também tenha o poder de limitar e represar a vida. Afinal talvez ela pudesse seguir caminhos diferentes daqueles que o controle represou e estabeleceu. Se a vida está em constante movimento e transformação, querer controlá-la talvez seja neurótico e desgastante.
É possível que haja a crença de que o controle possa permitir organizar e prever. “Pré ver”, ver antes e assim, nos proteger das emoções e afetos que a vida poderia nos apresentar e assim sofrer menos. Mas, em verdade, essa crença pode tornar a vida infértil, artificial e sem espontaneidade, onde a criatividade fica sem espaço. Com a intenção de ter os imprevistos sempre antecipados, a vida fica sem mistérios e sem surpresas.
Se a vida é fluxo, movimento e transformação lutar contra isso talvez seja uma falta de reconhecimento de quem somos. E o distanciamento de nossos prazeres e necessidades pode tornar o fluxo da vida assustador e o controle acalma, em uma falsa ilusão.
É certo de que há um lado em todos nós que se apavora com a possibilidade de as coisas serem diferentes do que planejamos porque a incerteza nos parece assustadora. Entretanto, a vida é incerta. E, se você parar para pensar um pouco, possivelmente as dores que você viveu, em verdade, nunca puderam ser controladas. Nossas dores estão sempre dentro de nós guardadas em algum lugar, mesmo que não as acessemos. E, se pararmos para pensar de forma mais aprofundada daremos conta de que apenas fizemos um esforço enorme para controlar o incontrolável, a vida.
Jung (1998, p.43-44) afirmou acerca da prática da psicoterapia:
Fazer experiências com meu ser e assim produzir um estado de fluidez é o que tem tido o poder de me transformar e contribuir para o meu processo de vir a ser. Ao nos expor a impermanência da vida e a sua fluidez e mudanças, poderemos perceber que temos a capacidade de nos adaptar e pouco a pouco mergulhar de corpo e alma às flutuações da vida. Que assim como o mar (o inconsciente) não pode ser controlado, mas podemos nos ajustar a ele, respeitando sua força (a vida) e os nossos limites.
Nessa analogia podemos pensar em outra citação de Jung em A Prática da Psicoterapia (1998, p.10) “mar significa invariavelmente um lugar de concentração e origem de toda vida psíquica, portanto, o chamado “inconsciente coletivo. A água em movimento pode significar o fluir da vida ou o fluir da energia”.
Se o controle advém do medo, reconhecer o que é tão assustador em nós, mergulhar nesse desconhecido fantasiado de controle talvez possa ser uma alternativa e um possível caminho para uma aproximação do Si-mesmo.
Gosto da ideia de ampliar a reflexão de Jung (1998, p. 15) quando ele fala sobre a razão por que a maneira de ver as coisas tem um papel decisivo para certas situações da vida serem patogênicas ou possibilitarem transformação e, como ele também cita cura significa transformação. Talvez possamos transformar a angústia ao reconhecer a neurose do controle como algo devastador e limitador da vida. Mas enxergar a possibilidade de reconhecê-la como uma parte de todos nós que uma vez trazida da sombra pode ser ressignificada e transformada através de uma atitude consciente.
“Afinal, a maioria das coisas depende muito mais da maneira como as encaramos, e não de como são em si” (JUNG, 1998, p.43).
Patricia Cordeiro – Membro Analista em Formação IJEP
Ajax Salvador – Analista Didata IJEP
Referências:
- BLY R. João de Ferro – um livro sobre homens
- HOLLIS, J. Sob a Sombra de Saturno – a ferida e a cura dos homens. 3ed. São Paulo: Paulus, 2008
- JUNG, C.G. A Prática da Psicoterapia. 6ed. Petrópolis: Vozes, 1998
- JUNG, C.G. O Desenvolvimento da Personalidade. 14ed. Petrópolis: Vozes, 2020
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