Estamos vivendo tempos em que a necessidade de rapidez da notícia e a pressa em se produzir conteúdo para as redes, pode acabar contribuindo para a produção de conteúdos rasos e equivocados. Hoje as pessoas não querem ficar mais do que alguns minutos debruçadas sobre um tema, e muitas vezes optam por vídeos curtos do tipo tik tok e afins. As fake news dominam as mídias e com isso, pessoas desinformadas ou mesmo mal-intencionadas veem um terreno fértil para disseminar inverdades sobre qualquer tema que lhes convier e tentar assim, manchar a reputação de qualquer desafeto sem levar em conta o desserviço que isso causa na comunidade como um todo. Mas engana-se quem acha que isso só acontece agora com o advento das redes sociais. Esse tipo de coisa sempre aconteceu, porém com um alcance muito menor do que o que se consegue hoje. Por isso mais do que nunca devemos ficar atentos ao que lemos, ouvimos ou assistimos. Precisamos sempre pesquisar fontes e estudá-las exaustivamente antes de sair por aí falando sobre qualquer assunto ou fazendo acusações de qualquer ordem.
Voltou aos destaques, há algumas semanas, um assunto bastante discutido desde os anos 1930 sobre Jung ter colaborado com o nazismo de alguma forma. Vira e mexe, de tempos em tempos, alguém traz esse assunto a baila novamente, e apesar de já ter sido amplamente discutido sempre causa um enorme rebuliço. Em geral são desafetos da teoria junguiana, estudiosos da psique de outras abordagens e psicanalistas que não leram e nem tem interesse em ler a teoria junguiana. Seu único interesse é tentar destruir o pensamento junguiano que vem, notadamente, ganhando reconhecimento nos últimos anos.
Não é nem necessário que se faça uma ampla e profunda pesquisa a respeito desse assunto, como disse anteriormente essa questão sempre vem à tona, mas basta uma pequena pesquisa para encontrarmos fatos que comprovam o contrário.
Em seu livro “Jung e a construção da Psicologia Moderna” Sonu Shamdasani traz em seu prólogo a seguinte consideração:
Ocultista, cientista, profeta, charlatão, filósofo, racista, guru, antissemita, libertador das mulheres, misógino, apóstata de Freud, gnóstico, pós modernista, polígamo, curador, poeta, falso artista, psiquiatra e antipsiquiatra – do que C. G. Jung ainda não foi chamado? Mencione o nome dele para alguém e é provável que você escute um desses rótulos, pois Jung é alguém a cujo respeito às pessoas têm alguma opinião, consistente ou não. A rapidez do tempo de reação indica que as pessoas reagem à vida e a obra de Jung como se fossem suficientemente conhecidas. Entretanto, a própria proliferação de “Jungs” nos leva a questionar se, de fato, todos estariam falando de uma mesma criatura. (Shamdasani, 2017, p. 15)
Neste trecho fica claro que mesmo entre os estudiosos da obra de Jung e de sua vida é possível encontrar quem não tenha se debruçado o suficiente para entender todos os aspectos da complexidade de seu pensamento. Ora, se isso é amplamente percebido na comunidade junguiana, com muita gente se intitulando junguiano sem ter estudado a fundo sua obra, imagine na comunidade psicanalítica que carrega rancores desde a época da ruptura da amizade de Jung e Freud.
Numa carta de 22 de fevereiro de 1952 ao editor da revista Merkur VI/5, Jung responde a uma acusação feita por Martin Buber nessa mesma revista acusando-o de gnosticismo, e chega a dizer que tal fato é cômico pois cronologicamente coincide com uma fonte teológica autorizada que acabara de acusá-lo de ser agnóstico. E completa:
Ora, se as opiniões divergem tanto umas das outras sobre uma determinada questão, é porque, segundo me parece, existe a suposição bem fundada de que nenhuma delas é verdadeira, isto é, há um mal-entendido. Por que se dedica tanta atenção ao problema de saber se sou gnóstico ou agnóstico? Por que não dizer simplesmente que sou um psiquiatra cujo interesse principal é expor e interpretar o material colhido em suas experiências? O que tento fazer é investigar os fatos concretos e torná-los acessíveis à inteligência. A crítica não tem o direito de agir apressadamente, atacando apenas afirmações isoladas e fora do contexto. (Jung, 2011, § 1500)
O que Jung diz nessa última frase da citação acima, é justamente o que fazem as pessoas que o criticam, atacam-no com afirmações isoladas e fora de contexto. E fazem isso sobre os mais diversos assuntos sobre os quais Jung se debruçou anos a fio. Coletam pedaços que servem as suas percepções alteradas e as utilizam de modo que favoreçam as suas hipóteses, e corroborem com sua atitude de má fé. É dessa maneira que brotam informações equivocadas e rasas afirmando que Jung seria antissemita.
Segundo o próprio Jung quem começou esse boato foi Freud, a partir de uma associação feita durante a análise de um sonho pessoal de Jung. Ele escreve a Michael Fordham que “a história de meu antissemitismo e de minha simpatia pelo nazismo começaram, originalmente, com o próprio Freud, santo pai. Quando discordei dele, ele precisou achar uma razão para aquela totalmente incompreensível discordância e pensou, então, que eu deveria ser antissemita”. E segue numa afirmação que pode ser lida na nota de rodapé 103 do livro de Shamdasani,
Num texto não datado sobre o antissemitismo, ele (Jung) também reafirmou que a acusação de antissemita “tem origem no Prof. Freud e seus discípulos, que obviamente não conseguiram compreender que motivos poderiam ter-me levado a adotar uma visão científica diversa da que era ensinada pelo mestre”.
Barbara Hannah em Jung Vida e Obra Uma memória biográfica, considerada umas das melhores e mais importantes biografias de Jung, diz logo no prefácio do livro que ela se dedicou a incomoda tarefa de aprofundar-se nesse assunto, justamente por tratar-se de um boato estranhamente persistente, e como conviveu com Jung em Kusnacht desde a ascensão do nazismo até a derrocada final, sentia-se no direito e no dever de testemunhar sobre o assunto. Durante a leitura deste livro ela conta muitas passagens que deixa muito claro a posição de Jung e sua preocupação com o que acontecia com a Alemanha. Ela traz relatos a partir das conversas que tinha com ele e de suas lembranças, mas também trechos de correspondências onde Jung fala acerca da temática do nazismo.
Vou reproduzir aqui parte de um trecho onde Jung fala da psicose de massa e do arquétipo:
Quando Hitler tomou o poder, ficou claro para mim que uma psicose de massa estava em ebulição na Alemanha. Contudo, eu não conseguia deixar de pensar que afinal tratava-se da Alemanha, uma nação europeia civilizada com um senso de moralidade e disciplina… O nacional-socialismo foi um daqueles fenômenos psicológicos de massa, uma daquelas irrupções do inconsciente coletivo, acerca de que eu vinha falando nos últimos 20 anos. As forças propulsoras de um movimento psicológico de massa são essencialmente arquetípicas. Cada arquétipo contém o mais baixo e o mais alto, o mal e o bem, sendo, portanto, capaz de produzir resultados diametralmente opostos… (JUNG apud HANNAH, 2003, p.222)
Ela afirma que qualquer pessoa que tenha estado com Jung em Berlim, em julho de 1933 e que o tenha acompanhado de alguma forma nos 28 anos seguintes sabe o quão absurda e sem fundamento é a calúnia de que Jung seria nazista e o quanto o trabalho para desmentir essa calúnia causa aversão, sendo um enorme desperdício de energia. Ela diz que as pessoas que acreditam nessa afirmação desejam acreditar e que de nada adianta tentar dissuadi-las. Vejam bem, é exatamente o que acontece hoje em dia, continuamos tentando mostrar para pessoas que desejam e preferem acreditar que Jung era nazista e antissemita, e de pouco adianta mostrar provas que digam o contrário ainda que elas estejam bem diante de seus olhos, e por que isso acontece?
Porque como disse logo no início desse texto, notadamente a psicologia analítica vem crescendo e isso continua incomodando algumas comunidades que temem perder espaço no estudo da mente humana. Tal temor só revela insegurança quanto ao seu próprio campo de estudos. Jung fala da complexidade de se estudar a psique humana e que uma única visão jamais seria capaz de abarcar toda essa complexidade, por isso passava bem longe de suas intenções provar que a psicologia analítica era a única abordagem possível e válida.
O fato de que cada um olha a questão por um lado, como fazem dois observadores que olham o numeral 6, onde de um lado pode-se ver o 6 e de outro o 9, e ambos têm a mais absoluta certeza de que estão corretos, explica a interpretação que tiveram a respeito da afirmação de Jung sobre os judeus terem duas culturas.
Esse trecho pode ser lido na íntegra, na página 232 do livro de Hannah, trarei apenas um trecho para não me alongar demasiadamente:
…Em meu entender, esse é um problema que para os judeus não existe, pois estes já dispõem da cultura da Antiguidade, sobre a qual revestem-se da cultura das nações em que habitam. O judeu tem duas culturas, por mais paradoxal que isso possa parecer. Ele é domesticado em um grau mais elevado que nós, porém falta-lhe aquela qualidade que finca as raízes do homem no solo e extrai novas forças das profundezas…
Quando Jung afirma que os judeus têm duas culturas por serem um povo mais antigo, ele o faz como um elogio, pois trata-se de uma psique que tem um inconsciente mais profundo e mais rico, com muito mais material trabalhado, o que é de extrema importância para os junguianos. Mas para a psicanálise isso soa como uma crítica, uma desvalorização do povo judeu porque para eles a consciência é o mais importante, pois a psicanálise se fundamenta na importância em se instrumentalizar o ego para se defender do inconsciente, pois para a psicanálise o indivíduo saudável é aquele que consegue se defender da invasão do inconsciente. Isso deixa claro que qualquer psicanalista que queira ler sobre a psicologia analítica precisa renunciar ao redutivismo que lhe é peculiar e estar disposto a olhar por outras lentes a psique humana.
Barbara Hannah deixa claro que desde 1918 ou até antes é possível perceber que Jung enfatiza não só a diferença entre as raças judaica e ariana, mas entre todas as raças e todas as nações, isso bastaria para comprovar que Jung não tinha nada contra os judeus. Porém, ela ainda traz um trecho de uma réplica que Jung faz ao Dr. Bally, que publicou uma carta em que acusava Jung de antissemitismo. E diz:
A carta do Dr. Bally provocou pouca sensação no período em que foi publicada, e o pouco que causou logo amainou, depois que Jung colocou tudo em pratos limpos em sua “Réplica ao Dr. Bally”. Entretanto, evidentemente o veneno seguiu corroendo as bases, só raramente enviando alguma centelha à superfície durante os 11 anos seguintes. Depois da guerra, quando os sentimentos encontravam-se a flor da pele e o pior que se podia dizer de alguém era acusá-lo de nazista, a tentação foi grande demais para os desejosos de denegrir* Jung. Eles reavivaram todos os equívocos do Dr. Bally, ignorando a réplica de Jung e os fatos. Quando não são anônimos, lamentavelmente, esses ataques em geral podem ser atribuídos a outros psicólogos, tais como os freudianos, que parecem estar sofrendo de inveja. (HANNAH, 2003, p. 235) (destaque desta autora)
Como podemos observar na afirmação de Barbara Hannah, e não podemos aqui esquecer que se trata de uma pessoa que privava da intimidade da família e acompanhou de perto todas essas situações, essa acusação sempre volta à tona, de tempos em tempos e sua última frase desta citação poderia muito bem ter sido dita a algumas semanas atrás quando novamente essas acusações circularam nas redes sociais.
Ela ainda narra uma “fuga” realizada na tentativa de deixar a família Jung a salvo nas montanhas, pois chegou ao conhecimento de Jung, através de um telefonema do alto escalão em Berna, que seu nome figurava na lista negra dos nazistas e que seria prudente que a família deixasse Zurique imediatamente. Embora Jung estivesse contrariado em deixar seu exercício profissional naquele momento, esse telefonema, a ansiedade de Emma em manter a família segura, principalmente os netos, e a notícia que recebeu de um amigo do alto comando militar dizendo que, provavelmente, a Suíça seria atacada naquele mesmo dia, fez com que ele resolvesse levar toda a família para as montanhas.
Provavelmente essa não será a última vez que alguém se debruça sobre essa questão para provar o que já está mais do que provado – Jung não era nazista – nosso intuito aqui é falar com você que estuda a psicologia analítica e alertá-lo para a importância de se estudar profundamente essa teoria, pois não faltarão pessoas tentando desqualificá-la. Lembremos sempre que nosso objeto de estudos, a psique humana, é extremamente complexa e Jung sabia e respeitava essa complexidade, façamos o mesmo.
*A palavra denegrir foi mantida apenas por tratar-se de uma citação direta, pois na época da citação essa palavra era utilizada. Temos a total ciência que ela não deve ser utilizada nos dias de hoje.
Keller Villela – membro analista em formação pelo IJEP e professora
E. Simone Magaldi – analista didata responsável
Referências:
HANNAH, Barbara. Jung Vida e Obra Uma memória biográfica. Artmed, 2003. RS.
JUNG, C.G. A vida simbólica. OC 18/2. Vozes, 2011. RJ
SHAMDASANI, Sonu. Jung e a construção da Psicologia Moderna. Ideias e Letras, 2017. SP.