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Jung visita Kafka e seu Inseto: barata ou besouro? 

Seja por medo ou repulsa, a relação do ser humano com as baratas tem sido intensa e complexa. Sua presença pode ser notada por gritos histéricos, cadeiras sendo usadas como porto seguro, vassouras e chinelos que se transformam em armas, meninos correndo e tentando caçá-las pelas antenas (para ameaçar as meninas, é claro!), e também por aqueles que assistem a essa tragicomédia com um saco de pipoca e risadas incrédulas. 

Cresci brigando com as emoções de nojo, compaixão e pavor que me tomam ao menor sinal de sua presença, e hoje me pergunto quais os motivos desse comportamento universal? Qual o simbolismo desses insetos para receberem tantas projeções?

De acordo com Jung, a projeção é um deslocamento de conteúdo subjetivo para um objeto externo, que ocorre de maneira não intencional, ou seja, de forma inconsciente. O objeto externo não é escolhido por acaso, pois deve conter algumas ou muitas das características positivas ou negativas da pessoa. Geralmente isto se manifesta com uma emoção intensa ou exagerada, como uma fascinação ou encantamento de difícil expressão (VON FRANZ, 1999).

 Nos primórdios da existência não havia distinção entre o mundo interno e externo, os hominídeos e a natureza estavam em identidade arcaica ou participação mística. Este estado reflete a criança que vai paulatinamente separando sujeito e objeto na construção da consciência primitiva. Segundo Von Franz (1999) “ainda estamos ligados ao nosso ambiente por todo um sistema de projeções; com efeito, as projeções servem até como uma verdadeira ponte entre o indivíduo, o mundo exterior e as outras pessoas.”

Existe um repositório de todas as experiências humanas desde o princípio da humanidade, que pode ser acessado pelo sistema nervoso central a partir da experimentação pessoal com um tema específico, capaz de ativar uma das diversas possibilidades herdadas de comportamento biológico (instinto) e psíquico (arquétipo).

A dinâmica, o efeito do arquétipo, manifesta-se, entre outros, por processos energéticos no interior da psique, processos estes que operam tanto no inconsciente como entre o inconsciente e a consciência. Esse efeito aparece, por exemplo, em emoções negativas e positivas, em fascinações e projeções, e também no medo; além disso, no sentimento de que o ego está sendo subjugado e nos estados maníacos e de depressão. Cada um desses estados, quando se apodera da personalidade como um todo, representa o efeito dinâmico de um arquétipo, independentemente do fato de esse efeito ser aceito ou rejeitado pela consciência humana, de permanecer inconsciente, ou de alcançar a consciência (NEUMANN, 2006, p.19).

Na terceira conferência de Tavistock, Jung (1996) recebe uma questão referente a dois sonhos de uma garota de 5 anos e meio. No primeiro deles ela disse “estou vendo uma roda que despenca morro abaixo e ela vem me queimar” e no segundo “uma barata está me picando”.  No instante inicial Jung considera difícil e não muito justo comentar os sonhos sem conhecer bem o sonhador, mas em seguida aborda uma relação desse inseto com manifestações fisiológicas da menina, porque do ponto de vista simbólico a barata relaciona-se ao sistema simpático.

[…] Daí ser possível calcular que haja certos processos psicológicos estranhos desenrolando-se na criança, que afetam esse sistema, o que poderá provocar-lhe alguma desordem abdominal ou intestinal. A afirmação mais cautelosa que nos podemos permitir é a de que pode ter havido um certo acúmulo de energia no sistema simpático, causando ligeiros distúrbios. O que também é expresso pela simbologia da roda de fogo, que em seu sonho parece surgir como um símbolo solar, correspondendo o fogo, na filosofia tântrica, ao chamado manipura chakra, que se localiza no abdômen… O sonho da garotinha é um sonho arquetípico, um desses estranhos sonhos que as crianças costumam ter. (JUNG, 1996, par. 203, pag. 87-88)                    

Antes de prosseguir com a questão sobre os insetos, vou fazer uma breve exposição sobre o sistema simpático, para ficar mais clara a leitura.

O sistema nervoso autônomo (SNA) é a parte cerebral responsável pelo equilíbrio homeostático do organismo. Através da liberação da adrenalina (SN Simpático) ou da acetilcolina (SN Parassimpático), para ajudar o indivíduo a se adaptar às circunstâncias vivenciadas como estressantes, ou seja, situações do mundo externo ou interno que exigem esforço para a adaptação (aquelas experiências que afetam e provocam expressão das emoções a nível psicológico, fisiológico e social).

A ativação do SNA é iniciada pelo sistema límbico e pelo hipotálamo que estão relacionados aos processos emocionais e comportamentais. Com a espantosa velocidade de transmissão nervosa de 100 milissegundos/ metro, um estímulo estressante é captado pela sensopercepção e se dirige ao sistema límbico e ao hipotálamo, sendo acionado o processo emocional (medo, nojo, raiva, alegria, tristeza). Observem que antes mesmo que o córtex cerebral tenha tornado essa emoção consciente, todo sistema fisiológico do indivíduo já está respondendo ao sistema simpático de maneira inconsciente, ocorrendo taquicardia, transpiração, palidez, respiração rápida, boca seca, elevação da glicose sanguínea, aumento da circulação para os músculos e cérebro, e diminuição da circulação para sistema digestório e pele.

Como visto acima a cada experiência que afeta ou emociona o indivíduo, vão ocorrer três fenômenos ligados às emoções:

– psicológico (a própria emoção que primeiro é inconsciente e depois se torna consciente)

– fisiológico (alterações dos órgãos internos para adaptação ao estímulo estressante)

– social (luta, fuga, paralisia, submissão, dentre outros)

Após esta breve incursão neuropsicológica, volto à questão inicial.

Na última tradução da terceira conferência de Tavistock de Jung (2013), a barata foi substituída por outro inseto, o besouro, o que me faz pensar que algo semelhante ocorra no livro de Kafka, A metamorfose, que conta a transformação da personagem Gregor Samsa em um “inseto monstruoso”, sem mencionar qual seria esse animal, uma barata ou um besouro?

Para possível resposta e compreensão da relação referida por Jung entre inseto e sistema simpático, resolvi pesquisar as diferenças e similitudes entre a barata e o besouro na esfera biológica e literária, nos relatos mitológicos, nos estudos simbólicos e na abordagem psicossomática com a visão junguiana, além de usar alguns textos da obra Jung, a terceira conferência de Tavistock (Fundamentos de psicologia analítica, ou A vida simbólica), Aion, Símbolos da transformação e Os arquétipos e o inconsciente coletivo.

  1. A metamorfose de Franz Kafka

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama, metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. 

— O que aconteceu comigo?, pensou.

Não era um sonho […] (KAFKA, 1997).

No primeiro parágrafo do livro já se sabe que o caixeiro viajante Gregor Samsa acorda como uma inseto. Antes era um filho e irmão dedicado, que sustentava a família atolada em dívidas. Sua vida parece medíocre e opaca até sofrer essa transformação monstruosa.

Seu pai é autoritário, sua profissão o desagrada e o mundo o oprime. Gregor provavelmente já se sentia um inseto, um homem inferior e do submundo, cujo inconsciente se manifesta fisicamente na própria metamorfose.

Seus pais não suportavam mais sua presença e sua irmã já tinha anunciado que deveriam se livrar do monstro, pois não era “o nosso Gregor”. A única pessoa que havia tratado Gregor com empatia era a empregada. Ao final do texto, Gregor é ferido por uma maçã atirada por seu pai e permanece trancado no quarto até sua morte. Um pouco antes escuta o violino tocado por sua irmã e se emociona e sente prazer.

Para complementar esta parte descrevo uma pequena biografia do autor: Franz Kafka nasceu em Praga em 1883, judeu de língua alemã, foi realmente uma pessoa excluída tanto pelos judeus, quanto pelos alemães e tchecos. Teve um pai insensível e autoritário, uma mãe ausente e três irmãs que viveram mais que ele, e que morreram em campo de concentração na segunda guerra mundial.

Viveu até 41 anos, trabalhou como advogado em companhias de seguro e teve alguns relacionamentos amorosos, dos quais o mais especial foi com Milena, demonstrado nas correspondências trocadas entre eles e transformada em livro, Cartas a Milena. Segue um pequeno e significativo trecho:

Eu sou sujo, Milena, infinitamente sujo, é por isso que eu grito tanto pela pureza. Ninguém canta mais puramente que aquele que habita o mais profundo inferno, é este canto que nós tomamos pelo canto dos anjos. (KAFKA, sem data).

A obra kafkiana mostra as tensões entre o coletivo e o pessoal, antecipa a tragédia sofrida pelo povo judeu na segunda guerra, em que foi tratado e destruído como se fosse um inseto. Aponta a estranheza vivida em Praga entre os alemães, judeus e tchecos, que apesar da cultura e costumes semelhantes, não conseguiam se entender.

Kafka morreu em 1924 após longo tratamento de tuberculose que de forma progressiva atacou a laringe e lhe impediu de falar, de comer e de ingerir líquidos nos últimos dias de vida

  1. Descrição da biologia e da filologia                      

Os insetos representam a maioria dos seres vivos que habitam a terra e possuem as seguintes características: corpo dividido em cabeça, tórax e abdome; um par de antenas; três pares de patas; um ou dois pares de asas. O corpo é revestido de um exoesqueleto que é muito rígido, precisando ser trocado durante o crescimento, processo de muda (FARIAS, sem data).

Existem várias ordens de insetos, mas para efeito deste trabalho, vou abordar somente duas: ordem coleóptera (besouro, joaninha) e a ordem blattodea (barata americana, alemã, oriental).

A barata possui hábito solitário e noturno, durante o dia repousa em lugares escuros, úmidos e quentes (esgotos, fossas, frestas, armários, porões, cozinha e dispensa de alimentos). Pode se alimentar de restos de comida, papeis, fungos, roupas e documentos. É vetor de bactérias, vírus, fungos e parasitas, além de poder provocar reações alérgicas.

O besouro se diferencia pelo seu voo barulhento e pesado; tem uma asa externa dura e protetiva e outra interna que serve para voar. Existem vários tipos como o besouro rinoceronte (tem chifre grande), o besouro Hércules (é bem forte) e o besouro escaravelho ou rola-bosta (a fêmea faz uma bola de esterco, coloca seus ovos no interior e a enterra na areia para que as larvas se alimentem ao nascer). Os besouros são relevantes para o ambiente pois promovem a limpeza das pastagens e a destruição das larvas de vermes e de moscas maléficas às criações e à agricultura. Também promovem aeração do solo e reciclagem de nutrientes.

De acordo com dicionários de língua portuguesa existem muitos significados e ditados populares envolvendo as baratas e os besouros:

– baratear ou baratar – tornar barato, vender a baixo preço; dar pouco valor; menosprezar;

– baratinar ou desbaratinar – perder o juízo; estar sem rumo; sem saber o que fazer;

– desbaratar – desperdiçar; pôr-se em fuga, debandar;

– entregue às baratas – abandonado;

– estar tonto como uma barata – estar confuso ou perdido;

– sangue de barata – pessoa que não reage em situações desagradáveis ou a provocações; pessoa de sangue frio que consegue se manter calma nas horas mais difíceis;

– besourar – produzir ruído como o besouro (zoar, zunir); falar cochichando;

– estar com bicho carpinteiro – significa que uma pessoa não para quieta, como se estivesse sendo roída por esse inseto (escaravelho que roi madeira). Bicho carpinteiro se refere a diversos besouros que no estágio de larva perfuram troncos de árvore;

– fusca – o carro era chamado de besouro, na década de 60, pela semelhança com o inseto.

  1. Simbolismo

Na mitologia egípcia o besouro é considerado sagrado, relacionado ao deus solar Khefri (homem com cabeça de escaravelho), responsável pelo movimento do sol no horizonte; no crepúsculo o deus morria e se dirigia para o outro mundo, para retornar ao amanhecer.

O besouro rola bosta, como o nome diz, enrola esterco em forma de uma bola, empurra-a com suas patas traseiras e a enterra na areia, após ter colocado seus ovos no interior. As larvas se alimentam dessas excretas, crescem e aparecem na superfície da areia. Ao observar o escaravelho jovem “nascendo” da areia, os egípcios o tomavam como símbolo de poder auto-criador, representando a ressurreição, a imortalidade e a sabedoria da natureza.

O escaravelho era enterrado com o faraó, e podia ser representado nas paredes das tumbas e esculpido como amuleto.

O escaravelho-coração era um amuleto colocado na região torácica do morto, feito de rocha esculpida no formato de besouro em um lado e no outro havia um texto cuja função era impedir que o coração do morto se opusesse contra ele em falso testemunho no tribunal de Osíris, onde o coração era pesado na balança da verdade e da justiça, tendo como contra peso uma pena, representante da deusa Maat. Caso o coração fosse mais pesado que a pena, ele era comido pela deusa Ammit, o que significava que o morto seria esquecido, ou seja, teria a morte eterna (CESAR, 2009).

A barata não tem o mesmo glamour, como pode-se observar pelo significado de blatta em latim, “o que foge da luz”. Como tem hábito noturno, esconde-se em qualquer lugar com acúmulo de sujeira e vive nos esgotos, é clara sua relação com o submundo, escuridão, pestilência e conteúdos sombrios. Existe também a questão da sexualidade e sua relação com o pecado, sujidade, queda do paraíso, inconsciente, corpo e mulher. Outro dado a salientar é a resistência da barata e sua grande capacidade de adaptação, pois está na Terra há mais de 350 milhões de anos na mesma forma como é vista hoje.

Dificilmente ouvimos alguém com medo, asco ou repulsa de um besouro, o que é frequentemente relatado de uma barata, ou seja, ela tem um “gancho” para as projeções que recebe.

  1. Nabokov e sua literalidade

Nos textos de Kafka vê-se o uso de metáforas, alegorias, parábolas, metonímias e outras figuras de linguagem alucinantes. Isto não parece impressionar Vladimir Nabokov e Robert Crumb, que descrevem o inseto Gregor Samsa de besouro e não uma barata, como muitos acreditam.

Utilizando uma descrição literária, com desenhos ilustrativos feitos de acordo com o texto kafkiano, Nabokov e entomologistas consultados insistem na literalidade, esquecendo-se completamente do aspecto simbólico.

No original em alemão, a velha arrumadeira o chama de Mistkäfer – besouro rola-bosta. É óbvio que a boa senhora está lhe dando esse nome só para ser simpática. Tecnicamente, ele não é um besouro rola-bosta. É simplesmente um besouro (NABOKOV, 2015).

  1. Projeção e símbolos teriomórficos do Self

Cada indivíduo é portador de uma impressão do arquétipo do Self, que é inato e dado. Sempre que for necessário esse conhecimento intuitivo pode auxiliar, já que a tarefa do Self parece ser a de manter o sistema psíquico unido e em equilíbrio, ou seja, mais correlacionado e integrado. (STEIN,2001).

Importante ressaltar que o Self tem um caráter antinômico e paradoxal, pois contém os opostos, sendo ao mesmo tempo poderoso e indefeso, bom e mau, feminino e masculino, criança e velho…

O arquétipo da totalidade ou do Self é observado nos sonhos, nas visões e na imaginação ativa através de vários símbolos, dentre eles têm-se os teriomórficos, ou seja, os que possuem a forma de animal.

Habitualmente chamo a personalidade supra-ordenada de Self e separo estritamente o ego, o qual como se sabe só vai até onde chega a consciência do todo da personalidade, no qual se inclui, além da parte consciente, o inconsciente.

[…] Empiricamente o Self não é sentido como sujeito, mas como objeto, e isto devido a sua parte inconsciente, que só pode chegar indiretamente à consciência, via projeção.

Por causa da parte inconsciente, o Self se acha tão distante da consciência que se, por um lado, pode ser expresso por figuras humanas, por outro necessita de símbolos objetivos e abstratos.

As figuras humanas são pai e filho, mãe e filha, rei e rainha, deus e deusa. Os símbolos teriomórficos são dragão, serpente, elefante, leão, urso ou outro animal poderoso. E por outro lado, aranha, caranguejo, borboleta, besouro, verme etc. (JUNG, 2014, par.315).

Também os objetos geométricos circulares e quadrados, o número quatro e seus múltiplos, cristal, roda, cidade, castelo, igreja, casa, recipiente, lago, montanha, além dos símbolos vegetais (flor, árvore).

Quando as imagens impessoais são ativadas numa determinada experiência pessoal (seja em um indivíduo ou mesmo numa multidão), há uma força que fascina as pessoas de dentro para fora, que escapa à capacidade de raciocinar. Nesse momento, reflete Jung (2013a, par. 372), “o cérebro acaba não valendo nada e o sistema simpático é tomado”. Basta lembrar que “as emoções são contagiosas, estando profundamente enraizadas no sistema simpático” (par.318).

Para complementar esta parte do trabalho quero reiterar a importância dos símbolos teriomórficos nas manifestações do inconsciente. Eles expressam um estágio tão distante da consciência humana, quanto à psique do animal. “A este respeito, os vertebrados de sangue quente ou de sangue frio e mesmo os invertebrados das mais diversas espécies revelam, por assim dizer, gradações no estado da inconsciência” (JUNG, 2013b, par.291, grifo meu).

Os animais do submundo como a serpente, o peixe, os insetos emergem das profundezas desconhecidas e simbolizam “os conteúdos e tendências de ‘sangue frio’, inumanos, de natureza espiritual abstrata e de natureza animal concreta, em outras palavras: o extra-humano presente no homem” (JUNG, 2013b, par. 291).

No próximo item vou complementar este trabalho com um diagrama do Self feito por Jung, para mostrar

a descida através das camadas de psique desde os mais elevados níveis da ideia, do ideal e da imagem, passa pelos domínios concretos da existência do ego e da realidade do corpo, e logo pela composição química e molecular do nosso ser físico, até chegar finalmente à pura energia e retornar ao domínio da ideia, que é o mundo do nous, da mente transcendente, do espírito (STEIN, 2001, P.151).

  1. Diagramas junguianos do Self

Em seu livro Aion, Jung (2013b, par. 351-391) explora o símbolo do Self expresso na quaternidade e faz um diagrama com quatro quaternidades unidas mostrando as transformações que têm lugar do polo espiritual ao material.

Este diagrama de forma linear ilustrado abaixo, mostra um processo de transformação progressiva de uma só e mesma substância, que deveria estar em formato circular, em que as extremidades se tocam. Para efeito didático a forma linear está mantida.

São quatro quaternidades empilhadas em um contínuo, que representam a integridade e totalidade, chamadas de: Anthropos, Sombra, Paraíso e Lápis.  Entre as duas quaternidades de cima e as de baixo há uma linha que se chama Christus – Diabolus (as polaridades da Serpente).

1º Quatérnio do Anthropos – expressa a integridade no nível espiritual e representa o mundo do espírito ou a metafísica. Assim como o Adão superior (Anthropos) corresponde ao Adão inferior (Homo = homem comum), também o Homo corresponde à Serpente (Sistema nervoso autônomo). Na posição Homo tem-se a representação da consciência do ego.

2º Quatérnio da Sombra – abaixo do Homo está a quaternidade que representa a sombra do que se situa acima dela e se apoia na Serpente. A Sombra é a personalidade inferior, cujo estágio mais baixo não pode ser distinguido dos instintos, que têm uma sabedoria própria e um conhecimento sobrenatural. A Serpente corresponde ao totalmente inconsciente e incapaz de atingir a consciência (representa o SNA).

A Serpente significa de um lado o mal, o tentador (Diabolus) e do outro a sabedoria (Christus). Na alquimia a Serpente é o símbolo de Mercúrio (Hermes), o deus da revelação.

3º Quatérnio do Paraíso – representa uma descida para o nível dos processos materiais orgânicos. Os humanos compartem esse nível com os animais e as plantas (organizados em torno da natureza do átomo de Carbono e suas propriedades).

O símbolo da Serpente conduz à imagem do paraíso, da árvore e da terra. Em termos de história evolutiva, significa uma regressão, do reino animal ao vegetal (reinos orgânicos, da natureza do Carbono) e à substância inorgânica, cujo representante alquímico é o lápis (pedra filosofal), matéria inicial do opus alquímico, ou prima matéria, que representa uma porção do caos primordial oculto no Mercúrio e outras matérias. Este quatérnio é análogo do Anthropos (homem primordial celeste), do Homo (Adão secundus) e da Serpente.

4º Quatérnio do Lápis – constitui a base física do ser, pois nesse nível os elementos químicos se organizam e interagem de modo a produzir uma criatura estável, que possa manter equilíbrio físico para a vida nos níveis somático, psíquico e espiritual.

Há transição para o domínio inorgânico, sendo atingido o nível da própria energia pura. O Rotundum é uma ideia transcendental da energia, um conceito usado para descrever algo que não se pode observar diretamente, mas sim pelas suas manifestações.

A Serpente e as polaridades Rotundum / Anthropos são equivalentes à fronteira psicóide, que é uma área cinzenta (quase-psíquica), entre a psique (consciente e inconsciente) e os Arquétipos / Instintos (não-psíquicos). Essa fronteira é a região em que pode haver psiquização de material proveniente dos Arquétipos e Instintos. Na fronteira psicóide matéria e energia, orgânico e psíquico se fundem à psique.

A Serpente representa o SNA, algo quase-psíquico, uma energia muito distante da consciência e do desejo pessoal. O nível da Serpente é gerador de consciência e representa o processo de psiquização, ou seja, a informação não-psíquica torna-se psiquizada, indo do incognoscível (Arquétipo e Instinto) para a psique inconsciente e então avançando para a consciência do ego.

A Serpente ocupa o centro deste sistema, entre Christus e Diabolus, e contém a oposição máxima em que se divide o Homem primordial que desce ao interior da physis. Há identidade do aspecto mais material com o aspecto mais espiritual, como visto na representação da Serpente como animal ctônico e espiritual, ao mesmo tempo.   

  1. Considerações finais

O SNA pode ser representado por um inseto (barata, besouro), por uma serpente, por um peixe ou outro símbolo do Self, que tenha ao mesmo tempo um aspecto espiritual e outro material, porque esse sistema pode se comportar como uma fronteira em que conteúdos totalmente incognoscíveis (arquétipos e instintos) se encontram com os potencialmente cognoscíveis e podem se transformar em psique consciente.

Quando Jung relaciona o sistema simpático ao inseto, “é bem provável que um símbolo adequado e impressionante possa mobilizar as forças do inconsciente a tal ponto que até o sistema nervoso seja afetado” […], de maneira a fazer uma ponte entre matéria e espírito, corpo e mente, levando o indivíduo a doença ou a saúde.

Com relação ao livro de Kafka tenho duas ponderações frente ao lado simbólico:

– a sociedade não aceita com facilidade aquelas pessoas que querem se modificar, se transformar, fazer algo novo, criar uma outra possibilidade de si mesmo. A renovação de Gregor Samsa se inicia quando sentiu desejo de largar o trabalho aborrecido e se sentir livre das cobranças familiares, para ressurgir com outro nível de consciência. Neste caso o inseto poderia ser o besouro como símbolo de morte e renascimento;

– por outro lado a metamorfose de Gregor em barata estaria simbolizando a ativação dos complexos de inferioridade, de abandono, de sombra ou paterno, que fica evidente na leitura da obra kafkiana.

Após esta exposição é possível inferir que o inseto de Kafka pode ser uma barata, um besouro ou outras projeções possíveis, pois

[…] o inconsciente gera símbolos compensatórios, que devem substituir as pontes que ruíram, mas só o conseguem de fato, mediante a ajuda da consciência. É que os símbolos gerados pelo inconsciente têm que ser “entendidos” pela consciência, isto é, têm que ser assimilados e integrados para se tornarem eficazes. Um sonho não compreendido não passa de um simples episódio, mas a sua compreensão faz dele uma vivência (JUNG, 2002, par.252, grifos meus).

Dra. Lia Rachel B. Romano

Clínica Médica – Homeopatia – Reumatologia – Membro  Analista do IJEP

lia.romano@uol.com.br  –  @dra_liaromano

  1. Referências

CARONE, M. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

CESAR, MB. O escaravelho-coração nas práticas e rituais funerários do antigo Egito. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 2009.

CHEVALIER, J, GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. São Paulo: José Olympio,1992

FARIAS, PRS. Manual de entomologia geral. UFRA, sem data.

JUNG, CG. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 1986.

____Fundamentos de psicologia analítica. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

____A prática da psicoterapia. 8.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

____ A vida simbólica. Vol 18/1. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.

____Aion. Estudo sobre o simbolismo do Si-mesmo. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.

____Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

KAFKA, F. A metamorfose. Trad. De Modesto Caruso. São Paulo: companhia das Letras, 1997.

____ Cartas a Milena. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/data.

NABOKOV, V. Lições de literatura. São Paulo: Três Estrelas, 2015.

NEUMANN, E. A grande mãe. São Paulo: Cultrix, 1996.

STEIN, M.  O mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2001.

VON FRANZ, ML. Psicoterapia. São Paulo: Paulus,

Lia Romano – 15/10/2019

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